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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Greenwashing no governo, nas empresas e na COP: o que é e como identificar?

Greenwashing no governo, nas empresas e na COP: o que é e como identificar?

Tentativa de vender uma imagem sustentável é praticada com muita frequência, até mesmo em eventos sobre meio ambiente e clima, mas farsa pode esconder ações graves e prejudiciais.

Que empresa ou governo não quer hoje um selo verde? De sustentável? Com as discussões recentes sobre as mudanças climáticas, destruição da biodiversidade e o amplo debate sobre preservação ambiental, cada vez mais ter essa “embalagem verde” vende e convence. Com isso, empresas, marcas, governos e personalidades tentam vender uma imagem sustentável, mesmo que suas práticas não sejam coerentes com a ideia. E isso tem nome: Greenwashing. E não é difícil ver exemplos disso na COP 29 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas – que acontece no Azerbaijão.  

O termo greenwashing, em tradução livre significa “lavagem verde” ou “maquiagem verde” e  é uma prática que tem como objetivo passar uma mensagem falsa sobre sustentabilidade para parecer ambientalmente responsável, mas na verdade a estratégia esconde ações graves e prejudiciais para o meio ambiente. A ação pode acontecer com ocultação de dados, informações inverídicas, construção de imagem diferente da realidade, ou dando ênfase em alguma característica que pode ser considerada sustentável no lugar de produtos ou ações que são prejudiciais. Afinal, gastar milhões nas campanhas para criar uma imagem positiva não é um peso no orçamento bilionário dos atores que praticam essa farsa

Na COP do Clima, o comportamento do governo anfitrião do evento mundial se vale bastante da estratégia do greenwashing. Conhecido pela expansão da produção de combustíveis fósseis, por ter uma economia baseada na exportação de petróleo e por reprimir opositores e ativistas de direitos humanos, durante a conferência o Azerbaijão tem transmitido uma imagem de defensor e líder climático. A COP 29 começou no dia 11 e vai até 22 de novembro de 2024 com objetivo de debater a crise climática e traçar estratégias de enfrentamento ao problema

E as preocupações sobre o risco de greenwashing para o próximo ano, em que a COP vai acontecer em Belém (PA), já começaram a se concretizar. O governador do Pará, Helder Barbalho, participou ativamente da COP 29. Com um discurso “verde” e uma tentativa de construir uma imagem sustentável que não corresponde às realidades enfrentadas no estado, ele foi acusado de greenwashing. 

Uma de suas falas causou revolta na população indígena, quilombola e em ativistas. Durante a abertura de um estande, Barbalho afirmou que os povos indígenas e quilombolas dependem do mercado de carbono para garantir sustento e dignidade. Muitas organizações se manifestaram contra o governador e repudiaram a fala racista. Enquanto o governador tenta passar uma imagem de ambientalista para o resto do mundo, o Pará é o estado mais violento para repórteres na Amazônia que trabalham denunciando e dando visibilidade ao desmatamento desenfreado, às invasões de territórios indígenas, garimpo ilegal, exploração de madeira e outras irregularidades, segundo o relatório “Fronteiras da Informação” do Instituto Vladimir Herzog.

Pensando na COP 30 no Brasil, também é possível que muitas empresas possam usar o evento como uma plataforma para promover iniciativas superficiais sem compromisso verdadeiro com a sustentabilidade. 

Nas discussões, painéis e acordos realizados durante as COPs também é muito comum o aparecimento do greenwashing com a clássica promoção de imagem positiva com iniciativas que parecem sustentáveis. Entre os exemplos estão projetos de compensações de carbono para justificar emissões de gases sem reverter práticas prejudiciais ao meio ambiente, desvio de atenção e foco em ações simbólicas para evitar mudanças estruturais profundas em modelos de negócios. 

Durante a COP 29 o governo brasileiro apresentou sua nova meta para frear a crise climática e a apresentação da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). Ambientalistas criticam que a NDC abre margem para greenwashing. O governo definiu as novas metas como “ambiciosas”. A principal delas prevê uma redução nas emissões de gases que agravam o efeito estufa em até 67%. Mas a porcentagem é em relação com a realidade de 2005 (há quase 20 anos) comparada com 2035 (daqui 10 anos). Ambientalistas apontam que o projeto cria a falsa sensação de que muito será feito na luta contra as mudanças climáticas. 

Greenwashing legislativo

Para a  gestora ambiental, ativista socioambiental e militante ecossocialista, Letícia Camargo, esses exemplos de greenwashing conversam com o termo “Greenwashing Legislativo”. A ativista que já foi assessora técnica de políticas socioambientais no Congresso Nacional adotou a nomenclatura ao presenciar e entender o comportamento na Câmara dos Deputados. 

“Comecei a verificar que normalmente próximo da semana do meio ambiente ou próximo de alguma COP, de algum evento internacional climático, alguma questão assim, a Câmara dos Deputados e o Senado se movimentam para dizer que estão aprovando projetos de lei da ‘agenda verde’, e com isso algumas coisas são aprovadas para ficar bonito para os parlamentares, principalmente para os presidentes da Casa, mas que se você avalia o que significa aquele projeto de lei aprovado, você entende como um greenwashing legislativo”, explica. 

Alguns projetos de lei podem ser entendidos pela população como medidas importantes para a preservação da natureza, mas na verdade beneficiam quem desmata. Um exemplo é o PL do Pagamento por Serviço Ambiental (PSA). “Na versão final acabou virando um Projeto de Lei que beneficia exatamente os próprios desmatadores, podendo reverter as áreas que eles preservam obrigatórias pelo Código Florestal, como o APP, como reserva legal, em benefícios econômicos para eles e o que deveria realmente existir era um benefício para povos e comunidades tradicionais. Foi mais um greenwashing legislativo. Uma medida aprovada como uma grande agenda ambiental, verde e positiva, mas que se você avalia percebe que não entrega o que promete”, explicou.

Letícia analisa que outro exemplo recente de greenwashing legislativo é o PL do mercado de carbono que, mais uma vez, vai beneficiar o agronegócio. A bancada ruralista dá o tom da discussão mesmo quando esse grupo é o responsável pelos estragos nos biomas. O texto final do projeto permite que fazendeiros possam gerar crédito de carbono. 

“A gente vai ter esse projeto de lei aprovado, mais um greenwashing legislativo, como uma super solução para a crise climática, sendo que ela não é. A medida vai beneficiar o mercado. Uma lógica econômica para se continuar poluindo com compensação que na verdade vai usar exatamente os territórios dos mesmos povos e comunidades tradicionais, sem que eles sejam beneficiados”, disse.

Greenwashing nas empresas

Para além dos governos estaduais e federal, no Brasil há vários casos de empresas com discurso que não conversam com as ações e suas consequências. A Braskem, por exemplo, utiliza o selo “I’am green” e passa a mensagem quer “estabelecer uma nova relação com nosso ecossistema e encarar as mudanças climáticas como o maior desafio do nosso planeta”.  Mas a dona do discurso foi responsável por causar tremores, rachaduras e cavernas subterrâneas em Maceió com anos de mineração. Em 2023, o afundamento do solo provocado pela extração de sal-gema obrigou cerca de 60 mil pessoas a abandonarem suas casas. O colapso foi resultado de décadas de negligência ambiental.

Projetos que parecem benéficos e inofensivos têm ganhado espaço, como é o caso da energia eólica offshore – fonte de energia renovável que utiliza a força dos ventos em alto mar para a produção de eletricidade. Em julho deste ano o Ministério de Minas e Energia (MME) recebeu estudo para o desenvolvimento de eólicas offshore no Brasil. Apresentado pelas empresas como uma tecnologia capaz de “impulsionar uma trajetória energética sustentável no país” , esse modelo de fonte de energia gera impactos negativos para a natureza e para o estilo de vida e bem viver de comunidades tradicionais. Entre as consequências estão vibrações e distúrbios em organismos que habitam fundos marinhos. O modelo gira em torno do ecologicamente correto, mas deve afetar diretamente povos e comunidades que perderão suas áreas de pesca artesanal e terão seus sustentos afetados. Tudo isso com aval do Estado. 

