Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
O combate à extrema-direita também se faz com imagens
O combate à extrema-direita também se faz com imagens
Como usar do design na luta ativista em defesa da democracia? Essa é uma questão que Denis Diosanto traz para pensarmos coletivamente

Toda luta precisa de arte. De imagens. De uma cara própria. A criação de materiais gráficos é fundamental para a sensação de unidade, uma linguagem compartilhável e capaz de agrupar gente. As pessoas que lutam carregam esses símbolos por onde passam, como estandartes. Muitos desenhos, cartazes e bandeiras levam a síntese de um conjunto de ideias ou de um sentimento coletivo que está sendo expressado. O mundo precisa de designers ativistas.
Afinal, o design é uma grande ferramenta que tem que ser usada sempre e, se possível, ser acessível aos movimentos sociais de esquerda e as pautas antirracistas, ambientais, de gênero e qualquer outra luta por direitos. Na disputa pelo imaginário e na batalha de ideias, a materialização em peças gráficas sempre foi combustível para a potência transformadora das diferentes lutas.
A importância do design gráfico é histórica. Por exemplo, desde o início do século passado, temos posters e cartazes como meios de comunicação de massa. Movimentos de design gráfico já foram perseguidos no início do seu desenvolvimento, como no Construtivismo Soviético ou na escola Bauhaus, ambos esmagados pelos conflitos políticos de seus períodos históricos. O primeiro sendo solapado pela burocracia para virar instrumento de propaganda. O segundo destruído pelo ódio, intolerância e estupidez dos nazistas. Porém o desenvolvimento do design gráfico era imparável e sobreviveu a isso, sendo exportado, espalhado e estudado ao redor do planeta.

O último século foi palco de criações icônicas e que marcaram época. Desde bandeiras, até símbolos, cartazes e panfletos que impulsionaram a luta por dignidade, contra a violência, pelo fim de guerras e várias outras lutas sociais. Na década de 60 temos alguns exemplos de criações icônicas do design que foram importantes para suas causas. Cito três exemplos: o símbolo Paz e Amor, o jornal dos Panteras Negras e a bandeira “Seja Marginal, Seja Herói”.

O símbolo “Paz e Amor” foi criado por um designer britânico chamado Gerald Holton, com o intuito de protestar contra o desenvolvimento de armas nucleares na década de 60. Posteriormente o símbolo foi apropriado pela cultura hippie e até hoje é usado em manifestações pela paz.
Emory Douglas, um designer negro, se juntou ao movimento dos Panteras Negras e lá dentro se propôs a ser o responsável pela publicação do jornal do partido. É reconhecido por ter criado capas icônicas para o movimento, sempre buscando representar coragem, luta e revolta contra as opressões que a população negra sofria (e ainda sofre) nos EUA. Segundo dados históricos, o jornal chegou a ter 400 mil exemplares distribuídos no país e sem dúvida gerou impactos, solidificando a comunidade em torno da luta por avanços nos direitos civis.

Aqui no Brasil qualquer ativista reconhece a bandeira “Seja Marginal, Seja Herói” do artista Hélio Oiticica. Durante o regime militar no país, essa foi uma das provocações feitas ao regime que deixava os militares melindrados. Afinal, todo autoritário odeia ter sua autoridade rejeitada, debochada e deslegitimada. Obviamente o autoritarismo exilou e perseguiu qualquer um que criasse imagens contra a ditadura.

Em 2018 ficou famoso um design do Militão com a palavra “Ele Não” que circulou o Brasil todo, foi copiado por muita gente e até pirateado pela oposição. Fora esse trabalho ele tem muitos outros, principalmente dedicados à pauta climática.
Um artista muito ativo e que produz diversos trabalhos fantásticos é o Cris Vector, que criou um cartaz espetacular em protesto ao assassinato do Bruno e Dom, arte viajou pelo mundo todo levando essa mensagem de indignação.
Ixe Tai é uma artista e ilustradora de Manaus, que tem publicado mensagens e ilustrações de protesto que são lindos e muito potentes.



Já Denilson Baniwa é outro ilustrador da região amazônica que tem participado de muitos momentos dos protestos pelo Brasil, colaborou com a criação da identidade do Acampamento Terra Livre 2024, com uma ilustração cheia de significado para os povos originários, com a qual eles marcharam por Brasília exigindo seus direitos e o fim do massacre de seus parentes.
Outro exemplo é o Mundano, que há muitos anos atua como artista e ativista no país. Espalha pelo Brasil murais pintados com tinta feita a partir do barro e das cinzas de desastres ambientais, seus trabalhos viram notícias e ajudam a espalhar mensagens essenciais para o reconhecimento da luta social.


E por último gostaria de mencionar a cartunista e desenhista Paula Villar, que tem contribuído muito na criação de charges e desenhos de protesto contra a extrema-direita e em favor de causas justas da luta popular.
Quem já é designer e trabalha com isso, quando possível, seria útil demais e uma baita força dedicar tempo voluntário a alguma causa ou movimento. Ou pelo menos preparar uma base para que os gestores de comunicação dos projetos possam trabalhar usando plataformas online que facilitem muito o trabalho de produzir peças.

Por mais que existam iniciativas fantásticas e muita gente capacitada trabalhando, ainda faltam profissionais para se juntar à causa. Precisamos de mais designers ativistas porque não está fácil. A extrema-direita está bem organizada e tem muitos símbolos, elementos e cartazes próprios. Cores da bandeira, armas, manipulação da fé, individualismo e violência.
O progressismo e as esquerdas são poderosas também. Lutamos por direitos, por liberdade real, pelo fim da violência e por causas que vão fazer a diferença pra melhor na vida das pessoas. Isso é potente e o design gráfico pode criar a ponte entre essas ideias e quem pretende lutar por elas. Seja um designer ativista!
Outro exemplo é o Mundano, que há muitos anos atua como artista e ativista no país. Espalha pelo Brasil murais pintados com tinta feita a partir do barro e das cinzas de desastres ambientais, seus trabalhos viram notícias e ajudam a espalhar mensagens essenciais para o reconhecimento da luta social.
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“Responsabilidade política”: ativista escreve sobre militância, juventude e crise climática
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A jovem ativista Ana Terra escreve sobre como os movimentos sociais podem ser um local de formação e experimentação política à partir do compromisso com a transformação do mundo

Nos últimos anos venho me dedicando a um dos trabalhos mais gratificantes, significativos e interessantes da minha vida: a militância. Ao mesmo tempo, estou avançando em uma graduação em sociologia e, devido à licenciatura, tive a oportunidade de me maravilhar e me inspirar com a sala de aula. Estar com jovens dentro e fora de sala, contribuindo de formas diferentes para formação deles (e a minha própria) me fez perceber a importância da educação e do compromisso com processos formativos para construção de pensamento crítico e formação de responsabilidade política.
Minha vida militante começou no início de 2021, quando entrei no Jovens pelo Clima Brasília, em plena pandemia. Nessa época, todos os encontros de discussão eram virtuais mas, mesmo de longe, nossas trocas eram intensas, uma vez que existia em nós a vontade combativa de superar um momento muito difícil: uma pandemia, um governo fascista e a ruptura dos nossos planos e expectativas jovens devido ao isolamento. Era, acima de tudo, um espaço de acolhimento onde conseguíamos nos reconhecer uns nos outros, imaginar mundos possíveis, agir em nome desse mundo e manter a esperança viva.
Costumamos dizer no Jovens pelo Clima que a pauta climática é como se fosse um “guarda-chuva”, é o que mostramos primeiro, nossa pauta orientadora, mas sob ela estão as outras pautas essenciais para alcançar a justiça social e climática que defendemos. Então nós fortalecemos entendimentos que tratam de ecologia numa perspectiva de gênero, sexualidade, raça, etnia, classe, etc., entendendo que é preciso desafiar o pensamento hegemônico de que só existe uma maneira de existir coletivamente nesse planeta, e apontar que há uma relação significativa entre as contradições do sistema capitalista e a crescente crise ambiental e climática.
Por mais que a crise climática seja um fato (embora alguns neguem) evidenciado por eventos climáticos extremos, fatos por si só não transformam a sociedade. É a interpretação dos fatos e o conjunto de narrativas construídas em torno deles que promove mudanças ou, por outro lado, garante a conservação da ideologia dominante. Tragédias relacionadas a eventos climáticos extremos, por exemplo, podem causar revoltas direcionadas ao poder público ou, ao contrário, encorajar um sentimento fatalista na população. Por isso as disputas de narrativas são tão acirradas, elas moldam como a opinião pública vai influenciar as decisões políticas.
Movimentos sociais são particularmente importantes nesse sentido, pois estão em um trabalho constante de disputa de narrativas, a partir da organização política. Estes movimentos são capazes de chegar em setores da sociedade com mais fluidez, são responsáveis por encabeçar campanhas que influenciam o debate público, realizam ações diretas para pressionar figuras políticas e se fazem presentes em espaços decisórios representando a sociedade civil. Por exemplo, em abril de 2021, 6 jovens se juntaram para denunciar o Governo brasileiro por violar o Acordo de Paris ao divulgar, de forma velada, metas menores que as anteriores. Dois anos depois a NDC brasileira foi corrigida e passamos a discutir cada vez mais quais são as capacidades do Brasil em se responsabilizar por metas cada vez mais ambiciosas.
Os movimentos de juventude, em especial, cresceram significativamente ao redor do mundo desde 2019, inspirados pelo movimento Fridays for Future, encabeçado pela então adolescente sueca Greta Thunberg. Este também foi o ano do lançamento do Jovens pelo Clima. Uma das explicações para este “boom” é que a juventude que tem mais tempo para atuar no seu território, que trava discussões importantes no ambiente familiar e que está interessada nas conversas difíceis. A participação jovem vem sendo cada vez mais valorizada nos ambientes políticos, fruto de muita mobilização e esforço. Mas ainda lidamos com dificuldades quando o assunto é massificar o movimento jovem por justiça climática e, consequentemente, garantir mudanças mais expressivas nas políticas públicas. Isso se deve por vários motivos, desde falta de recursos materiais até o desinteresse de muitos jovens em política, e muito mais entre esses dois problemas.
Em minhas experiências em sala de aula, e mesmo fora dela, em ambientes de militância jovem e troca de experiências, pude perceber como falar sobre meio ambiente abre espaço para que as pessoas contem suas próprias histórias acerca dos seus territórios, suas relações com a cidade e a alimentação. A partir dessas primeiras indagações é possível desenvolver a relação entre essas percepções pessoais e a influência da política, do sistema vigente, das diversas formas que é possível buscar por alguma mudança. Além disso, discutir a partir de recortes de gênero, raça e classe sempre foi bem-sucedido, muitas vezes os jovens trazem para consciência suas próprias condições ou condições das pessoas com quem convivem. Seria estranhamente presunçoso descartar que meio ambiente e aquecimento global são assuntos recorrentes hoje, e que muitos jovens, de modos diferentes, sofrem com as mudanças ambientais e climáticas.
Passei a refletir em como sempre incentivar reflexões críticas nas diversas atividades que realizamos no movimento depois que comecei a estagiar em escolas. Eu via o trabalho dos professores com muita admiração, eles estavam ativamente construindo narrativas em conjunto com os alunos, incentivando o pensamento crítico, propondo atividades e mantendo a sala de aula como um ambiente seguro para a experimentação. Desde então busco promover, junto aos jovens que militam comigo, espaços interessantes para a juventude, que sejam seguros e possuam os recursos necessários para que cada um possa desenvolver suas habilidades e sinta-se importante para o coletivo.
Uma educação como prática de liberdade, como defende Paulo Freire, nos dá ferramentas para um trabalho contínuo de transformação do mundo. Quando me refiro à educação na militância, estou invocando um espaço contínuo de troca de saberes. Penso em como toda atividade, encontro ou ação tem potencial para ser uma “escola”. Análises de conjunturas, construção de atividades externas, grupos de estudos e estruturação de posicionamentos são exemplos de tarefas militantes evidentemente formativas. Mas promover um espaço de trocas contínuo é encontrar em todas as atividades uma oportunidade de aprendizado, que promova reflexões sobre a realidade, a procura por soluções e o interesse nas mudanças estruturais. Principalmente garantir que o movimento social seja um espaço de experimentação política, feito de jovens para jovens.
TEXTO
Ana Terra
Militante ecossocialista do movimento social Jovens pelo Clima Brasília. Estudante de graduação em Sociologia/Licenciatura na Universidade de Brasília.
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Mapear territórios por nós mesmos: cartografias sociais como ferramenta de resistência
Mapear territórios por nós mesmos: cartografias sociais como ferramenta de resistência
O processo metodológico de representação espacial inclui as comunidades na sua elaboração ao considerar seus modos de vida e culturas e pode ser usado como reivindicação para um planejamento territorial mais inclusivo e justo.

“Só entram as informações que os moradores querem que entre. É o que pode ser dito nessa cartografia. Existe o invisível que também é produzido, aquilo que não aparece”, diz Fransérgio Silva l Foto: Casa Fluminense/Reprodução
Já imaginou usar um mapa como ferramenta de defesa territorial? Mas esqueça os modelos tradicionais e as formas de representação espacial baseadas em métodos cartesianos, inclusive aquelas que, institucionalmente, são utilizadas como apagamento. Aqui estamos falando da cartografia social, uma abordagem que utiliza metodologias participativas na construção de mapas sociais que revelam modos de vida, simbologias, culturas e ameaças de determinada comunidade.
Giovanna Castro, mestra e doutoranda em Geografia na Universidade Federal do Ceará, define que a cartografia social “é uma forma de fazer emergir o reconhecimento de territórios, demonstrando suas potencialidades e limitações, ao mesmo tempo em que evidencia parte dos conflitos e ameaças que as comunidades atualmente vivenciam”.
A discussão sobre esse tipo de processo metodológico começa no final da década de 1970, conta Fransérgio Silva. O historiador, que acumula décadas de experiência na metodologia em contextos urbanos e milita no movimento de favelas há mais de 25 anos, cita como exemplo pioneiro no Brasil o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), que desde 2005 realiza cartografias sociais com os povos tradicionais do bioma amazônico, envolvendo não só diversos povos mas também centros de pesquisa, organizações sociais e poder público.
O processo de desenvolvimento da cartografia social
A premissa das cartografias sociais é ser participativa, ou seja, envolver as pessoas da respectiva comunidade em seu processo de desenvolvimento. Como primeiro passo, Giovanna explica que estuda-se a viabilidade da execução do projeto no território, sendo “o mais importante ter o aval da comunidade para realizar e aplicar qualquer metodologia”.
TEXTO
Bárbara Poerner
Jornalista, gestora de projetos e documentarista independente na área socioambiental.
publicado em
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Mas o que significa cartografia?
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“A cartografia compõe o grupo de ciências mais antigas estudadas pelo homem (…) é a disciplina que trata da concepção, produção, disseminação e estudo de mapas (…). Desse modo, a cartografia é considerada a ciência e a arte de representar o conhecimento da superfície terrestre através de mapas e cartas.”
Fonte: Introdução à Cartografia: Conceitos e Aplicações do Ministério do Planejamento
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É importante, continua a pesquisadora, manter a ética em toda a condução da pesquisa – antes e depois. Para tal, faz-se necessário conhecer a realidade local e definir as demandas juntamente com a população, garantindo que os cidadãos e cidadãs estejam cientes da realização do processo em seus territórios. “Isso não é uma fase isolada do pesquisador associado ao seu projeto de pesquisa”, avalia. “O tempo da minha pesquisa deve, também, ser condizente com o tempo que a comunidade pode estar disponível”.
É comum haver a organização de mapeamentos participativos, com oficinas temáticas. A condução desta etapa varia de acordo com cada localidade, complementa Giovanna. Para exemplificar, ela cita os trabalhos que realiza nos laboratórios de pesquisa da UFC. “Nós atuamos muito na zona costeira, então os dados que devo obter daquela comunidade são em relação ao uso e ocupação, às atividades produtivas em relação à pesca, às infraestruturas pesqueiras, às principais atividades econômicas, à geodiversidade, à biodiversidade, conflitos, ameaças etc.”
A validação, pela comunidade, das informações mapeadas é crucial para garantir o sucesso da cartografia. “Só entram as informações que os moradores querem que entre. É o que pode ser dito nessa cartografia. Existe o invisível que também é produzido, aquilo que não aparece”, complementa Fransérgio, que já realizou projetos como esse relacionando-os com a militarização no Rio de Janeiro e efeitos da violência.
Pensar nas legendas, por exemplo, é um estágio importante para o historiador. Invés de apenas sinalizar com ícones tradicionais, ele prefere ter tempo para construir os signos em conjunto com a população. “Os desenhos que são produzidos tem a proporcionalidade que os participantes querem dar e uma tradicionalidade diferente de uma legenda, que, às vezes, já são pré-determinados”.
Além disso, é preciso produzir boas perguntas para a condução da cartografia social. Segundo Fransergio, é importante “historicizar” o processo, ou seja, garantir que ele tenha contexto, mas ele reforça que “outras perguntas podem vir sendo fomentadas pelos próprios participantes”.
Embora seja comum que pesquisadores, pesquisadoras e organizações sociais articulem essa proposta, “a comunidade tem total autonomia de fazer as suas cartografias, até porque o que é produzido é através da comunidade”, defende Giovanna. Segundo ela, existem formas de executar as cartografias e criar representações cartográficas que envolvem imagens de satélites e sem elaboração de mapas convencionais, chamada de cartografia efêmera. “O pesquisador leva uma problemática de pesquisa, aplica determinada metodologia, mas a comunidade sim possui essa total autonomia”, completa.
Tudo isso pode ser aplicado em contextos urbanos ou rurais. Fransérgio cita como exemplo um trabalho que fez na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, com a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). “Os jovens queriam produzir um vídeo, então isso virou parte da cartografia. A partir dele, eles narravam os espaços de violação”. As metodologias se modificam, continua o historiador, dependendo das ferramentas que dialogam com o local.
Essa constante atualização é necessária para que “haja diálogo com outros espaços e articulações entre as cartografias, porque, senão, acabamos isolando os espaços”, diz ele. Falar das potencialidades é importante, mas também devem ser mapeados e apontados os problemas e violências, complementa. “O espaço é uma produção de relações e relações de poder, então uma cartografia hoje pode não ser a mesma cartografia de amanhã”, diz, referenciando o geógrafo Milton Santos. Por isso, atualmente ele prefere usar termos como “cartografia insurgente e/ou decolonial, numa perspectiva de contra-colonização”.
Ferramenta de luta
As cartografias sociais têm sido usadas como dispositivos de luta, resistência e memória por diversas comunidades, sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pesqueiras, caiçaras etc., ao questionarem os modos convencionais de representação espacial. “No início da cartografia, era para construirmos identidades, mas a partir do reconhecimento, no qual as pessoas vão se vendo, elas também vão se percebendo como os atores principais do enfrentamento às violações do Estado”, argumenta Fransérgio.
Giovanna apresenta como exemplo os Protocolos de Consulta Livre Prévia e Informada. Esse mecanismo é parte da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e diz que todos os povos tradicionais devem ser consultados sobre empreendimentos que afetem direta ou indiretamente seus territórios.
A partir da construção das cartografias, as comunidades conseguem iniciar também seus próprios protocolos de consulta, “nos quais elas podem estabelecer a sistematização desses conhecimentos por meio do mapeamento pela cartografia social”, completa a pesquisadora.
Outro caso, citado por ela, são os Documentos do Zoneamento Ecológico-Econômico da Zona Costeira do Estado do Ceará (ZEEC), em que foram realizadas cartografias sociais junto às comunidades tradicionais na zona costeira do estado cearense. “Esse é um dos primeiros exemplos de aplicação da Cartografia Social na construção do zoneamento costeiro no Brasil. As comunidades foram as reais protagonistas de toda essa conquista, elas reivindicaram a participação na construção desse material”, conta Giovanna.
Além disso, os mapas sociais podem ser também uma ferramenta de desenvolvimento territorial, incidindo em políticas públicas específicas. “Aqui [Rio de Janeiro], a cartografia social gerou um planejamento para construção de um aplicativo que, durante quatro anos, funcionou com categorias de denúncias criadas pela cartografia e pelos jovens”. Já na área da saúde o material foi usado para demandar políticas públicas de Saúde da Família, exemplifica Fransérgio.
Por fim, o historiador resume as cartografias sociais como uma forma “de fortalecer a identidade de quem não é visto e de quem é negada a participação na produção de conhecimento”.