Letícia Camargo afirma que é preciso combater esse tipo de prática. Segundo ela, a população precisa ser informada sobre as verdadeiras finalidades de leis, projetos e ações nas cidades e estados brasileiros. Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades, movimentos sociais, ativistas e lideranças podem conseguir fazer um trabalho de base informativo importante que alerte pessoas que possam ser prejudicadas. É preciso, sobretudo, questionar setores poluidores, taxá-los, enquadrá-los, argumentar empresas e combater o ecocapitalismo, que prioriza os interesses econômicos em detrimento do meio ambiente.  

“Se a gente conseguir combater o ecocapitalismo, a gente consegue demonstrar que essas propostas são do ambientalismo liberal e que não questionam o sistema que está levando o mundo ao colapso”, finalizou Letícia. 

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A branquitude se acomoda no invisível, a supremacia branca no vísivel: uma conversa sobre racismo e extrema-direita

A branquitude se acomoda no invisível, a supremacia branca no vísivel: uma conversa sobre racismo e extrema-direita

A historiadora Caróu Oliveira e o antropólogo Thales Vieira, do Observatório da Branquitude, trocam sobre como a manutenção de privilégios da branquitude estrutura não só a extrema-direita mas todo espectro político e social do país

O integralismo, grupo e ideologia supremacista e fascista brasileira, teve seu auge nos anos 1930.

Foto: Reprodução

Quando se fala em raça, o que vem à sua cabeça? Em nosso país, associar os estudos – e pautas – raciais à população negra e indígena é bastante comum. Nos últimos anos, também observamos um crescimento da “racialização” de pessoas com origens orientais, mas raramente vemos o mesmo com pessoas brancas. Pois é, para além do “branco” nos formulários onde se declara raça, ser uma pessoa branca relaciona-se à ocupação de uma posição social, que varia de significado a depender do tempo e do espaço.

Os resultados dessa ausência já vêm sendo observados há muitos anos. No Brasil, em 1955 o sociólogo negro Guerreiro Ramos publicava sobre a necessidade de discutir as estruturas e desigualdades raciais brasileiras não só a partir das questões vinculadas às populações negras e indígenas, mas, também, em relação a outros grupos de nossa sociedade. O texto “A patologia social do branco brasileiro” foi um dos pioneiros no país na inversão do papel de objeto de estudos raciais: o “outro” agora era “o branco”. 

Nos tempos presentes, o caminho segue sendo trilhado, por Cida Bento e seu conceito de pacto narcísico da branquitude, explicitado no livro “Pacto da branquitude”, de 2022, e por uma série de outros intelectuais negros, presentes na Biblioteca Guerreiro Ramos, do Observatório da Branquitude, fundado no mesmo ano do livro. 

O Observatório, que já existia antes mesmo da fundação oficial, além da biblioteca também organiza seus próprios estudos e atua ativamente na “incidência estratégica”, como eles mesmos dizem, “nos alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam”.  Para pensar mais sobre branquitude, e entender o que faz esse observatório, eu, Caróu Oliveira, historiadora, idealizadora da História da Disputa: Disputa da História, conversei com o Thales Vieira, antropólogo carioca co-diretor do Observatório da Branquitude, à convite da Escola de Ativismo.

Por problemas de natureza tecnológica, acabamos realizando a entrevista duas vezes. Spoiler: o problema é sempre a pessoa usuária… Eu, historiadora-não-jornalista, me perdi no diálogo e deixei de gravar apropriadamente a primeira conversa, re-feita depois muito generosamente pelo Thales. Por outro lado, minha formação em história e experiência como pessoa negra em estudos “à contrapelo” contribuíram para o desenvolvimento de uma conversa que foi muito interessante para nós. Na esperança de que seja também para vocês, transcrevo meu diálogo com o diretor do Observatório.

Caróu Oliveira: Pra começar, o que é a branquitude? O que significa esse conceito?

Thales Vieira: A branquitude é uma localização social baseada na manutenção de privilégios econômicos, jurídicos, políticos, culturais, privilégios de toda ordem, a partir do racismo. Tendo racismo como esse operador que garante os privilégios para determinada parcela da população, que busca uma apropriação monopolística dos recursos da sociedade. A partir de uma ideia de racismo – entendido aqui como uma consciência e estrutura ao mesmo tempo – que confere para um determinado grupo privilégios. Esse grupo é o que o ativa, o grupo que faz a engrenagem do racismo rodar. Então, isso já supõe duas coisas: a primeira é que a branquitude é uma localização social, é algo que se ocupa, é um espaço que se ocupa. A segunda coisa é que o racismo não é uma teia de preconceitos apenas, e também não é um comportamento que é uma aberração na sociedade. Ele é um conjunto complexo de produção de sistemas de dominação que, se provoca vítimas, também provoca privilégios, também atua em total benefício de quem o produz, por isso continuamente se produz racismo no Brasil e no mundo. Então é isso: a branquitude é essa localização social baseada na manutenção de privilégios econômicos, sociais e simbólicos para determinada parte da população.

Você me contou aquela história, de um post que vocês fizeram de comemoração no Instagram e alguém comentou “Ok, mas o que c4rX@#$ faz um Observatório da Branquitude?”. Eaí, o que faz um observatório da branquitude?

O Observatório da Branquitude busca desvelar essas estratégias que a branquitude usa para se manter no lugar que está, para se manter no lugar de poder, né? Então o que faz um Observatório da Branquitude é colocar a branquitude sobre escrutínio máximo, colocar a branquitude num holofote para, primeiro, destruir a ideia de uma universalidade. Então: se eles nos racializam, racializaremos eles também, né? Porque a gente os torna exóticos por causa disso, e se exóticos, objetos. Então a gente coloca eles nesse holofote, estuda eles, para poder compreender quais são as estratégias deles para a gente, no sentido de nos desigualar, mas também para si mesmos, no sentido de se manter no topo.

No começo do ano de 2024 vocês publicaram um estudo sobre supremacismo branco, onde falam que a “supremacia é como uma manifestação da branquitude, mas por outras vezes é a branquitude que sustenta a supremacia branca”. Vocês falam também que a branquitude se acomoda no invisível, e a supremacia branca se projeta no visível. Como isso acontece? Supremacismo branco não é coisa de extrema-direita? 

A extrema-direita encarna a supremacia branca como um elemento fundamental do seu fazer político. Ela é desavergonhada com relação a isso, e ela, de fato, pretende que a supremacia branca atue como uma consciência orientada para a extrema-direita. Então a extrema-direita vocaliza a supremacia branca, mas não é exclusividade dela. Essa semana [setembro de 2024] a gente teve uma fala do Lula em uma posse do judiciário, muito esquisita inclusive, dizendo que aquilo não tinha cara do Brasil, porque parecia uma supremacia branca. Digo que essa fala é esquisita porque Lula teve várias oportunidades de nomear uma pessoa negra para cargos importantes no judiciário e ele abriu mão disso — sempre abriu mão disso. Teve uma campanha muito forte ano passado por uma ministra negra no STF e o Lula deixou passar. Causa muito estranhamento que ele tenha falado que havia uma supremacia branca no judiciário em tom de surpresa ou em tom de indignação, já que ele não fez nada com relação a isso. Estou dando esse exemplo para dizer que a esquerda embora envergonhada disso, embora demonstrando algum nível de indignação com relação a essa onipresença branca nos espaços de poder, também não está tão interessada assim em fazer algo sobre isso, portanto, ela também atua na manutenção de uma supremacia branca, porque a supremacia branca, enquanto irmã da branquitude, também atua para a manutenção de privilégios. Portanto, para a esquerda branca colaborar [mesmo indiretamente] com o movimento da supremacia branca é interessante no sentido em que ela não precisa dividir os espaços com uma população negra, com uma população dita “marginalizada”.