Quer saber como fazer uma cartografia social?
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Existem diversos níveis de cartografia social: mapeamento comunitários e participativos, construção de relatórios detalhados, criação de percursos afetivos e por aí vai. Podem ser uma atividade numa oficina ou um projeto de longa duração com alto nível de detalhamento. Abaixo, listamos algumas dicas para quem quiser começar nessa jornada!
Por onde eu começo?
Um dos primeiros passos para iniciar o processo de cartografia social é entender as demandas do seu território. Ou seja, perguntas iniciais podem ser: minha comunidade deseja uma cartografia social? Qual seria seu uso e utilidade? Como essa ferramenta poderá fortalecer nossos direitos?
Procure quem sabe!
Pesquisadores e pesquisadoras de instituições de ensino, como universidades, podem ser consultadas em departamentos como os de Geografia ou Ciências Sociais, para buscar apoio técnico para o projeto. O desenvolvimento da cartografia social une os saberes e necessidades das comunidades, mas também o aparato metodológico proposto pela academia.
Reúna-se com sua comunidade!
Realize encontros formativos, de escuta ativa e mapeamento. O tempo de duração, os meios de publicação e a estrutura da cartografia social vão depender do contexto do seu território.
Parta para o mapa!
Você pode começar de um mapa do seu bairro ou território. Ou da bacia em que sua comunidade está inserida. Ou pelo percurso de um rio. Tudo vai depender da especificidade da sua região ou de sua luta. Ela é pela defesa de um rio? Ou por políticas públicas?
Não deixe nenhum ator de fora!
É essencial entender todos os atores que compõem um território. O bar, o postinho, a escola, a associação comunitária, a igreja e até mesmo ameaças. Isso pode ajudar a calcular riscos e potencialidades.
Aposte no afeto!
Mapear um território deve partir da afetividade das pessoas que estão ali. O que as emociona? Onde estão suas memórias? O que cada espaço diz? Ter uma visão panorâmica é um ótimo momento para reavivar histórias e entender pertencimentos. É importante considerar não só as materialidades, mas também os valores simbólicos da comunidade.
Deixamos abaixo alguns manuais práticos e fontes de leiutura:
Leia mais:
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Cartografia Social – Tutorial (Exercícios Práticos)
Exemplos promissores
- Cartografia Social da Amazônia
- Cartografia social da ONG Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional)
Foto: Auto-Cartografia do Acampamento Dom Tomás/Reprodução
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Conheça Josenita Duda, a pioneira do movimento lésbico em Pernambuco que fez a noite virar dia
Conheça Josenita Duda, a pioneira do movimento lésbico em Pernambuco que fez a noite virar dia
No final dos anos 1970, com sua lendária Festa da Metamorfose, a militante inventou um espaço de experienciação do corpo e da liberdade em plena ditadura militar

Josenita foi uma importante ativista pelos direitos e liberdade da população lésbica – Foto: Ana Carla Lemos Cortesia
Da Igreja ao desbunde, da lesbiandade ao dito “pós-sexualismo”, da comunidade para o mundo. Nita, Jo ou, finalmente, Josenita Duda Ciríaco viveu 63 anos de vida em um território fronteiriço que, se não inventado por ela, foi tomado à força do patriarcado para ser dividido com quem tivesse disposição para a luta. Nascida no Recife, Josenita era filha de um casal de trabalhadores de Surubim, no agreste pernambucano, que migraram para a Região Metropolitana do Recife. Sua atuação política teve início em meados de 1979, quando passou a promover a lendária Festa da Metamorfose, em sua própria casa, localizada em Alberto Maia, Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife (RMR). No evento, que a consagrou como pioneira do movimento lésbico em Pernambuco, Josenita criou um inédito espaço de discussão política para o emergente movimento homossexual do estado, onde as leituras e debates eram regadas a doses do famoso drinque batizado de Xoxota, cuja receita nunca foi revelada.
“Naquele momento, existia uma perseguição muito forte às pessoas não-heterossexuais, que fazia com que elas se escondessem para não sofrer violência na rua ou mesmo da família. A Festa da Metamorfose se constitui como um espaço protegido, como ela dizia, em que as pessoas podiam ser quem eram. Muitos homens, por exemplo, se montavam, usavam salto alto e maquiagem, em uma época na qual ainda não se falava no conceito de transexualidade. A própria Jô era muito livre, em uma das entrevistas chegou a dizer que era ‘pós-sexual’”, afirma Ana Carla Lemos, atual gestora de política LGBTQUIA+ da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco e mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com a pesquisa “Movimentos de Lésbicas em Pernambuco: uma etnografia lésbica feminista”.
De acordo com a pesquisadora, no final dos anos 1970, quando Josenita passou a organizar as festas, ainda não existia um movimento lésbico consolidado. No Brasil, a mais antiga sociedade civil constituída por pessoas LGBTQUIAPN+ é a Turma OK, fundada no Rio de Janeiro no dia 13 de janeiro de 1961, com o objetivo de promover cultura através do transformismo. Apenas em 1978, em São Paulo, surge o Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, um dos primeiros a promover a articulação do Movimento Homossexual Brasileiro.
“Os grupos eram mistos. O Movimento Homossexual Brasileiro teve muita iniciativa de homens gays que estavam se conectando às discussões que aconteciam fora do país. Quando comecei a estudar o movimento lésbico de Pernambuco, percebi que Josenita tinha uma outra história, ainda nos anos 1970. E só podemos falar em redes de organização de lésbicas no país a partir dos anos 2000. A Liga Brasileira de Lésbicas é de 2003 e, a partir de uma divisão interna dela, foi fundada a Articulação Brasileira de Lésbicas [2004]”, acrescenta Lemos.
Assim, para a pesquisadora, as redes passaram a oferecer um espaço de maior especificidade para as demandas das mulheres lésbicas, enquanto os movimentos anteriores ao século XIX dialogaram com a temática LGBT de forma mais geral. A exceção a essa regra parece ter sido a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), em 1996, para a construção da identidade lésbica.

Josenita promoveu campanhas relacionadas à saúde quando a Aids era uma doença era associada aos homossexuais. – Foto: Ana Carla Lemos Cortesia
Luta por visibilidade
Realizado no Rio de Janeiro, o I SENALE contou com a presença de Josenita Duda. “Nosso objetivo era o de dar protagonismo para as mulheres lésbicas, porque até aquele momento ele era todo dos homens gays. Foi nesse evento que a gente transformou o dia 29 de agosto no Dia da Visibilidade Lésbica e partir dali trouxemos a proposta de trabalhar essa data em Pernambuco”, lembra a coordenadora do grupo Articulação e Movimento Homossexual do Recife (AHMOR), Íris de Fátima, que vivenciou o I SENALE ao lado de Josenita.
Íris conta que conheceu Josenita em 1996, durante atividades de militância, quando ainda era sindicalista.
“Ela me chamou para fazer parte do grupo AHMOR, fundado por ela. Na época, eu jogava bola e disse que uma maneira de reunir as mulheres era através do futebol, promovendo torneios e trazendo para eles o debate sobre saúde e prevenção. Depois, Jo me levou para o Fórum de Mulheres de Pernambuco e começamos a discutir a questão da mulher lésbica dentro do movimento feminista”, comenta.
Juntas, Íris e Josenita também participaram de ações políticas importantes para os movimentos sociais do estado, a exemplo da construção do Conselho LGBT estadual.
“Após uma conferência em Brasília, a gente conseguiu colocar o ‘L’ na frente da sigla, o que fortaleceu a discussão. Hoje em dia, chega o mês de agosto, tudo que é movimento faz ação. A gente, a imprensa, todo mundo abordando essa temática de forma respeitosa, as meninas novas de mãos dadas na rua e o próprio governo mais consciente de que somos sujeitos políticos”, acrescenta Íris.
Militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Articulação de Mulheres Brasileiras, Silvia Camurça também acompanhou Josenita em diversas caravanas para eventos no sudeste, a exemplo do 9º Encontro Feminista Nacional Brasileiro, promovido no Rio de Janeiro.
“Foi um encontro que deixou muitos marcos no feminismo brasileiro, marcadamente popular, com a presença de mulheres negras, incluindo trabalhadoras domésticas. Uma coisa que ficou muito comentada nesse evento foi uma oficina dada por Josenita, ‘Minha Vida do Movimento e o Movimento na Minha Vida’, em que as pessoas faziam uma roda para refletirem sobre suas vidas e sobre o significado do movimento para elas”, destaca Camurça.
Com um ramo de flores colhidas no caminho para a oficina, Josenita apresentava ao grupo um texto escrito em uma página arrancada de um caderno, com algumas de suas reflexões sobre o cotidiano da militância.
“Era uma abordagem da pedagogia dialética: olhar as coisas por diferentes lados, fugindo de um pensamento maniqueísta. Até hoje faço essa oficina, assim como outras companheiras”, assegura a militante.
Para uma mobilização articulada no Dia da Mulher, por exemplo, Josenita sugeriu que cada manifestante levasse agulha, linha e um retalho de pano.
“Como diz a música de Gil, ‘é minha vida que eu quero costurar na sua’. Ela trouxe a ideia de a gente fazer uma bandeira de retalhos, na qual várias coisas foram escritas. Ao mesmo tempo que são coisas que você encontra em casa, memórias, eles foram sendo atados por linhas, representando articulação através da costura, um elemento da vida de muitas mulheres. Todo esse significado de nos ligar umas às outras, partilhar lutas e celebrar nossas vidas, tudo isso era Jô”, completa.
Experiência comunitária
Silvia e Josenita se aproximaram nos anos 1980, através da militância no recém-fundado Partido dos Trabalhadores (PT). “Ela participava da Equipe Popular de Camaragibe, um grupo autogestionado com rapazes e moças ligados à ala progressista da Igreja, que faziam animação cultural na cidade usando teatro e música. Era um tipo de militância muito comum na época, que levava a discussão de problemas sociais para a população”, comenta.
Marcado pela ampla presença de fábricas, o município de Camaragibe foi um importante espaço de articulação operária, à qual associavam-se movimentos populares e da juventude, no período da Ditadura Militar.
“Na frente da casa em que Jô morava com sua avó, havia um areal onde a equipe popular colocou um telhado e fez uma sede. Ali eram promovidas apresentações teatrais, debates e leituras, envolvendo crianças, mulheres e idosos”, lembra Silvia.
Nos espetáculos artísticos, Josenita já discutia a questão da homossexualidade e expressava sua identidade a partir de uma perspectiva distante da heteronormatividade corrente, sobretudo no contexto da periferia de Camaragibe.
Entusiasta da reciclagem, a militante tinha o hábito de adaptar ou customizar as próprias roupas, a partir de peças doadas ou compradas por ela.
“Nos anos 1980, por influência do movimento hippie, muitos militantes de movimentos populares se recusaram a seguir as tendências da indústria da moda, optando pelo que já se considerava um vestuário alternativo. Por serem do teatro, Jô e seus parceiros, muitos deles de gênero dissidente, acabavam chamando muita atenção pelas roupas chamativas, muitas vezes criadas e reformadas por eles mesmos, e por fugirem do que se esperava de uma moça ou um rapaz”, coloca Silvia.
Com a morte de sua avó, na década de 1990, Josenita arrecadou diversos livros por meio de doação e transformou o interior da casa em que vivia em uma biblioteca comunitária.
“Esse espaço funcionava como um ponto de encontro e até como uma creche, para mulheres da comunidade que não tinham onde deixar seus filhos. Era um espaço da Associação de Mulheres Entendidas, que Jô fundou depois de deixar o AHMOR, frequentado por mulheres da comunidade”, explica Verônica Ferreira, militante da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), pesquisadora e professora do curso de serviço social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Em profunda sinergia com sua comunidade, Josenita vivenciou as mais diversas lutas que permeavam o cotidiano de Alberto Maia. Na área de moradia, participou de mutirões para construção de moradias, inclusive da própria.
“A casa dela, em grande parte, foi feita em regime de mutirão, inclusive uma casinha pequena que ela fez para alugar e transformar numa fonte de renda. Apesar disso, muitas vezes, ela tinha dificuldade de cobrar os inquilinos. Muitas vezes, isso também acontecia com outras pessoas que ela recebia em casa, incluindo pesquisadores que vinham desenvolver trabalhos na região.Era alguém que vivenciava um espírito socialista mais profundo, de partilhar o que tinha e não o que sobrava”, ressalta Verônica.
Àquela altura, a casa de Josenita já havia se tornado um ponto de referência em seu bairro, em que até mesmo suas festas de aniversário convertiam-se em eventos comunitários.
“Era como estar num espaço feminista que se mantinha além do tempo e das mudanças, onde se observava algo que já não existia em outros lugares. Eu arriscaria dizer que Jô foi uma das pessoas mais firmes na convicção de que a construção do feminismo deve acontecer na luta. Ela vivia isso como experiência e não retórica: era anticapitalista e antirracista na prática”, diz Verônica.

Josenita participou de ações políticas importantes para as mulheres lésbicas – Foto: SOS Corpo Arquivo
Saúde
Josenita também promoveu campanhas de prevenção junto a profissionais do sexo, inclusive trabalhando a questão da AIDS, sobretudo nos anos 1980 e 1990, quando a doença era associada aos homossexuais.
“Foi uma luta muito grande contra a patente dos medicamentos antirretrovirais, uma conquista do movimento que permitiu a redução daquela mortandade imensa que houve no começo da epidemia”, coloca Carmem Silva, educadora do SOS Corpo e militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco.
Não raro, a militante é apontada como uma das primeiras feministas que pautaram a saúde sexual das lésbicas. Muito ligada à ginecologia natural, ela era entusiasta de novas práticas de autocuidado e questionava o poder médico, sendo ela mesma uma pessoa vivendo com questões relacionadas à saúde mental.
“Jô sempre foi uma lutadora na área da saúde, tenho boas memórias da defesa intransigente que ela fazia do Sistema Único de Saúde. Ela foi uma das feministas presentes na 8ª Conferência de Saúde que construiu o SUS. Seu acompanhamento médico acontecia na rede pública e ela trazia para o debate muitos problemas que enfrentava com relação à medicação”, lembra Carmem Silva.
Diagnosticada com esquizofrenia, Josenita convivia com as crises causadas pela doença com a ajuda de companheiras da militância. Quando real e imaginação se confundiam, eram outras mulheres que traziam as respostas de que precisava.
“Ela não reconhecia esse diagnóstico, mas tinha incapacidade para o trabalho em razão dos surtos. Vivia com a ajuda do BPC [Benefício de Prestação Continuada] e também tinha passe livre nos ônibus, o que facilitava sua circulação.
Não é possível, contudo, cravar que a condição tenha contribuído para o evento que levou ao falecimento da militante.
No dia 1 de março de 2020, em uma noite de domingo, Josenita foi encontrada sem vida no banheiro de sua casa. “O que a gente presume é que ela pode ter tido uma crise mais forte, caiu e não voltou. Ela não sofreu violência, não foi machucada, mas estava sozinha, o que foi muito dolorido”, lembra Verônica Ferreira.

Josenita foi uma das primeiras feministas a pautar a saúde sexual das lésbicas. Crédito: SOS Corpo Arquivo
Superação das dicotomias
Para Carmem Silva, Josenita deixou um legado de construção do feminismo popular vinculado à luta comunitária. Assim, sua atuação evidenciou também a luta de classes a partir da perspectiva do movimento lésbico.
“No Fórum de Mulheres de Pernambuco, a gente acredita que o sistema de dominação e exploração do mundo é um sistema de três cabeças: capitalismo, patriarcado e racismo”, acrescenta Carmem. Desta forma, a militante critica a perspectiva política que reduz o feminismo a um movimento identitário.
“É uma forma pejorativa de se referir aos movimentos de mulheres, negros e pessoas LGBT, como se isso gerasse uma especificidade. Ora, nós mulheres somos mais de 50% da humanidade, se nós somos específicas, os homens também são. Então, por que as questões das mulheres são específicas? Só se explica porque há uma certa esquerda que a luta de classes só se dá através de uma divisão social do trabalho entre burgueses e proletários”, argumenta.
Carmem defende que as lutas podem ter várias possibilidades e que todos os movimentos sociais atuam a partir de uma identidade coletiva.
“No movimento sindical, por exemplo, as pessoas têm uma identidade como sindicalistas, não é? Por que não são considerados movimentos identitários se a identidade de trabalhador é uma identidade muito forte, eu diria até fundante na vida de uma pessoa? Então tem um problema de construção teórico-política de organização, de como o mundo se organiza e de uma visão de movimentos mais importantes e menos importantes. Josenita nos ensina muito nesse momento em que estamos vivendo uma penetração do fundamentalismo religioso nas classes populares”, conclui.
Confira mais algumas fotos da luta e vida de Josenita:
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Guia de segurança em manifestações: seus direitos, dicas de proteção e cuidados coletivos
Guia de segurança em manifestações: seus direitos, dicas de proteção e cuidados coletivos
Veja 8 passos para ativistas realizarem protestos efetivos com segurança
A participação em protestos, além de ser direito fundamental e uma expressão democrática, é também uma ferramenta poderosa usada ao longo da história para conquistar direitos e desafiar os sistemas opressores. Organizados por lideranças, os atos dão visibilidade a causas, pressionam governos e empresas por mudanças e mobilizam a sociedade para a ação.
Ativistas e defensores de direitos humanos têm as manifestações como ferramentas de resistência. Foi assim no Pará. Grandes grupos de indígenas, quilombolas, professores e apoiadores do movimento resistiram por mais de 30 dias contra a Lei 10.820 – medida que poderia levar à substituição do ensino presencial pelo remoto e causar danos graves à educação oferecida às comunidades originárias e tradicionais do estado. A manifestação longa terminou apenas depois que a lei foi revogada pelo governador Helder Barbalho no Diário Oficial.
Mas, justamente por sua efetividade, protestos também são historicamente reprimidos. De modo que é preciso saber que esse tipo de ação direta oferece alguns riscos e por isso é necessário agir de forma coletiva para reduzir vulnerabilidades durante os atos.
Quando os manifestantes são pessoas negras, indígenas, quilombolas e LGBTQIAPN+, os cuidados devem ser maiores. Isso porque a polícia tem seus alvos preferenciais e costuma identificar pessoas dentro de determinados grupos étnicos e raciais como “ameaças à segurança pública”.
Conhecer direitos é essencial. E também é muito importante saber táticas de proteção que podem ser necessárias em algum momento de tensão.
Neste texto vamos pensar em estratégias de segurança física, psicoemocional, jurídica e digital. Estar preparado é fundamental para garantir a própria segurança e a de outros manifestantes. Isso inclui planejamento estratégico, conhecimento de direitos, táticas de autoproteção, entre outras precauções.

Foto: Ianca Moreira
O que eu preciso saber?
Para se manter em segurança antes, durante e depois das manifestaçõe é importante:
- 1- Conhecer os espaços
- 2- Estar sempre em coletivo e cuidando uns dos outros
- 3- Saber seus direitos diante de uma abordagem
- 4- Ter cuidados digitais
- 5- Capturar imagens com segurança
- 6- Usar roupas que protejam
- 7- Saber o que levar na bolsa
- 8- Pensar na segurança emocional
As regras podem mudar de acordo com o público que compõe o protesto, a localização, clima, tensão política, entre outras especificidades.
A advogada e antropóloga Maria Tranjan, coordenadora do Programa de Proteção e Participação Democrática da Artigo 19 – organização internacional voltada ao direito de liberdade de expressão – afirma que quando o assunto é segurança em protestos é relevante e urgente considerar, antes de mais nada, a proteção coletiva.
“A grande maioria das recomendações relacionadas à segurança em protestos são recomendações de ordem coletiva. E essas são as proteções que a gente tem mais dificuldade de desenvolver. Porque quando sou eu sozinha sofrendo um potencial risco pela minha atuação política, eu individualmente desenvolvo ações que vão me deixar mais segura. Quando a gente está falando de um protesto, não é uma única pessoa que vai fazer uma ação que vai torná-la mais segura. Ela até pode fazer isso. Mas se as outras pessoas no entorno dela também não estiverem se mobilizando no sentido de estarem mais seguras individual e coletivamente, a gente vai abrindo brechas de segurança”, explicou Maria Tranjan.