 

"A extrema-direita encarna a supremacia branca como um elemento fundamental do seu fazer político. Ela é desavergonhada com relação a isso, e ela, de fato, pretende que a supremacia branca atue como uma consciência orientada para a extrema-direita."

Existe uma supremacia branca à brasileira? Há elementos de intercâmbio entre as práticas e conceitos supremacistas brasileiros e internacionais?

Nessa pergunta tem uma distinção que é muito importante fazer: que raça não é um constructo biológico, a raça é um constructo histórico-social. Então, o que é considerado branco varia no tempo histórico e varia entre um lugar e outro. O que não vai variar é a estima daquilo que é considerado branco, que é considerado uma característica positiva de determinados cidadãos. Embora pareça estranho pensar numa supremacia branca brasileira, afinal, quando a pessoa vai pro hemisfério norte fica naquela dúvida, se é branca ou não, ela está ali. E isso vai ser modulado de um lugar pro outro, ou seja, no Brasil, existe o branco, mas também existe aquele que é considerado branco e existe aquele que quer fazer valer essa sua brancura no sentido de estar numa posição suprema com relação às outras raças e às outras cores. E, portanto, numa produção ativa, isso que a gente vai chamando de supremacia, que é quando você está numa produção ativa de colocação social. Por isso, sim, existe uma supremacia branca brasileira.

Há elementos de intercâmbio com supremacias brancas de outros países e  isso ficou muito, muito, muito claro nos últimos anos. Sobretudo no último governo Bolsonaro, em que havia intercâmbio principalmente com os Estados Unidos, pensando estratégias, formas e táticas de agir.  Aquele foi um governo orientado para a supremacia branca, um governo pensado a partir desse lugar racial, ocupado por uma supremacia branca e com conexões reais, com conexões comprovadas, com uma supremacia branca, sobretudo, norte-americana.

 E essas conexões, com a saída do governo Bolsonaro, obviamente não acabaram, seguem ativas, seguem se pensando e formulando estratégias. O Brasil sempre foi um lugar que chamou muita atenção do ponto de vista racial, seja com as melhores ou com as piores intenções. Na década de 1950, aconteceu o Projeto Unesco, em que se criou um grande laboratório para pensar raça a partir do Brasil. Enfim, tem vários momentos históricos em que o mundo olha para o Brasil e pensa sobre o que é pensar raça num país que é por essência multiracial, um país que é por essência mestiço. Como é que se localizam essas posições raciais e sociais baseadas na raça? Enfim, o Brasil sempre chamou muita atenção com relação a isso, os  holofotes internacionais se viram para o Brasil para  pensar, e agora não é diferente, né? Então, pensar a supremacia branca a partir do Brasil ajuda a pensar as articulações globais de supremacia branca no mundo.

Reunião da Klu Klux Klan, grupo supremacista estadunidense.

Foto: Reprodução

Pensando nessa relação inter/extra nacional do racismo, o supremacismo branco é anterior ao projeto colonizador/colonial? Como esses processos se relacionam?

Olha, sempre houve distinções relacionadas à cor da pele, isso não foi uma novidade do ponto de vista colonial. Existem vários relatos históricos de distinções a partir da cor da pele, tentativas de desigualar os seres humanos a partir da cor da pele. Entretanto, a forma assumida no projeto de colonização transatlântico é uma forma muito particular, a escala que assume e o jeito que foi feito, é uma forma muito específica , que de fato transforma um mundo. A coisa assume uma escala global e transforma um mundo na prática, no modo da economia global, mas também a partir dessa consciência, de formulações filosóficas, teóricas, formulações no sentido de uma constituição daquilo que é o Ocidente. Transforma o mundo no sentido em que a identidade se formula para os brancos, como a identidade se forja a partir da negação desse outro, e por isso ele transforma o mundo, porque constitui sua identidade a partir de um outro que é negado. ara o branco, ele é porque o outro não é: ele não é por si, ele é porque o outro não é. Esse processo de desumanização é o que constitui aquilo que a gente chama de Ocidente no mundo. Então a colonização, a escravização, o tráfico transatlântico, de fato reconstituem o mundo, transformam o mundo de uma maneira que nenhuma outra tessitura de preconceitos conseguiu transformar.

O supremacismo branco se manifesta nessa camada visível através do medo e do terror, utilizados como estratégia de coerção e modulação de comportamento. Nossos corpos negros são expostos todo o tempo a uma série de violências e a gente quase se acostuma a ser alvo, como da violência policial ou da pobreza, por exemplo. Mas o medo não é exclusividade negra, já que a justificativa para os enclaves fortificados brancos e ação violenta da polícia é exatamente o medo, uma constante nas relações raciais. Qual o papel do medo na perspectiva da manutenção do status quo da branquitude?

Eu gosto muito de pensar nessa ideia do medo. Acho que tem coisa aí que vem lá da psicanálise, do que significa esse medo branco. Tem uma produção contínua de medo, que é quase sobre si mesmo, da branquitude, no sentido de que a branquitude tem muito medo de encontrar seu próprio passado e de encontrar sua própria fragilidade, porque cria-se um mundo insuportável para o outro e tem que ter medo mesmo do que esse outro pode fazer.  Porque se você tortura alguém — e se essa pessoa se liberta em algum nível —, você tem medo do que essa pessoa vai fazer com você. Então esse medo da branquitude dá uma volta completa pela própria violência que a branquitude empreende no mundo. É um medo quase de si mesmo, é um medo de que essa violência volte para você. Ela opera um sistema de manutenção desse medo e de controle de corpos etc. justamente para que isso não volte, para que não cuspam o lixo de volta. É um medo que está em um lugar importante para a branquitude se manter no topo.

 

"Para o branco, ele é porque o outro não é: ele não é por si, ele é porque o outro não é. Esse processo de desumanização é o que constitui aquilo que a gente chama de Ocidente no mundo."

Está posto então que existe uma disputa, uma luta racial na nossa realidade. Mas quem é “o inimigo”? 

Vou dar uma resposta polêmica para essa. Eu só vou falar porque você não é jornalista, estrito senso, então você não vai cortar uma aspa e tirar de contexto o que eu vou falar. Mas é que, pra mim, o inimigo é a própria ideia de raça, porque não existe ideia de raça sem racismo, a ideia de raça só existe porque existe racismo, então o grande inimigo é a ideia de raça, é existir ideia de raça, porque não há ideia de raça com neutralidade. Toda ideia de raça advém de uma hierarquização, e se ela vem de uma hierarquização, você tem que combater a própria ideia de raça, a luta é essa. O problema é que é um sistema muito complexo, muito elástico. A ideia de racismo, por consequência, também é muito elástica e muito complexa, e acaba que o nosso poder estar no mundo é justamente nessas quebras e nas fissuras dessa própria ideia de raça. E a quebra disso é fazer a gente ter orgulho da nossa raça, é ter orgulho de ser preto, e de transformar isso numa identidade de afirmação. Mas o grande inimigo pra mim é esse, é a ideia de raça. Pra mim o que a gente tinha que conseguir era sucumbir à própria ideia de racialidade, só que não é possível a gente fazer isso nesse momento, porque é um sistema complexo, a gente pode chamar de estrutural, pode chamar de sistêmico, pode chamar do que for, mas é elástico, resiste no tempo, e é o sistema mais complexo que a humanidade já inventou contra si mesma. Como disse o Carlos Moore,  a tecnologia de maior extermínio que a humanidade criou contra si mesma, foi a ideia de raça e eu acho que esse é o grande inimigo, e quem criou, quando eu falo ‘humanidade’, estou falando dos brancos, obviamente, falando de uma supremacia branca e de uma tentativa colonial de dominação do mundo.