Indígenas ocuparam a SEDUC no Pará e exigiram a regovação da Lei 10.820
Foto: Nay Jinknss
Conhecer os espaços
Para as mobilizações físicas é importante entender o espaço físico no qual a estamos realizando uma manifestação. Entender a geografia do local facilita a movimentação e a comunicação entre os manifestantes.
A ativista ambiental e integrante da equipe de operações e logística da Escola de Ativismo, Melissa Meneses, afirma que é imprescindível saber se existem saídas de emergência e/ou alguma rota de fuga. Isso faz muita diferença na hora de elaborar uma estratégia de proteção. Lugares muito fechados ou sem rotas de saída podem se tornar perigosos em caso de confronto. O ideal é sempre escolher pontos estratégicos mais amplos e abertos.
“É importante entender bem o caminho que vai fazer, saber as saídas, se há delegacias ou hospitais por perto. Tenha pessoas observando todos os perímetros, o que acontece ao redor. E se escutar barulho, tente ter calma para evitar correrias e pessoas feridas e pisoteadas”, explicou Melissa.
É preciso identificar pontos de apoio, como locais para água e apoio jurídico e médico. Saber onde encontrar insumos ou pessoas que possam ajudar caso alguém seja preso ou ferido é essencial. Isso pode fazer a diferença para manter a resistência, principalmente durante os protestos mais longos. Se essa manifestação durar muitos dias, é preciso preparar uma série de insumos para a manutenção da vida, como água, alimentos, lugar para dormir.
Também é necessário pensar em escalas de segurança. “Durante a noite não pode acontecer de todas as pessoas dormirem ao mesmo tempo sob o risco de ter alguma intervenção das forças de segurança. Pense em turnos para o dia e noite e coloque as barracas com visões estratégicas”, disse Melissa.
Esteja em coletivo e cuidando uns dos outros
A coletividade é um dos princípios mais importantes dos protestos. Além de fortalecer a luta, estar acompanhado protege a si mesmo e aos outros. Em meio a multidões, é mais difícil se perder ou ficar isolado quando se está acompanhado. Se alguém se machucar, um companheiro pode ajudar a sair da área de risco e buscar socorro.
Além disso, a repressão tende a ser mais intensa contra pessoas isoladas e estar em grupo reduz o risco de abordagens violentas. Esse cuidado é essencial quando o público do protesto já costuma ser alvo do sistema de segurança, como pessoas negras, quilombolas e indígenas. Em uma manifestação, esses grupos podem ser mais afetados pela violência policial.
“Nesse caso é muito importante que a gente tente pensar em estratégias de segurança que sejam fáceis de compartilhar e saber como fazer essa comunicação para todo mundo. É importante que essas formas de comunicar sejam mais próximas possível de como elas se comunicam em casa. Precisa ser uma linguagem simples e acessível. Quando a gente está falando de etnias que falam em línguas diferentes, a gente precisa também pensar em como traduzir essas informações para que todo mundo que está ali realmente consiga entender o que está acontecendo”, explicou a advogada Maria Tranjan.
É importante também pensar em protocolos para crianças e idosos e pessoas com dificuldade de locomoção. Existem algumas experiências bem sucedidas nesse sentido, como fazer cordão de isolamento da manifestação no lugar onde estão as pessoas mais vulneráveis para garantir a integridade física delas.
Nos atos que for participar, proteja as pessoas menores de 18 anos. Lembre-se que de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), essas pessoas não podem ser detidas como adultos.
Cuidados jurídicos: quais são seus direitos durante uma abordagem
É direito dos cidadãos realizar protestos. A advogada Maria Tranjan explica que na teoria não se deveria, pelos princípios internacionais nem pela legislação nacional, ter que pedir autorização para realizar uma manifestação. Mas isso não acontece na prática.
“No Brasil a gente tem uma política, principalmente por parte das polícias militares, que se a manifestação não foi devidamente autorizada pelo Poder Judiciário, especialmente quando a gente está falando de ocupação de rodovia ou de espaço público, a polícia parte do pressuposto de aquela manifestação é ilegal, ainda que ela não seja legalmente falando, tanto internacionalmente quanto nacionalmente. Então é muito comum que se não há uma autorização judicial expressa, que as pessoas sejam detidas. E aí elas podem ser detidas tanto sobre o argumento de que aquela manifestação é ilegal, quanto sobre argumentos que na maioria das vezes são manipulados pelas forças de segurança pública, para dizer que essas pessoas estão impregnando alguma forma de violência”, disse Maria.
E se isso acontecer, existem recomendações que são relacionadas a esse momento da abordagem policial. Alguns cuidados podem evitar um agravamento de uma criminalização que já está acontecendo a partir do momento da detenção durante uma manifestação.
É comum que aconteçam prisões em manifestações e por isso é importante sempre que nessa avaliação de risco prévia e durante uma manifestação, exista um advogado ou algum tipo de apoio jurídico, como a Defensoria Pública ou algum Centro de Advocacia Popular que possa fazer apoio jurídico se for necessário. Esse cuidado é importante para evitar que aconteça uma prisão. E se acontecer, que as pessoas saibam como agir.
Como os manifestantes sabem que não estão cometendo ilegalidades, podem acontecer resistências a prisões em ações diretas. Mas se você for detido, mesmo sabendo da injustiça, evite entrar em confronto direto com os policiais e não entregue seu celular desbloqueado. “É ilegal o policial requisitar que você entregue seu celular desbloqueado, e muitas vezes se faz isso com uma forma de conter o andamento da manifestação. O ideal é que os nossos dispositivos estejam sempre muito seguros”, disse Maria Tranjan.
A advogada explica que durante as abordagens é preciso fazer avaliação de risco.“Se eu estou sozinha, meus companheiros estão longe e o policial me aborda e pede meu celular desbloqueado, eu não vou falar que eu não vou entregar porque eu corro risco de sofrer uma violência maior. E se eu já fiz essa análise de risco prévia e já apaguei do meu celular coisas que poderiam ser sensíveis, é muito pequena a chance desse agente prejudicar meus companheiros, a mobilização e o movimento do qual eu faço parte”, explicou.
Mas se durante a abordagem você está entre outras pessoas, há advogados ou representantes da Defensoria Pública ou do Ministério Público por perto, você está juridicamente respaldado, porque ali tem pessoas vendo que você não está desacatando o policial e nem tentando contra a integridade física de ninguém.

Foto: Nay Jinknss
Tenha cuidados digitais
Com o risco de ter o celular confiscado, é importantíssimo ter uma senha forte. Esse cuidado deve ser redobrado quando você está em uma manifestação, já que no seu celular provavelmente é possível acessar informações da rota daquela manifestação, redes sociais, planejamentos para os próximos dias, identificação das lideranças, além de outros dados.
Senhas fortes devem ter letras maiúsculas e minúsculas, números, caracteres especiais, sinais de pontuação, língua estrangeira e ser trocada com uma certa frequência. Para ser segura, a senha não deve conter dados pessoais (nome, sobrenome, data de aniversário), nem dados de familiares ou pets. Além disso, quanto mais curta a senha, mais fácil para decifrá-la.
Para se proteger de vazamentos de dados e roubos de contas, é importante usar recursos como a autenticação de dois fatores, também chamada de autenticação em duas etapas. Ela funciona com a sua senha e mais uma etapa de segurança. Desta forma, mesmo que alguém saiba a sua senha, não vai ter acesso imediato à sua conta. O recomendado, entretanto, é que o usuário use uma senha forte e diferente e única para cada tipo de serviço, assim como o PIN. Mas sempre lembrando que o melhor são senhas seguras e únicas.
Capture imagens com segurança
Apesar do risco de ter o celular confiscado, o lado bom de tê-lo em uma manifestação é a pela possibilidade de registrar a atuação abusiva das forças de segurança pública. Então se em uma mobilização o seu companheiro de luta está sofrendo algum tipo de abuso, você deve filmar. Mas como a gente faz isso com uma forma mais segura? Em primeiro lugar, evitando se identificar no vídeo.
Na hora de fazer uma filmagem, tenha cuidado de estar entre outras pessoas para não ser identificado como o responsável pelo registro de imagem. Seja discreto, não dê destaque ao celular, deixe-o próximo ao corpo e esteja em uma distância segura. Claro que isso também faz parte de uma análise de contexto e ao tornar evidente que você está filmando você pode contribuir para coibir uma violência – ao mesmo tempo em que expõe ao risco de sofrer uma.
Ao disponibilizar essa imagem é importante não postar em uma rede social pessoal, mas sim do coletivo, por exemplo. Se não existe uma conta do movimento, outra estratégia é marcar um horário e postar, várias pessoas, ao mesmo tempo para ninguém tenha certeza de quem captou a imagem.
Qual roupa usar?
Use roupas que te protejam, mas que sejam confortáveis e adequadas para a sua realidade. No geral, a recomendação é uso de tênis e camisas de manga longa com tecido mais grosso, mas isso depende da região, cultura e condições climáticas.
Usar um calçado confortável que te permita correr, se necessário, é mais adequado. Se não der pra ficar de camisa grossa que pode proteger de balas de borracha e de reações químicas, tenha um casaco por perto para vestir rápido se for necessário.
Também é importante ter um lenço no pescoço para cobrir o rosto se uma bomba de gás for lançada. Isso pode amenizar os efeitos da substância. Coloque a bolsa sempre para frente para evitar puxões.
Mas o que levar na minha bolsa?
Levar uma bolsa bem equipada pode fazer toda a diferença para garantir sua segurança e bem-estar durante um protesto. Tenha sempre:
– Documento pessoal
- – Celular carregado
- – Água
- – Guarda-chuva ou capa de chuva
- – Dinheiro em espécie
- – Casaco de manga comprida e de tecido grosso
- – Máscara PFF2/N95 ou lenço (protege contra gás lacrimogêneo)
- – Contato de alguém de confiança anotado em um papel
- – Saco plástico (para proteger dispositivos e/ou documentos da chuva)
Cuidados psicossociais
É importantíssimo pensar na segurança emocional das pessoas que estão participando de manifestações. A violência policial no Brasil é uma realidade preocupante, especialmente em contextos de protestos, onde há histórico de repressão. E a presença de agentes armados pode gerar gatilhos em muitas pessoas, especialmente em quem já vivenciou situações de abuso ou violência policial.
Isso pode levar ao medo, ansiedade e até crises emocionais, tornando o ambiente do protesto mais tenso e potencialmente perigoso.
“Isso afeta especialmente quando a gente está falando de pessoas não brancas. Essas pessoas podem ter gatilhos com o som da bala de borracha, com o gás lacrimogêneo. Não é só o gatilho físico que o gás lacrimogêneo gera, mas um gatilho emocional, que a pessoa pode ter um ataque de pânico, pode ter uma crise de ansiedade. Então, tem também uma parte de saúde mental que precisa ser elaborada coletivamente”, afirmou Maria Tranjan.
Cuidar da saúde emocional nas manifestações é essencial diante da possibilidade de violência e por isso é importante se preparar e refletir sobre seus limites. Estar acompanhado de pessoas de confiança, usar técnicas de respiração profunda para se acalmar e levar algo que te traga conforto, como um amuleto ou um aroma, pode ajudar.
Se sons altos, multidões ou agentes armados são um gatilho para você, tente se manter em áreas mais abertas e longe da linha de frente. Após o protesto, descanse e, se necessário, procure apoio emocional ou terapia.

Foto: Nay Jinknss
Lutar sempre, mas com segurança
“Para a luta continuar, temos que ser resilientes, ter atenção, postura, firmeza. Tudo isso influencia o movimento. Tem que lutar com segurança, se auto protegendo e protegendo as pessoas ao seu redor. A luta em protestos é legítima, válida, pacífica e fundamental para a mudança social”, afirmou Melissa, da Escola de Ativismo.
“Mesmo diante das infinitas dificuldades que tem se colocado para essas manifestações, continuem. A gente precisa disputar esses espaços, essas narrativas. E só nas ruas, só nas redes, só nesses processos de mobilização a gente consegue, de fato, imprimir alguma mudança”, disse Maria Tranjan, da Artigo 19.
TEXTO
Letícia Queiroz
jornalista, ativista quilombola e antirracista
publicado em
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Comunidades tradicionais do sul do Maranhão se reúnem para construir estratégias de luta e de proteção coletiva
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Evento destacou as ações de resistência dos povos que protegem os territórios em meio ao avanço do agronegócio.

Faixa estendida no encontro alerta para perigos representados pelo projeto do Matopiba l Foto: CPT/Escola de Ativismo/Reprodução
A Comissão Pastoral da Terra Maranhão (CPT-MA) realizou, entre os dias 13 e 16 de fevereiro, o 2° Encontro das Comunidades Tradicionais da Região Sul do Maranhão. O encontro aconteceu na comunidade Boa Esperança, na zona rural de Formosa da Serra Negra, no Maranhão, com objetivo de compartilhar experiências entre as comunidades e suas formas de resistência.
Durante os dias de reunião foram traçadas estratégias para o fortalecimento dos povos que enfrentam o avanço da violência, do agronegócio e de projetos como o MATOPIBA que ameaçam biomas, a cultura, a alimentação, o bem viver e a vida nas comunidades.
O evento apoiado pelo Fundo Casa contou com a participação de mais de 75 pessoas das comunidades Boa Esperança, Brejo Escuro, Tirirical, Angico, Pau Amarelo, Imburuçu, São Pedro, Vila São Pedro, Galheiros e Quirino, além das Organizações Escola de Ativismo e Justiça nos Trilhos.
O encontro contou com a partilha da comunidade Boa Esperança, que fez memória dos ancestrais que fizeram a defesa do território.
Entre as dificuldades enfrentadas pelas comunidades estão o desmatamento, ameaças de morte e a grilagem de terras. A maioria das comunidades citou que é afetada pela pulverização de agrotóxico e que até a água, que antes era potável, está comprometida. As comunidades ainda precisam enfrentar difícil acesso à saúde e educação e a falta de apoio de órgãos públicos para resolver as questões de invasões territoriais.