Eu penso muito que grande parte do projeto da branquitude é um projeto de extermínio, como aconteceu com diversas etnias ao longo dessa recente história. Mesmo assim, a gente sobrevive, se esse projeto tivesse de fato se concretizado a gente não estaria aqui. Nesse sentido, você acha que os projetos de embranquecimento, de extradição, de extermínio fracassaram? Porque ainda discutimos eles?

Esses planos fracassaram do ponto de vista literal de extermínio, mas em algum nível prosperaram. No sentido de tornar a nossa vida bastante insuportável por aqui, nos dar uma resiliência em meio a essa violência tão grande que a gente sofre. Então, se é um fracasso porque eles de fato não conseguiram nos exterminar, porque teve uma resistência muito grande e a gente empreende tecnologias de resistência, de reação a essa violência colonial muito grande, por outro tem uma certa prosperidade em tornar nossa vida insuportável. Todas as taxas que temos de saúde, de educação, de violência principalmente, em todas elas a gente está muito mal, então a gente refaz a nossa vida, reconstrói a nossa humanidade a partir dos nossos termos, porque os termos deles são insuportáveis para nós.

E a gente é o grande milagre desse país. Eu sempre digo isso que a gente não devia exportar commodity, mas devia exportar tecnologias que a população negra e indígena produziu produziu para se manter viva. Hoje a população negra é maioria da população, a gente passou por toda a sorte de coisas nesse país, desde a escravização, passando por uma abolição inconclusa que não gerou oportunidades para a população negra, não gerou integração da população negra, até essas políticas de embranquecimento. Haviam profecias, de ditos especialistas, de intelectuais, de pesquisadores, na primeira metade do século 20, de que acabaria a mancha negra no Brasil, de que íamos ser um grande país de mestiços, um mestiço orientado para um embranquecimento da população. Então temos aí um grande milagre do Brasil, uma grande tecnologia social, que fez com que a população negra hoje, em 2024, seja a maioria da população, e crescendo. Não só somos a maioria, como estamos em franco crescimento, não só nos sentidos de contingente populacional, mas uma consciência também de pessoas que não se consideravam negras e que hoje se consideram e enxergam nisso um traço positivo.

 

"A tecnologia de maior extermínio que a humanidade criou contra si mesma, foi a ideia de raça e eu acho que esse é o grande inimigo, e quem criou, quando eu falo 'humanidade', estou falando dos brancos"

Por fim, como lidar com a branquitude? Como destruir as ideias de branquitude e supremacismo? As ferramentas do opressor podem derrubar a casa grande?

Eu tenho lido muitas coisas sobre isso e o que eu mais tenho gostado é a linha da gente conseguir inventar mundos e fabular possibilidades de vida em que a branquitude não seja parte do nosso desejo, nosso desejo no sentido de a gente querer chegar lá na branquitude, de a gente querer ser aceito, querer participar, buscar representatividade. A gente pode fazer isso estrategicamente e pode fazer isso contextualmente, não há um problema nisso, mas enquanto formulação de um novo mundo, tem que ser uma formulação de um novo mundo a partir dos nossos termos, a partir dos termos que rejeitem uma ideia de branquitude. Tem uma passagem que eu gosto muito, do Fred Moten, que ele fala que a gente precisa negar aquilo que a branquitude nos apresenta como uma possibilidade, mas também negar aquilo que a branquitude nos nega, negar tudo que vem da branquitude nesse sentido, né? 

Então negar o que ela nos oferece, mas também negar aquilo que ela nos nega para a gente poder, aí sim, construir um mundo que seja a partir dos nossos termos, das nossas próprias possibilidades, e não aquilo que a gente tem como desejo, que está nos parâmetros do que a branquitude quer, para si e quer nos negar, acho que tudo isso a gente tem que tirar de mão, né? 

Nesse sentido, não acredito que as ferramentas do opressor podem derrubar a casa grande. A gente pode construir alianças estratégicas e contextuais, não há um problema em  relação a isso, porque a gente está vivendo nesse momento, nesse tempo espaço, né? E nesse tempo espaço a gente vai precisar sempre buscar alianças contextuais e movimentos políticos e estratégicos, mas enquanto formulação de um novo mundo, fabulação de novas possibilidades, eu não acredito nisso.

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Diário de um alagado

Diário de um alagado

Ivan Rubens Dário Jr da Escola de Ativismo faz um diário das preparações das comemorações do Dia do rio Paraguai e do Pantanal

Quinta feira, 14 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Caravana Águas para Vida

Acordar as 4h30, banho, cuidados e preparação. Início das atividades às 5 horas. Agora nosso coletivo já está bem crescido. Estamos em 25 carros e aproximadamente 100 pessoas. Café da manhã e partimos precisamente às 6 horas.

Dia 14 de novembro é dia do rio Paraguai. Dia de luta e também é um dia de celebração. É como fazemos com os parentes e amigos. Nesta perspectiva, o rio é parente. Se considerarmos que parente é aquela pessoa da família tipo um primo ou uma prima, o rio também é parte da família. Mas seria o rio apenas um parente distante?

Hum… Tenho o hábito de procurar de onde vem uma palavra que me interessa. Verdade, me interesso muito pelas palavras. Estou aqui trabalhando com elas, brigando com elas, amando-as, brincando com as palavras. E fui pesquisar uma das origens da palavra parente. Segundo o site “Origem das palavras”, uma das possibilidades é o latim e, nele, PARENS significa “pai ou mãe”, outra possibilidade é derivar de PARERE, “dar à luz, criar”. Nessa perspectiva, o rio pode ser um parente bem mais próximo, um pai, uma mãe ou mesmo um filho. Se um filho, o rio seria uma parte do nosso corpo fora do nosso corpo. Mas o rio Paraguai é certamente mais velho do que qualquer ser humano vivo. Então, somos filhos do Rio Paraguai. Somos filhos de todos os rios. Um rio é nosso pai e é nossa mãe. Um rio é nosso avô e nossa avó.

A largada da Caravana Águas para a Vida aconteceu na praia de Cáceres. A primeira parada aconteceu na cidade de Porto Estrela, ali na prainha. Dois ônibus com crianças vieram acompanhar a celebração, lancharam conosco, cantaram e dançaram conosco. Na segunda parada em Barra do Bugres, professor Márcio e Valdomiro nos receberam com “abiolô olaripô” exatamente ali na confluência do rio Bugres com o rio Paraguai. “Abiolô olaripô” significa, na língua Balatiponé, que somos filhos do rio.

“Abiolô olaripô”

“Abiolô olaripô”

“Abiolô olaripô”

Somos filhos do rio Paraguai. Somos filhos das águas. Nós somos as águas.

A aldeia dos Umutina Balatiponé fica ali em Barra do Bugres. A caravana segue para Denise e Arenápolis onde fizemos nossa primeira refeição: almoço coletivo na beira do Rio. Uma paradinha para refrescar com garapa de cana, hmm.

O destino nesse primeiro dia é o município de Alto Paraguai. Chegamos um pouco depois das 15h para a Audiência Pública da Assembleia Legislativa do estado do Mato Grosso, de iniciativa do deputado estadual Lúdio Cabral.

https://www.al.mt.gov.br/midia/texto/audiencia-publica-e-marcada-por-ato-de-reconhecimento-do-corredor-biocultural-do-rio-paraguai/visualizar 

https://www.al.mt.gov.br/midia/album/comemorar-o-dia-estadual-do-rio-paraguai-pantanal-vivo/visualizar 

https://ludiocabral.com.br/ludio-realiza-caravana-partindo-de-caceres-e-audiencia-publica-em-alto-paraguai-no-dia-do-rio-paraguai/ 

https://ludiocabral.com.br/ludio-se-une-a-comunidades-e-povos-tradicionais-em-audiencia-publica-pelo-futuro-do-pantanal/ 

Durante a Audiência Pública nos autodeclaramos um CORREDOR BIO CULTURAL, apresentamos nossa cultura e nossas tradições, apresentamos as expressões da arte popular, lutamos pela nascente do rio Paraguai e em favor do parque do Alto Paraguai e apresentamos a Carta do Rio Paraguai com nossos posicionamentos frente às agressões que o cerrado vem sofrendo, em favor das águas para a vida e não para os negócios, em favor do Pantanal e do rio Paraguai.

Às 19 horas seguimos para o jantar e para a dormida.

Quarta feira, 13 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Fazendo escola

Num tempo em que o governador do estado de São Paulo mostra seu poder de autoridade às marteladas… patética cena do extremista, versão limpinha e cheirosa do velho fascismo à moda brasileira, fechando mais um leilão de venda do patrimônio público, de venda daquilo que é nosso na Bolsa de Valores de SP. Exibição do pacto patriarcal, da velha agressividade das elites escravocratas que continuam destruindo a natureza em nome do acúmulo de riqueza, acúmulo de poder político, da privatização de tudo o que puderem etc, etc… Estamos nós aqui no Pantanal fazendo uma escola.

Uma escola que não é pública. Uma escola que não é estatal, uma escola que não é particular, mas nós estamos aqui fazendo uma escola que é comunitária. Uma escola comunitária de caráter público, uma escola que não é institucional mas que é instituinte. Uma escola que não tem uma sede, nem paredes, nem porteiro, nem placa no portão de entrada. Uma escola que não responde às determinações externas e nem faz sua finalidade em aumentar os índices de avaliação externa, mas uma escola que constrói o seu próprio currículo. Estamos falando de uma escola que é movimento. Uma escola movimento popular que se produz no esforço mesmo das lutas de defesa da natureza, nas lutas pelo rio Paraguai vivo e sem fronteira, uma escola que se faz na defesa do Pantanal e na defesa da vida. A ESCOLA DE MILITÂNCIA PANTANEIRA.

Uma escola do comum. Essa escola que não desperta o interesse de nenhuma Bolsa de valores, uma escola que leilão nenhum há de privatizar.

A Escola de Militância Pantaneira (EMP) reúne os 13 Comitês Populares em Defesa das Águas e do Clima do rio Paraguai e dos rios afluentes. Nesta noite a EMP finalizou os preparativos para a grande Caravana Águas para a Vida. A EMP fará uma aula de campo, um trabalho de campo, uma ação concreta: visitar/conhecer a nascente do rio Paraguai. Neste encontro de hoje também trabalhamos as ações possíveis no sentido de garantir maior proteção a essa nascente. E usamos duas tecnologias inovadoras: a aula e a conversa.

“Por isso que o trabalho popular é mais duro. Se fosse uma escola com um currículo, sei lá como vocês chamam isso, a gente só tinha que aplicar o que estava escrito lá mas aí a gente ia perder uma oportunidade de viver intensamente os encontros”, disse o amigo Isidoro.

Ouvindo essa frase acima, pensamos: “o encontro predomina sobre a forma”. Assim, a Escola de Militância Pantaneira organizou e se organizou para iniciar a Caravana Águas pela Vida com destino à nascente do Rio Paraguai e suas paradas estratégicas.

Terça feira, 12 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Amor ao rio: nós somos o rio

Imagine um grupo de pessoas na beira de um rio. Imaginou?

Pois bem, o que esse grupo de pessoas faria na beira de um rio? Hummm, pescar seria bastante razoável. Esperar um barco, uma rabeta, esperar uma canoa também seria uma boa tentativa de resposta. Um piquenique, brincadeiras, jogando bola são boas opções de resposta. Mas não, um grupo de pessoas estava nesta noite fazendo declarações de amor.

Isso mesmo, um grupo de pessoas na beira do rio Paraguai estava fazendo declarações de amor. As pessoas tocaram e cantaram, recitaram poemas, fizeram falas livres, dançaram, fizeram ciranda de roda cantando, as pessoas comeram manga, maçã e outras frutas, bolos, salgadinhos e pães. Tomaram suco fresquinho, suco geladinho, suco das frutas colhidas hoje mesmo. Tudo isso ali, na prainha, na beira do rio Paraguai. Tinha uma caixa de som com o microfone e as palavras estavam franqueadas, ou seja, o espaço estava aberto, a palavra estava livre para ser tomada, para ser ocupada. Nada de “dar a palavra” para alguém, o que estava acontecendo era o seguinte: toda pessoa, qualquer pessoa poderia tomar para si o uso da palavra. Havia um grupo querendo ouvir sua palavra. Um grupo que estava ali para DECLARAR O SEU AMOR ao rio Paraguai.

Uma comunidade que se constitui em declaração de amor ao rio. Não é bonito? Isso aconteceu neste dia 12 de fevereiro na margem esquerda do Rio Paraguai, na cidade de Cáceres/MT. Muitas falas livres, muita música, crianças, adolescentes e jovens, adultos e idosos, homens e mulheres, enfim, toda gente declarando seu amor ao rio Paraguai. Porque nós somos o rio, não há separação.

Essas pessoas na beira do rio se auto denominam: NÓS SOMOS O RIO.

Segunda feira, 11 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Conversa, muita conversa.

Alvorada 5h30 do Mato Grosso. Primeiro é cuidar das criação. O potro está ferido. Cuidar de bicho grande demanda cuidado e força. E isso nos faz pensar inevitavelmente na educação que fazemos, como estão as nossas práticas de educação? Nossas práticas de educação popular? Em que medida há mais ou menos violência em cada gesto do educador popular e da educadora popular? Em que medida há mais ou menos violência em cada palavra do educador popular e da educadora popular? Se pensarmos que em oposição à violência pode estar uma espécie de acolhimento, uma espécie de convite à reflexão, à busca e ao pensamento, em que medida pode haver mais acolhimento, mais convite, mais reflexão, mais engajamento na luta em cada palavra do educador popular?

Café da manhã e trabalho de organização. Esta caravana se faz com cerca de 30 carros, com mais de cem pessoas. Portanto, mais de 100 refeições por parada, mais de cem dormidas. O que levar? canecas e copos, água e outras coisinhas de uso pessoal. Como preparar o carro? como será o trajeto, onde e quando serão as paradas, o que acontecerá em cada parada? Tudo isso em processo de organização, os horários etc. Não é fácil, não. A distribuição das pessoas nos carros, quem dirige e quem assume outras responsabilidades com cada coletivo. Além de todo esse processo, por assim dizer mais estruturante, tem a parte mais importante que é a programação da caravana. Porque na abertura (que estamos chamando de largada), a cada parada, lá na nascente… estar nesses lugares não é à toa. Pelo contrário, estar em cada lugar desse num grupo grande tem uma intenção clara: lutar pelas águas. Águas para a vida.

No final da tarde as reuniões com parceiros e comitês para os informes gerais. A caravana é coletiva. Coletividade exige alguma disciplina. 1) somos parceiros, disciplinados: caminhamos juntos; 2) carregamos a bandeira de nossa organização; 3) o que carregar em cada carro? 4) trazer disposição para a luta e um tanto de beleza. As orientações foram passadas para as organizações e para os comitês populares numa transmissão ao vivo. Ou seja, reunião e conversa para organizar. Conversa, muita conversa.