Comunidades relatam enfrentar desafios de acesso à sauúde e educação além de ataques do agronegócio e da grilagem l Foto: CPT/Escola de Ativismo/Reprodução
Também são problemas comuns entre os povos e comunidades o envenenamento de babaçuais e de outras árvores, a destruição de roças, incêndios criminosos e tentativas de expulsão por parte de fazendeiros e grileiros.
Um dos dias da programação foi dedicado à explanação sobre os impactos do MATOPIBA – região formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – e sobre o histórico de violência que tem causado conflitos que tiram a vida das comunidades tradicionais.
A advogada popular Fernanda Souto, da Justiça nos Trilhos, explicou questões jurídicas às comunidades e falou sobre leis, licenças, processos e consultas prévias. Fernanda deu orientações sobre como agir quando houver intimidações e, em parceria com a Escola de Ativismo, falou sobre segurança das comunidades.
Márcia Palhano, coordenadora da CPT-MA, informou às comunidades sobre o Projeto de Lei de Iniciativa Popular contra a pulverização aérea de agrotóxico no estado. O documento, que está em processo de coleta de assinaturas, foi lido e os povos foram orientados sobre a forma correta para colher assinaturas. Também foi aplicado um instrumento comum às comunidades para fazer levantamento das perdas naturais e da violência que o MATOPIBA tem causado a esses povos.
Ao final do evento foram compartilhadas as próximas agendas da região. As comunidades saíram do evento acreditando que a luta e a resistência são as únicas formas de manter uma vida digna no campo.
A resistência se sustenta na coletividade, na partilha de conhecimentos e na fé no futuro. Cada ato de defesa da terra é um ato de reafirmação da existência de um povo, de sua cultura e de sua conexão com a natureza. Assim, a luta não é apenas por um território físico, mas por vida digna e pelo direito de viver em harmonia com a terra, como fizeram os ancestrais e como farão as futuras gerações.
TEXTO
Leticia Queiróz
jornalista e ativista quilombola e antirracista
publicado em
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Artista indígena faz mural para abordar racismo ambiental em contexto urbano
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Produção foi apoiada pelo edital ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia”, da Escola de Ativismo

Quais são os desafios de pessoas indígenas vivendo em contextos urbanos? Como elas são afetadas pelo racismo ambiental? Essas foram algumas das perguntas feitas em um vídeo da ativista e artista indígena Camila Canela. Apoiado pela Escola de Ativismo como parte do edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia” o material lançado nesta sexta-feira (7) traz reflexões sobre um problema estrutural que combina discriminação racial com injustiças ambientais.
O vídeo pode ser visto no instagram e no canal do Youtube da Escola de Ativismo.
O projeto foi pensado e desenvolvido por Camila Canela, que também é cientista social e pintora. A ativista afirma que o racismo ambiental impacta fortemente grupos étnicos vulnerabilizados e ao mesmo tempo em que as cidades não reconhecem as ocupações ancestrais, promovem apagamento e discriminação.
Atualmente, cerca de 60% dos indígenas vivem fora de territórios. E cada vez mais a degradação ambiental, comum nas cidades, e a dificuldade de acesso a recursos naturais e culturais coloca os indígenas em vulnerabilidade.
Em entrevista para a Escola de Ativismo, ela falou sobre cada elemento em um muro, com temas ligados à ancestralidade, espiritualidade e resistência. “O milho tem um significado espiritual muito importante para o meu povo, para a minha etnia, e também para vários povos. E eu quis trazer o milho colorido para simbolizar a diversidade de povos indígenas. Cada detalhe foi pensado. A arara-azul, importante para os povos indígenas, a onça, que fala muito sobre resistência e sobre defesa do seu território. A criança simboliza a sensibilidade e a importância de defender a infância. A borboleta comum da Mata Atlântica, que está em extinção, apareceu quando fui pintar. A maioria dos meus trabalhos traz isso, de lutar para não ser extinto Todos nós, seres vivos, estamos lutando pra não estar em extinção”, informou Camila.
Camila conta que terminou o trabalho mais forte e inspirada.
“Foi um processo muito especial, muito intenso e de muita entrega. Fiquei muito feliz com o resultado do vídeo e do mural. Foi um processo de muita paciência e respeito. Aprendi muito, me inspirou, e vou levar muita coisa que aprendi para o meu trabalho, de me superar e de me colocar cada vez mais como uma comunicadora. Sou muito grata”, disse.
O edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia”, lançado em julho de 2024, selecionou projetos para apoiar a produção de conteúdos sobre clima e democracia. O objetivo principal é fortalecer a comunicação da agenda climática no Brasil através da produção de conteúdos informativos e criativos em formato audiovisual, sempre protagonizados por ativistas.
“Temos a chave da mudança”: jovem precursora do movimento de cotas para trans no RJ fala sobre trajetória no ativismo
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No Dia da Visibilidade Trans, conheça as lutas e a trajetória de Zuri, ativista do movimento trans e negro que luta contra o racismo, transfobia e cisheteronormatividade.

O que leva uma pessoa a dedicar sua vida a uma causa? Para a ativista Zuri Moura, o bem-viver de pessoas LGBTQIAPN+, em especial de pessoas trans e travestis, foi a razão.
Sonhadora e firme nas palavras, Zuri luta contra a transfobia e o racismo e tem como missão colaborar na construção de um lugar confortável e justo para todos os gêneros, raças e identidades. Por isso afirma que a coletividade deve exigir garantias e direitos sociais e que toda a população pode ajudar a mudar a realidade atual. “É preciso que a sociedade se comprometa em trair o pacto da sua cisgeneridade para avançar em direitos sociais a população trans e travesti”.
A trajetória da jovem da periferia do Rio de Janeiro começa muito cedo, quando, entre a infância e a adolescência percebeu que a opressão a privava de viver de forma livre e plena. A situação despertou em Zuri a necessidade de romper barreiras do conservadorismo e a olhar na direção da sociedade em que sonhava.
Ao ingressar na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2021 para cursar Serviço Social, Zuri percebeu que o espaço não havia sido pensado para educar corpos trans e negros. Por isso, idealizou e fundou o primeiro coletivo de pessoas trans da UFF como um mecanismo de sobrevivência a toda violência transfóbica. Foi uma das protagonista na luta pela política de cotas para pessoas trans no RJ e a UFF se torna 1ª universidade federal do Rio a criar cotas para trans.
Ela também é militante do movimento negro, articuladora política da Articulação de Políticas Indígenas e Quilombolas (APIQ), assessora de Equidade e Inclusão na Pró-reitoria de Assuntos Estudantis,pesquisadora na questão étnico-racial, gênero e sexualidade, equidade e inclusão, diretora executiva da Dandaras Assessoria em Direitos Humanos, membra do Perifa Connection e princesa da Casa de Ewà na cena ballroom brasileira.
Aos 24 anos, Zuri é força, mas também é poesia. Fala sobre beleza, cultura, amores… E foi pensando na sua trajetória, nas lutas do passado, desafios do presente e na expectativa para o futuro que nós, da Escola de Ativismo, a convidamos para uma conversa no Dia da Visibilidade Trans. Inspire-se na caminhada de Zuri e se junte na construção de transformações significativas para pessoas trans e travestis.
Escola de Ativismo: Quem é a Zuri?
Zuri Moura: Responder “quem é Zuri” pra mim é pensar em quem eu posso ser dentro de todas as minhas potencialidades, Zuri é filha, é irmã, é neta, é mãe. Zuri é a junção de toda a ancestralidade que me cerca e me formou enquanto sujeito. Desde nova fui moldada e criada a fim de suprir as expectativas da cisheteronormatividade, sempre falhei. E por entender o meu erro descobri quem é a Zuri. Ser uma jovem travesti negra viva no Brasil e advinda das periferias do Rio de Janeiro, traz a ideia de pensar em todas as formas de transcender o imaginário do sadismo racista e patriarcal.
"A minha trajetória começa no grito entalado na garganta de uma vida, desde nova me incomodei com o sistema de poder que era colocado as mulheres da minha família"
Quando e como começou o seu ativismo?
A minha trajetória começa no grito entalado na garganta de uma vida, desde nova me incomodei com o sistema de poder que era colocado as mulheres da minha família, e as violências que vivenciei dentro de casa fez despertar a inconformidade de uma nova sociedade. Sempre influenciada a investir na educação enquanto uma alternativa sistêmica, diziam meus avós e minha mãe “podem roubar tudo de você menos a sua inteligência”. E assim acreditei.
Fui uma criança LGBTI+, mas somente na adolescência tive a oportunidade de me aproximar de debates sociais, climáticos e alinhar a força da comunicação popular enquanto uma ferramenta de mudança para a periferia e populações marginalizadas. Antes de vivenciar o marco da minha militância, eu tive que lutar muito e correr bastante para ingressar na universidade (2021), local onde vivenciei o peso da solidão de ser uma travesti negra naquele espaço, assim, amadureci a consciência de que aqueles muros não foram feitos para educar corpos como o meu, sendo assim busquei a transgressão, idealizei e fundei o primeiro coletivo de pessoas trans da UFF [Rede Transvesti UFF], sendo um mecanismo de sobrevivência a toda violência transfóbica e ferramenta de mudança daquele cenário por meio de um aquilombamento de identidades transvestigêneres universitárias.
Esse foi o pontapé inicial, porque eu sabia que havia muito trabalho a ser feito dentro daquela instituição, o movimento estudantil precisava transcentrar as suas ideias, assim, dirigi junto ao coletivo uma cadeira específica dentro do Diretório Central dos Estudantes uma pasta específica para debater sobre as nossas pautas e demandas. Nós conseguimos, e fui eu a primeira diretora travesti do DCE da UFF, na gestão “Pra Virar o Jogo”.
Dentro da minha gestão alimentei o sonho do movimento social em transformar as paredes das universidades por meio da política de ação afirmativa para pessoas trans e travestis, tornando a UFF pioneira nesse debate dentro do estado do Rio de Janeiro. Nesse caminho de luta dentro da universidade eu trilhei o caminho de transcentrar as pontas e enegrecer os centros de debate de toda a universidade. Assumi essa liderança foi e é uma tarefa muito árdua, mas enquanto houver fôlego de vida, haverá resistência.
Você participou de uma luta pela implementação de cotas universitárias para pessoas trans. Você pode contar para gente um pouco mais sobre esse processo? E também sobre o por que isso é tão importante?
Desde a partida da minha organização do movimento trans universitário a fim de ampliar direitos dentro daquele espaço, nós pudemos notar que de fato éramos muito poucas, afirmados em dados de 0,03% segundo a ANTRA, mas sabíamos que o sonho de adentrar os muros da universidade era um desejo que perpassa muitas identidades. Assim construímos a emergência de debate acerca da política de cotas trans da universidade. No início do coletivo não tínhamos muita legitimidade, mas durante a efervescência do movimento estudantil e em forte articulação com as bases institucionais nós conseguimos romper algumas barreiras do conservadorismo, levando as nossas demandas de maneira focalizada e central para com a reitoria da universidade. Assim, assumimos um compromisso junto à instituição em construir a política de maneira pioneira em todo estado do Rio de Janeiro.
Percorridos Grupos de Trabalho, Grupos de Discussão e incansáveis mobilizações de base em todos os campis da UFF, nós decretamos a latência da questão enquanto algo “cis”têmico da sociedade, sendo necessário a criação de uma Comissão Permanente Transvestigênere que dialogasse e acolhesse as demandas da população trans e travesti universitária. Estivemos enquanto movimento estudantil e movimento social extremamente organizades a fazer surgir a transgressão dos muros da universidade, sob o lema: “Aldear, Aquilombar e TRANSformar a UFF”.
Nenhum direito social surge da benevolência do estado, houve muita violência institucional e muita resistência, mas por pressão social e do movimento trans universitário organizado tivemos o júbilo de glória em aprovar a reserva de vagas em 2% em todos os cursos de graduação e pós-graduação em todos os cursos e campus da Universidade Federal Fluminense. Esse foi um marco muito importante para a nossa comunidade porque delimita o fim da construção de uma ciência e educação sem a contribuição e colaboração das nossas potencialidades, a partir de 2025 teremos pessoas trans e travestis disputando o academicismo branco e construindo novas epistemologias de saberes. Esse foi um passo inicial de devolver aquilo que nos foi roubado pela colonialidade, ainda temos muitos desafios pela frente mas seguiremos adiante reflorestando as mentes ociosas e afirmando que jamais se irá construir um Brasil e uma sociedade sem nossos corpos e identidades.
"A beleza é uma construção diária, porque sabemos que o conceito de belo não chega a corpos negros, indígenas e quilombolas"
Quais os principais desafios e batalhas que o movimento trans e o movimento LGBTQIAPN+ enfrentam hoje em dia?
Ainda nos dias de hoje construímos rotas de fuga da sobrevivência, sendo as esquinas de prostituição uma realidade latente a nossa população, em cerca de 90% [Dossiê de Violências Antra], mas precisamos entender que esse caminho é alocado dentro da realidade material da falta de acessos e oportunidades. A prostituição social dos nossos corpos é inerente a nossa existência, a nossa humanidade é colocada em segundo plano de análise, nosso corpo é um produto, mera mercadoria. Quando nos levantamos de maneira coletiva para pedir garantias e direitos sociais é para que nossa identidades e narrativas sejam consideradas dentro do projeto de cidadania, pois queremos acessar a saúde universal e igualitária fornecida pelo Sistema Único de Saúde com enfoque aos cuidados necessários da população trans e travesti. Queremos acessar as escolas e universidades e queremos maiores oportunidades de trabalho. A nossa luta é diária e circunscreve os 365 dias do ano, eu quero que enxerguem os nossos corpos todos os dias e não somente em datas comerciais de visibilidade a nossas identidades.
Vamos falar sobre beleza? Como a sua relação com a beleza e a estética tem impactado sua jornada? Você considera essa conexão com a autoestima importante para falar sobre identidade e liberdade?
A beleza é uma construção diária, porque sabemos que o conceito de belo não chega a corpos negros, indígenas e quilombolas, principalmente pra pessoas trans e travestis. Mas quando giramos o nosso referencial para quem somos e quem podemos ser, com uma representação acessível a nossa realidade, a construção de beleza se torna uma possibilidade.
Eu sou integrante da comunidade ballroom, onde sou princesa da Casa de Ewá, e desde a nossa estreia como coletivo negro no documentário Segura Essa Pose, o nosso grito é para enaltecer a beleza negra, trazendo referências e alusões a cultura afrobrasileira, pra que não mais o conceito de beleza branca seja determinado sobre a nossa pele, nossos fenótipos e nossa ancestralidade.
Me enxergar enquanto um corpo belo, bonito e desejado só foi uma realidade quando adentrei a cultura ballroom, local onde fui permitida a florescer e frutificar. Hoje enxergo que a beleza está para além de ter um cabelo liso ou crespo, nariz fino ou largo, pele clara ou retinta, a real beleza é você sustentar a realidade de ser um corpo dissidente todos os dias nessa sociedade.