Essa tecnologia milenar: conversa!!! Há que se exercitar essa tecnologia e seus instrumentos de mediação. Quando a conversa se dá olho no olho, face a face, quando é possível notar os gestos do seu interlocutor ou de sua interlocutora, é uma coisa. Quando é possível uma conversa mediada por alguma instrumento, é outra coisa. O que mais importa é a conversa. E isso exige presença e atenção do educador e da educadora popular. Exige estar ali, estar presente, estar por inteiro na medida do possível, na medida de nossa humanidade.

Hoje foi dia de muita concentração na organização. Para tanto, planilhas, listas, notas, informes, contas, cálculos, previsões. Listas, nomes, organização de duplas e quartetos. Combinados, horários ou pelo menos previsões de horários e tempos. Trajetos, deslocamentos etc etc etc. Cansa, cansa muito. É um cansaço físico e um certo esgotamento mental. Dormir para ter energia amanhã. Boa noite.

Domingo, 10 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Descanso na luta.

Todo domingo é dia de descanso. Neste caso, o descanso é na luta popular. Até que acordamos bem tarde hoje: 6h30. Considerando que aqui no Mato Grosso atrasamos os relógios em 1 hora dado o fuso horário, para o corpo seria 5h30.

Ajeitar as coisas, arrumar a cama, banho, higiene matinal e café da manhã exatamente às 7 horas. Durante a preparação do café, Silvio se vira com os ovos, eu ajudo na colheita das frutas: mamão e manga colhidos no pé. A temporada da manga já começou por aqui. Fartura de manga, fartura de frutas na chácara. A terra é generosa.

Reunião e tempo de preparação de materiais, tarefa que exige muito cuidado. São muitos parceiros, são muitas parceiras e uma caravana inédita. Partimos para mais uma visita. São cerca de 40 minutos de estrada. Asfalto na direção da Bolívia e terra na direção da casa do Geraldinho e da Cilene. A exemplo do que aconteceu ontem na casa do Maurício e da Clarice, impossível não estar aqui de corpo inteiro. Internet pra quê? Pra nada…. Porque tudo que interessava estava ali naquela sala. A casa estava cheia, uma família nos esperava para o almoço. Estávamos novamente no Comitê Popular do Padre Inácio, um encontro maravilhoso, alegre, potente. Estávamos ali por inteiro lutando pelo Pantanal por inteiro. Quanta coisa aparece numa conversa… Assim, nossa territorialização ganha vigor.

No retorno, paramos para uma olhadela num rio povoado de jacarés. Estamos no pantanal. E para o carro, abre porteira, fecha porteira. Para o carro, abre porteira, fecha porteira. Para, abre e fecha…  chegamos. Pequeno descanso.

Retomamos os trabalhos aqui na “sala de reunião”, na beirinha do rio Paraguai. Como dissemos numa outra vinda, “perto de muita água, tudo é mais feliz” (1). Muita conversa, produção de materiais, mensagens, articulações políticas para acessar a nascente do rio Paraguai. Interessante pensar que a nascente do rio principal que drena o Pantanal nasce numa área particular e os proprietários podem regular o acesso à nascente. Vejam a contradição: um grupo de pessoas organizadas em movimento popular pedindo, por meio da coordenação, acesso à nascente do rio Paraguai.

Soubemos do campeão da Copa do Brasil pela internet, uma informação importante para as conversas que virão. Mais mobilização: partimos para a casa do seu Jair e da dona Nadir, encontramos uma família inteira e mais conversa, mais comida, muita alegria. Na conversa: 1) Heldinho chegou da prova do Enen; 2) Flamengo e Atlético mineiro; 3) Nióbio; 4) brigas de cachorro e a pata ferida do potrinho; 5) 6) 7) 8) a programação do dia do rio Paraguai 2024.

Uma passada rápida na casa da professora Maria com um tanto de conversa e o reforço para participação nas atividades da semana. Hoje vamos dormir cedo, são 22h e vou dormir. Boa noite.

Nota:
(1) Andarilhagens: Sobre escola, água e felicidade

Sábado, dia 9 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Um dia de pouco movimento. Será?

Claro que não. Acordar cedinho, café da manhã às 6 horas, deixar o hotel e chegar à rodoviária. Tudo certo com as passagens previamente reservadas. Seguindo nosso planejamento que se produz na experiência concreta. Assim, considerando os frequentes atrasos no serviço prestado pelas companhias aéreas, vamos acompanhando os passos de nossa equipe de campo e confirmando o passo seguinte. Embarcamos no terminal rodoviário de Cuiabá com destino a Cáceres.

Ao desembarcar, o primeiro encontro, saudoso encontro. No percurso até nosso destino final, muita história recente, muita atualização. O processo de territorialização continua vigoroso. Estamos territorializando aos poucos. Este chão vai nos constituindo aos poucos. É importante passar por esse processo, chegar ao território é um processo, estar nesse chão é uma espécie de habitação. Habitamos o Mato Grosso, habitamos a luta, habitamos os Comitês Populares. Nos tornamos habitantes: habitamos essa luta e essa luta nos habita. Chegar ao Mato Grosso e sempre assim: é como se. é como um processo de deixar o nosso mundo para trás e entrar num uoutro mundo, um mundo outro que não o nosso. Claro que tem um pouquinho do nosso mundo, tem fragmentos que trazemos do nosso mundo para este, mas o nosso mundo pouco interessa aqui nessa luta pelas águas e pelo clima do Pantanal. O mundo que realmente interessa é este que estamos, aos poucos, entrando e que habitaremos até o retorno ao nosso mundo.

Nosso destino é a chácara Cururu. Na chácara rola um mutirão. Almoço coletivo, duas crianças brincam na água. O pequeno Léo gosta de cana de açúcar. Para o pequeno, quanto maior o “pau da cana”, melhor. Uma festa na água, crianças e cães se divertem. Estamos cansados, ouvidos e línguas pedem pro corpo parar um pouco.

Reunião de planejamento: entramos definitivamente no processo de organização dos 13 Comitês Populares e cerca de 30 organizações parceiras. Nesta 24a edição, o dia do rio Paraguai acontecerá em forma de Caravana. Seguiremos até a nascente do rio Paraguai. Para que tudo aconteça respeitando nossos limites de tempo e de recursos, é necessário muita organização e muita, mas muita conversa. Consequentemente muita mensagem de texto, muita mensagem de áudio, porque nem todo mundo escreve e lê. Muito cartazinho (card), muito vídeozinho, e tantas outras estratégias, tantos outros instrumentos de mobilização. Cuidamos para que a mobilização não seja nada fria, pelo contrário, experimentamos mecanismos de mobilização didática. Jeitos que as pessoas entendam o que está acontecendo por trás de cada informação, de cada recado. Cada contato é carregado de informação e de expectativa. Informação sobre o que está acontecendo, sobre o que está por acontecer e, além disso, expectativa que as pessoas compreendam que cada passo deriva de um passo já dado, que o passo seguinte depende deste, e que seguimos juntos e em caminhada. 

Parte importante da mobilização pantaneira acontece em forma de visitas. Isso mesmo: visitas. Nesta noite visitamos Maurílio e Clara. Uma hora de estrada até o sítio no Comitê Popular das Águas e do Clima do Padre Inácio. Uma alegria. A convivência talvez seja a parte mais gostosa de todo esse processo. Algumas horas de dedicação total a esse encontro. Impossível não estar por inteiro nesses encontros.

Sexta, dia 8 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Um dia de pouco movimento. Será?