Quais mudanças são necessárias na sociedade para que haja inclusão e respeito às pessoas trans?
São muitos desafios postos à comunidade LGBTI+ e principalmente a comunidade trans e travesti, mas ainda hoje o que mais carecemos é básico: humanidade. Somos ainda hoje o país que mais mata, extermina, violenta e segrega direitos a esse grupo social.
Para que possamos construir mudanças significativas para essa população é preciso que a sociedade se comprometa em trair o pacto da sua cisgeneridade para avançar em direitos sociais a população trans e travesti.
Precisamos pensar de maneira urgente o cenário histórico de violência contra esse grupo. Nós não somos representadas, ouvidas e quiçá temos nossas vozes ampliadas. Ainda somos categorizadas enquanto subumanas, somos pesquisadas mas não consideradas enquanto agentes de pesquisa. Nós, juventude trans e travesti, fomos ensinadas pelas nossas matriarcas o valor da luta e hoje estamos organizadas e temos a chave dessa mudança social, cabe a sociedade aceitar o mundo onde pessoas trans e travestis poderão viver com maior dignidade.
Sabendo que você é inspiração para tantas pessoas, qual mensagem você deixa neste dia da visibilidade trans?
Pensar nessa mensagem me rememora muitas vivências, mas acredito que uma mensagem seria: sabemos de todos os desafios colocados à nossa realidade, mas em primeiro momento tenha consciência de que família é quem te abraça, apoia e respeita sendo quem você é e quem você quiser ser.
Se resguarde no coletivo, construa as suas famílias e seus amores. Hoje se permita sonhar novamente, não desista de amar e ser amada, de ter uma educação, de ter um trabalho, de realizar o sonho de uma viagem, nossas vidas são além de dor e sofrimento, nós podemos viver com maior dignidade. Saiba que você carrega uma tecnologia ancestral e imaterial: seu corpo. Cuide bem dele.
TEXTO
Leticia Queiroz
jornalista, quilombola e ativista antirracista
publicado em
24/09/2024
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As redes sociais e sua aliança com a extrema-direita: o que isso significa para a democracia?
As redes sociais se alinham com a extrema-direita: o que isso significa para a democracia?
Especialistas da área de tecnologia explicam que os interesses econômicos das big techs estão unidos com os interesses políticos da direita radical. Entenda a ligação e como isso pode afetar a sociedade dentro e fora do ambiente digital.

A aliança das grandes plataformas digitais com a extrema-direita está cada vez mais explícita. Em uma época em que o populismo digital se tornou uma “arma letal”, há quem encontre o cenário perfeito para manipular a opinião pública, promover discursos de ódio na internet e desestabilizar a democracia. Especialistas da área da tecnologia alertam que o pacto ideológico que envolve as big techs e a direita radical no Brasil e no mundo pode causar consequências gravíssimas.
No dia 7 de janeiro, Mark Zuckerberg, dono da Meta – empresa controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp – anunciou mudanças nas políticas de moderação de conteúdo de suas plataformas. Em sua declaração ao mundo, Zuckerberg disse que os moderadores profissionais utilizados até agora são “muito tendenciosos politicamente” e que era “hora de voltar às nossas raízes, em torno da liberdade de expressão”.
Onda conservadora, liberdade de expressão e Trump
As mudanças nas políticas da Meta, empresa de Zuckerberg, têm o objetivo de eliminar ou alterar a política de combate à desinformação promovida pela empresa a partir de pressão de governos e setores da sociedade civil, nos últimos anos. O anúncio ocorreu dias antes da posse de Donald Trump e também destaca o seu posicionamento de alinhamento com o presidente dos Estados Unidos e com a extrema-direita internacional.
Além de Zuckerberg, Sundar Pichai (CEO do Google) e Elon Musk (CEO do X – antigo Twitter) participaram da posse de Trump no dia 20 de janeiro. A presença dos CEOs das big techs na cerimônia de um extremista escancara que essas plataformas são geridas por pessoas que têm um lado. Na posse, Elon Musk, que agora também integra o governo Trump, fez uma saudação nazista. O bilionário caminha na mesma direção de Zuckerberg, sendo contrário à ideia de regulamentação das redes sociais para defender uma “liberdade de expressão absoluta e o fim da censura” e ao mesmo tempo a radicalização, o extremismo, os discursos de ódio e o alto risco para a democracia.
O fim do programa de checagem dos fatos ainda está restrito aos EUA, mas outros mecanismos do Programa de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), promovido pela empresa, que dizem respeito à moderação de conteúdo que violem direitos humanos já estão em vigor no Brasil. Com as mudanças nas diretrizes, a Meta agora permite, inclusive, que publicações que reforçam preconceitos raciais, religiosos, de gênero e contra outros grupos minorizados sejam feitas. As novas regras terão impacto devastador para a vida das pessoas, em especial no Brasil, país que mais mata transexuais no mundo, tem alto índice de intolerância religiosa e está entre os primeiros em assassinato de mulheres.
Risco à democracia
Além de ataques contra pessoas, grupos e comunidades, as plataformas de Zuckerberg e Musk representam alto risco para processos democráticos. Sem regulação, as principais redes sociais são frequentemente utilizadas para espalhar desinformação que confundem o público e influenciam decisões políticas e até processos eleitorais legítimos. E a direita radical tem consciência de que é beneficiada.
A coordenadora executiva do Intervozes, Ana Mielke, explica que as redes sociais sem regulação podem enfraquecer os processos democráticos. Mas nem sempre foi assim. Há alguns anos o uso de redes sociais impactou a democracia de forma positiva, provocando a diversidade de vozes e atuando em torno de assuntos de interesse público.
“A internet já teve papel fundamental na luta contra as desigualdades econômicas e sociais da globalização no movimento Occupy Wall Street e também nas diferentes manifestações que englobam a chamada Primavera Árabe. Porém, a segunda década dos anos 2000, após a crescente privatização do ambiente digital, com o crescimento de grandes big techs como Google (Alphabet) e Facebook (Meta) produziram um fenômeno inverso ao da democratização, circunscrevendo os debates públicos a circuitos específicos, bolhas informacionais, que por sua vez, são mediadas por interesses privados e comerciais, pois visam lucro”.