Preparar-se para uma viagem, separar o que deve ser levado significa inevitavelmente pensar o que será essa viagem, significa pensar o que acontecerá nesses dias de atividade. Estamos partindo para mais uma temporada no Pantanal, mais especificamente na cidade de Cáceres, interior do Mato Grosso para a luta que envolve o dia do rio Paraguai. Vale lembrar que dia 14 de novembro é dia do rio Paraguai e, vivemos o mês do rio Paraguai e muitos esforços coletivos são mobilizados, muito encontros, mutirões, trabalhos em grupo, muitas expectativas são mobilizadas porque os dias do rio não são iguais. São iguais mas são diferentes.

São iguais no sentido em que são a repetição do dia 14 de novembro. E são diferentes porque cada dia do rio Paraguai tem uma programação cuidadosamente construída, são o resultado da caminhada de um ano todo de 13 Comitês Populares, da Escola de Militância Pantaneira, e das inúmeras parcerias que se fazem neste movimento em defesa das águas e do clima, em defesa do Pantanal.

Arrumar as roupas e objetos na mala, arrumar fora significa arrumar um pouco o que está dentro também. Arrumar o que está fora é também arrumar o que esta aqui dentro da gente. É lidar com as expectativas, é lidar com a memória, é preparar-se, é se ajeitas para os encontros com as pessoas que já amamos e iremos encontrar mais uma vez. Neste diário, ENCONTRO é uma palavra central, fundamental. Sempre que aparecer a palavra ENCONTRO, saiba que estamos dizendo muita coisa, uma palavra carregada de significado. Não se trata de uma palavra solta, jogada, uma palavra com um sentido estrito. Pelo contrário, ENCONTRO aqui é uma palavra densa, polissêmica, palavra povoada.

Acordei antes das 2h deste 8 de novembro. Uber, aeroporto, esperas, despacho de bagagens, voo felizmente confirmado para as 3h. Espera de 3h em Brasília, novo embarque e felizmente voo no horário. Retirada de bagagens em Cuiabá/MT, mais espera e o processo de territorialização continua. Manha para pequenos ajustes de rota e contatos, cuidar dos companheiros que virão, confirmar reservas de quem está a caminho e dos que virão nos próximos dias.

Andar pela cidade e o almoço já fazem parte do processo de territorialização. Peixe frito na dieta, banana frita, farinhas e a culinária serve de portal de acesso lento à cultura local. As músicas tocando na cidade, a circulação na capital, os sotaques, fisionomias e etc. Encontro meu companheiro de viagem no final do dia e combinamos nossos horários para a sequencia da viagem, agora em dupla.

Relógio programado para despertar às 5h30. Boa noite.

 

Quinta, dia 7 de novembro de 2024 – Diário de um alagado.

Desde o ano 2020 celebra-se, sempre no dia 14 de novembro, o rio Paraguai. Portanto, 14 de novembro é o dia do rio Paraguai. Nesse percurso anual, muita coisa já foi feita, muita luta, muito enfrentamento, muita experiência, muita alegria que anima uma luta sem fim. São pantaneiros e pantaneiras, assentados em reforma agrária, ribeirinhos e ribeirinhas, pescadores e pescadoras, quilombolas, gente da terra, gente das águas, gente da luta. Luta pela terra, luta pela água, luta pelo clima, luta pela vida. E a luta ganha vigor, ganha força, anima.

Vamos contar uma parte desta 24a edição. Uma parte porque este primeiro registro não se refere à primeira atividade desse mês do rio Paraguai. Já estamos no dia 7 de novembro que, em alguma perspectiva, está marcado por dois acontecimentos:

  1. Um momento de aprender. Ouvimos os companheiros de luta Clóvis Vailant e Oscar Rivas. O primeiro falou das ameaças que o bioma pantanal vem sofrendo, de onde vem tais ameaças, os impactos causados e as consequências sócio-ambientais de tais impactos. Já o Oscar trouxe seu conhecimento a respeito dos corredores bioculturais nas humedales.

Em seguida nos olhamos em ação. Foram imagens em fotografias e imagens em movimento. Foi um movimento em imagens. Foi o movimento popular ali na tela e o mesmo movimento popular com os olhos fixos na tela. O movimento e o movimento, tudo em movimento,

– uma rápida apresentação do que fizeram os 13 Comitês Populares de Defesa das Águas e do Clima. Os dias de rio nos Comitês, as místicas, as celebrações, o sentido de cada comitê, suas expressões culturais, suas tradições e muito mais;

– uma rápida apresentação do que fizemos na Escola de Militância Pantaneira: experimentações pedagógicas e invenções, ações diretas e produção dos próprios materiais, audiências públicas; VIVA A ESCOLA DE MILITÂNCIA PANTANEIRA!

– a ARPA e sua experiência de agroecologia: Associação Regional dos Produtores Agroecológicos localizada no assentamento Roseli Nunes. Vimos fotos lindas da cozinha das mulheres construída em forma de mutirão, fotos da agroindústria de polpa de frutas, a casa do algodão agroecológico, a aprendemos que a produção abastece o Programa Nacional de Alimentação Escolar.

– a Associação Regional das produtoras Extrativistas do Pantanal, o grupo das Margaridas, as amigas da Fronteira, as Amigas do Cerrado e o beneficiamento da castanha do barú, os viveiros de mudas para replantio do Babaçú, e soubemos que elas também abastecem o PNAE.

Entrar na área delimitada do Parque da Cidade para a maior marcha de mulheres da América Latina na manhã do dia 15 de agosto foi como se imergir num fundo mar de esperança. Afinal, lá começava, repleta de diversidade, mais uma edição da Marcha das Margaridas, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Como frutos do sol, as mulheres do campo, da floresta e das águas que não paravam de chegar esbanjavam sorrisos no rosto e uma energia radiante para reivindicar o que já deveria ser seu.

– conhecemos um pouco mais da UNECAFES-MT e seus mais de 20 grupos que atuam em rede e em cooperação;

– A Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras e sua luta para preservar e valorizar as culturas, os conhecimentos tradicionais, para promover a biodiversidade, gerir a terra de forma comunal e o cultivo em forma de muchirum, mas também a luta por direitos e a luta pela terra;

– conhecemos mais um pouquinho do apiário do seu Neuzo e o delicioso mel e a contribuição das abelhas para a natureza, a alimentação, a saúde, a polinização etc etc etc;

– um tanto de conversa e a imensa alegria de estar juntos, mesmo que distantes, porque os comitês criaram durante o afastamento social exigido pela pandemia da covid, um jeito diferente de fazer laives: as laives populares!!

E finalizamos cantando: TRAGA A BANDEIRA DE LUTA, DEIXA BANDEIRA PASSAR, ESSA É A NOSSA CONDUTA, VAMOS SE UNIR PRA MUDAR… Assim aconteceu o segundo encontro (em forma de laive) no processo de Formação Continuada e Multiplicadora 2024. Foi muito bom e muito bonito, daqueles que enche a gente de energia.

Ah, e eu já ia me esquecendo do segundo acontecimento que torna o dia 7 de novembro tão especial. É que logo depois da laive, Silvio Munari e eu, Ivan Rubens, já começamos os preparativos para vencer nosso caminho até Cuiabá, capital do Mato Grosso, e de lá para Cáceres. A cabeça e o coração já estão com o Comitê Popular das Águas e do Clima do rio Paraguai. Nas próximas horas chegará o corpo carregando a bandeira para somar na luta pelo Pantanal Vivo.

 

TEXTO

Letícia Queiroz

publicado em

Temas

Vou pra COP 29 no Azerbaijão. Quais cuidados devo tomar?

Vou pra COP 29 no Azerbaijão. Quais cuidados devo tomar?