Ana Mielke – coordenadora executiva do Intervozes l Foto: Arquivo Pessoal
Ana explica que essas mudanças recentes conversam muito com o alinhamento evidente entre os interesses econômicos das plataformas digitais e os interesses políticos da extrema direita.
“Para a extrema-direita, a regulação das plataformas implica pôr freio à disseminação massiva de desinformação, principal método utilizado por este segmento para difundir seus ideais e conquistar mentes. A desinformação é a principal estratégia da extrema direita nos tempos atuais. Combatê-la é criar barreiras para o crescimento deste campo. Aqui vale destacar que esta estratégia da extrema direita cresceu e se desenvolveu em função do modelo de negócios das próprias plataformas, que privilegiam conteúdos que geram cliques e engajamentos, não importando se tais conteúdos são corretos, factuais ou respeitem os direitos humanos”, afirmou.
Ana, que também integra o grupo de pesquisa ‘Violência em tempos sombrios’, ligado ao Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), que pesquisa temas como desinformação, novas tecnologias e autoritarismo algoritmo, explica que os usuários radicais utilizam as ferramentas beneficiando o lucro das mesmas. Como o modelo de negócio das plataformas é baseado em cliques e engajamento – mais fértil ao polemicismo, especulação, sensacionalismo e desinformação – as informações íntegras e credíveis do campo progressista não têm espaço para competir com o mercado do sensacionalismo.
Paulo Faltay, coordenador do Estopim – Laboratório em Tecnopolítica, Comunicação e Subjetividade na UFPE – e pesquisador das relações entre tecnologia, comunicação e sociedade, afirma que essas plataformas agem ideologicamente de uma maneira deliberada fazendo com que o algorítmico privilegie certos discursos.
“São privilegiados os discursos sensacionalistas, discursos de ódio, discursos racistas, misóginos, xenofóbicos, lgbtfóbicos ou teorias da conspiração, discursos muitas vezes dúbios. Como forma de capturar a atenção, de manter as pessoas engajadas nessas plataformas. Essas medidas de checagem e de moderação, elas foram um certo band-aid que essas plataformas passaram a construir por uma pressão do povo e da sociedade civil organizada, de movimentos sociais”, disse Paulo.
Ambientes digitais inseguros e desregulados promovem o lucro acima dos direitos fundamentais. Tanto a extrema direita quanto os CEOs das plataformas são beneficiados. Faltay acredita que essa aliança cada vez mais forte deve piorar o ambiente informacional em que estamos inseridos.
“A gente está mais vulnerável quanto à integridade informacional desse ecossistema de informação. Da internet que perde qualquer tipo de anteparo, barreira que impedia esses discursos, sejam discursos discriminatórios, violadores de direitos, discursos mentirosos que agem para confundir, desinformar, ter uma informação que não é inteira. Então todo esse cenário de integridade informativa, de boa informação no ecossistema midiático de plataformas da internet, ele perde, ou tende a perder, aponta para um horizonte em que essas grandes companhias, essas big techs vão estar desligando, destruindo pequenos anteparos que fizeram”, explica.

Paulo Faltay pesquisa as relações entre tecnologia, comunicação e sociedade. Foto: Arquivo Pessoal
O pesquisador diz que, como as plataformas são estadunidenses, existe uma aliança forte de extrema-direita capitaneada por Trump, que é de não impor qualquer tipo de freio, limite e regulações. “Isso eu acho que está muito evidente no discurso do Zuckerberg. Ideologicamente, esses grandes executivos do Vale do Silício, das Big Techs, estão indo nessa dimensão ideológica, mesmo subjetiva e masculinista. Então, existe uma adesão, não só oportunista, mas existe uma adesão de valores também”.
Viés estadunidense
A jornalista e Educadora Popular em Cuidados Digitais da Escola de Ativismo, Nirvana Lima, afirma que todos os acontecimentos nos mostram que a internet não é neutra. “A internet, enquanto uma vasta rede global, coexiste de maneira intrínseca com a soberania digital dos Estados Unidos. Está cada vez mais evidente que a relação entre tecnologia e política é indissolúvel. E que a política utiliza a tecnologia como um instrumento para consolidar seu poder, ultrapassando limites comerciais e invadindo o campo geopolítico”.

Nirvana Lima é educadora popular em Cuidados Digitais da Escola de Ativismo l Foto: Arquivo Pessoal
Esse favorecimento algorítmico a determinados grupos de usuários em detrimento de outros acontece no Brasil. A eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro foi amplamente marcada pelo uso intenso e indevido das redes sociais. Em 1º de janeiro de 2019, na posse de Bolsonaro, seus apoiadores gritavam “WhatsApp” e “Facebook”. A manifestação mostra que os eleitores viam essas plataformas como fundamentais para o crescimento do bolsonarismo e para a eleição do extremista.
Enfrentar monopólios
Diante desse cenário, Ana Mielke, do Intervozes, pontua que é preciso enfrentar o monopólio privado no campo das tecnologias. “Isso é possível apostando na construção de políticas públicas de desenvolvimento tecnológico, o que envolve, por exemplo, plataformas públicas, soberanas e de códigos abertos, especialmente quando falamos de aplicativos de mensagem, como o Whatsapp, fundamentais para o direito à comunicação no Brasil. Isso também e, por exemplo, implica proibir que serviços públicos estejam vinculados à obtenção de perfis (cadastro) em plataformas privadas. Esta proibição poderia ser realizada de imediato, por meio de legislação, e poderia se estender, por exemplo, à recusa do uso de plataformas com o Google para acessar serviços educacionais públicos”, disse.
Paulo Faltay acredita que no campo mais coletivo temos que lutar por regulamentações. “É a ferramenta que a gente tem. Veja que a justiça é uma ferramenta que eles estão atacando. As legislações, as cortes constitucionais dos outros países, enfim, uma certa ideia que está girando em torno da soberania digital. Então, é preciso lutar por uma regulação e lutar por uma soberania. Na disputa que a gente tem hoje, pragmática, concreta, acho que a forma de combater esse retrocesso é tendo legislações. Falando que essas empresas estrangeiras, americanas, norte-global, obedeçam às legislações dos países, pensando aqui do Brasil”.
A educadora popular em Cuidados Digitais da Escola de Ativismo, Nirvana Lima, diz que para não adoecermos diante desse cenário, um bom ponto de partida é entender exatamente o que estamos enfrentando. “Desenvolver competências e habilidades digitais é essencial para um bem-viver na internet, o que inclui a capacidade de avaliar criticamente não só o nosso consumo online, mas também as lógicas sociopolíticas das plataformas. Também é crucial reconhecer que a atenção e o tempo que dedicamos ao ambiente digital são uma valiosa moeda. É preciso desenvolver um relacionamento menos nocivo com as telas que nos cercam, priorizando o autocuidado não apenas no ambiente online, mas, sobretudo, no offline. A desconexão, mesmo que temporária, é essencial para alcançar um equilíbrio entre tais mundos cada vez mais difíceis de separar”, conclui.
O que fazer?
Diante desse cenários, nos perguntamos: de que forma podemos continuar na internet? Existe uma forma de enfrentar esse retrocesso de forma segura? Especialistas acreditam que soluções para esses problemas sejam difíceis, mas há alguns caminhos. Afinal, as redes sociais alcançaram um papel fundamental na vida digital das pessoas e a internet também é uma ferramenta de luta de milhares de movimentos que cobram melhores condições de vida para diferentes frentes.
Um dos caminhos para o campo individual e coletivo é ter sempre cuidados digitais ao usar todas as plataformas, exigir regulação e medidas para evitar qualquer tipo de discriminação e cobrar que o parlamento brasileiro que legisle para a proteção de direitos. E enquanto cobramos, podemos optar pelo uso de aplicativos alternativos.
Embora não estejam em evidência, como as redes sociais aliadas à extrema-direita, há outros aplicativos com as mesmas ferramentas, funcionalidades e layouts semelhantes disponíveis para download.
- Signal, ao invés de Whatsapp
O Signal possui vantagens se comparado com alguns outros mensageiros e é usado predominantemente por pessoas que se preocupam com segurança online. O aplicativo móvel oferece serviço de envio de mensagens instantâneas e chamadas protegidas com um protocolo de criptografia extremamente seguro. Por oferecer privacidade e baixíssima (quase nula) possibilidade de invasões, a recomendação é que ativistas, comunicadores e defensores de direitos humanos que trabalham com informações sensíveis e confidenciais ou apenas pessoas querendo mais privacidade nas suas comunicações.
- Mastodon, no lugar do X
O Mastodon é livre de algoritmos e possui moderação autogestionada. Na plataforma é possível construir um público de confiança, com possibilidade de gerenciá-lo sem intermediários e controlar sua própria linha do tempo. O aplicativo suporta mensagens de áudio, vídeo e imagem, descrições de acessibilidade, enquetes, avisos de conteúdo, avatares animados, emojis personalizados, controle de corte de miniaturas e muito mais, para ajudá-lo a se expressar online.
O aplicativo possui layout semelhante ao Instagram, mas está livre dos algoritmos tóxicos. Com o Pixelfed é possível explorar e compartilhar fotos e vídeos. O aplicativo oferece mais privacidade e segurança e pode ser usado para interação e troca de mensagens instantâneas. Já o Loops, criado pela Pixelfed, é focado em publicação de vídeos curtos, similar aos stories e à plataforma chinesa TikTok.
- Friendica, no lugar do Facebook
Friendica (antes conhecido por Friendika) é um software de código aberto que implementa uma rede social distribuída. Tem uma ênfase em opções avançadas de privacidade e uma fácil instalação. Objetiva a comunicação com tantas outras redes sociais quanto forem possíveis.
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Para maioria dos sete jurados, motorista assumiu risco ao dirigir bêbado e em alta velocidade

Foto: Reprodução via LabCidade
José Maria da Costa Júnior, que dirigia embriagado, em alta velocidade quando atropelou em 8 de novembro de 2022, a ativista feminista e cicloativista, Marina Harkot, foi condenado a 12 anos de prisão pela maioria do juri na madrugada do 24/1, no Fórum da Barra Funda.
Costa Júnior poderá recorrer em liberdade da pena por homicídio doloso qualificado por dolo eventual (ter colocado a vida da pessoa em risco ao assumir certas ações), embriaguez ao volante e omissão de socorro (fugir sem prestar auxílio à vítima).
“A gente segurou uma onda muito pesada, muito doída, muito forte. E a gente pode se considerar vitorioso e muito agradecido. Considero que foi uma vitória. Treze anos [de prisão] é um número baixo, mas a batalha continua. A gente quer realmente que esse caso seja significativo”, disse Maria Claudia Kohler, mãe da vítima, após o julgamento.
Para a acusação, a pena aplicada, que é a mínima, foi insuficiente. O Ministério Público irá recorrer da pena.
“Foram longos quatro anos e três meses de luta por justiça e nós, família e amigos, só temos a agradecer pelo suporte e carinho da incrível rede que a Marina nos deixou. Não temos palavras para expressar a importância de cada pessoa que esteve junto. Muito obrigado!”, disse a página Pedale com Marina.
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Marina foi colaboradora da Escola de Ativismo e uma amiga querida para tantas, tantos e tantes de nós. Da mobilidade ao feminismo, da pesquisa ao ativismo, ela foi uma presença brilhante e comprometida, que deixa um buraco imenso. Também nos juntamos ao clamor por justiça para Marina Harkot e lembramos que não foi acidente. Que esse julgamento seja um passo para o fim da guerra no trânsito e de suas mortes plenamente evitáveis.
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