Conhecer um pouco da cultura, dos conflitos e das leis do país pode ser essencial para evitar problemas na viagem

Segurança na COP - como se preparar para ir pro Arzebaijão

Baku, capital do Azerbaijão, será cenário de negociações globais durante a 29ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP29) entre os dias 11 e 22 de novembro. A cidade vai receber pessoas de todas as partes do mundo, inclusive milhares de ativistas brasileiros que querem pensar em soluções sustentáveis para os desafios climáticos que enfrentamos. Mas antes de entrar no país é preciso conhecer o território, entender as regras, costumes e leis e tomar algumas precauções.

Saber onde está pisando, literalmente, é essencial para evitar situações perigosas, traumáticas ou, no mínimo, constrangedoras. É preciso analisar riscos, desenvolver estratégias para reduzi-los, saber como agir e, caso ocorra um incidente, realizar mudanças para evitar ou mitigar incidentes futuros.

Algumas coisas estão fora do nosso controle, já que no ativismo o risco é inerente ao trabalho realizado. Ele varia de acordo com a nossa identidade, de qual seja a nossa luta e do contexto em que estamos inseridos. A cor, a cidadania, o idioma, por exemplo, podem deixar você mais exposto ao perigo ou mais seguro.

Este texto é baseado na oficina que Luiza Santi, ativista e co-fundadora da Climate Activist Defenders, uma organização focada na segurança e bem-estar para ativistas socioambientais, realizou para ativistas por meio da Escola.

Um pouco sobre Baku e o Arzebaijão

Baku, a capital do Arzebaijão

Baku, a capital do Arzebaijão / Foto: Reprodução da internet

Baku é a maior cidade do país, com 2,4 milhões de habitantes. Por lá as temperaturas em novembro variam entre 9 e 15 °C, mas a sensação térmica pode ser ainda mais baixa. Então é importante levar roupas adequadas para o frio.

Os idiomas falados são azerbaijano, algo próximo do turco, mas na cidade há muitas pessoas fluentes nos idiomas inglês e russo. O país tem maioria da população muçulmana e os moradores são conhecidos por serem muito hospitaleiros e podem até fazer convites para uma visita em casa, mas isso pode ser perigoso e não é recomendado em nenhuma situação, seja dentro ou fora do Brasil.

O país que será o centro das negociações climáticas tem uma economia baseada na exportação de petróleo e gás natural. Mas lembre-se: fazer críticas a empresas de petróleo pode ser arriscado.

Durante a COP 29 espera-se um alto nível de vigilância em Baku. Precisamos considerar que o evento será em um local totalmente controlado pelo Governo. Desde que a COP foi anunciada para ser no Azerbaijão, a liberdade de mídia e de expressão diminuíram no país, alguns jornais foram obrigados a fechar, o número de presos políticos aumentou consideravelmente e a repressão contra a sociedade civil também cresceu.  

Não pense em fazer nada escondido, certamente você será visto. O Estado tem uma série de mecanismos que permitem uma vigilância não só de forma digital mas também através de um sistema de câmeras instaladas ao redor da cidade de Baku. Cuidado também com as redes sociais porque até as hashtags que você utiliza podem ser vigiadas.

Protestos somente com autorização - ou por sua conta e risco

Existe uma determinação que proíbe protestos sem organização prévia. Durante a COP há locais designados para protestos, mas há uma série de regras e a ação precisa ser avisada previamente. Existe um código de conduta específico e entre as regras está a proibição de nomear países e empresas e o uso de slogans. Se informe para não fazer atos, mesmo que legítimos, em locais, horários ou da forma que não seja considerada apropriada. Você pode, é claro, decidir não seguir essas regras, mas se for esse o caso é necessária uma análise bem criteriosa para avaliar se vale o risco que certamente você vai correr, assim como as consequências, que podem ser pesadas. 

É importante saber que existe um conflito entre o Azerbaijão e a Armênia especialmente na região conhecida como Nagorno-Karabakh, na fronteira entre os dois países. A crise já se estende por quase um século e há mais de 30 anos houve conflito armado. Apesar de um cessar de fogo ter sido assinado, não houve um acordo de paz concreto e a relação entre os países ainda é conflituosa, inclusive há relatos de que o visto para a COP 29 para pessoas da Armênia já foi negado diversas vezes. A recomendação é não usar referências que citam a Armênia ou qualquer símbolo do país, como mapas e/ou bandeiras. Isso é extremamente arriscado e pode colocar você em uma situação de risco desnecessária. 

Sobre conflitos em outros territórios, o Azerbaijão tenta se manter neutro, mas tem proximidades com os governos de Israel e Rússia. Então tome bastante cuidado e não tenha símbolos ou slogans de protestos contra esses países. 

O Estado azerbaijano é constitucionalmente laico e o governo implementa esse princípio com rigor, por isso manifestações públicas de fé religiosa são proibidas e os cultos devem acontecer nos espaços dedicados à atividade (mesquitas ou igrejas). Não carregue ou divulgue materiais religiosos em hipótese alguma. Além disso, comportamentos normais para nós podem ser considerados desrespeitosos. Evite carinhos em locais públicos porque isso pode gerar constrangimentos na população local, de formação cultural majoritariamente islâmica. 

Um pequeno roteiro de dicas

É essencial garantir medidas para o bem-estar durante o trabalho. A segurança é composta por processos e medidas capazes de auxiliar contra ameaças e danos físicos. Não só de ataques violentos, mas também cria salvaguardas para evitar experiências traumáticas ou implicações que atinjam outras pessoas. Então aqui vão mais algumas dicas para a sua proteção: 

Evite andar sozinho – A recomendação é que você esteja sempre acompanhado de ao menos uma pessoa de confiança, principalmente durante a noite ou quando for transitar nas ruas, em pontos de ônibus e em locais que não parecem ser tão seguros.

Não critique o presidente ou fale mal do país – No Azerbaijão é ilegal criticar o presidente, sua família ou funcionários do governo. Além disso, retratar o país de forma negativa pode gerar acusações criminais. Para não ser mal interpretado, evite inclusive tirar fotos em frente aos prédios públicos.

Atenção aos meios de transportes – Os transportes coletivos (ônibus e metrô) são acessíveis e seguros e serão gratuitos durante a COP 29. O metrô funciona em horário fixo, entre 6h e meia noite. Considere que durante a COP haverá mudanças no trânsito para facilitar a mobilidade coletiva. A organização do evento divulgou informações sobre os meios de transporte que estarão disponíveis para os participantes: Digital Maps and Transport. Procure entender os horários e trajetos para não ficar esperando por muito tempo. 

Identificação – Tenha sempre com você o crachá que comprove credenciamento na COP 29 e um documento de identificação. Além do credenciamento ser essencial para ter acesso às áreas da conferência, portar documentos pode evitar dor de cabeça.  

Segurança digital – Esteja sempre com seu celular com bateria carregada e conectado à internet, evitando redes de wifi públicas. Evite usar o Telegram e prefira canais de conversa mais seguros, como o Signal. Também é recomendado que você use uma VPN. A Virtual Privada (em inglês, Virtual Private Network) é um software que aumenta a proteção e privacidade online e é recomendada para ativistas de diferentes áreas de atuação. É importante baixar o aplicativo antes de entrar no país para que não haja chance de uma possível intervenção ou vigilância. Tenha senhas fortes e ative a notificação de dois fatores. Anote um contato de um amigo em um papel e deixe na bolsa, ele pode ser muito necessário em caso de perda do seu celular.

Atenção às regras para permanência no país – O “visto especial COP 29” permite que o titular permaneça no território da República do Azerbaijão por 30 dias. O visto é de entrada única. A recomendação é que de forma alguma cruze a fronteira e mesmo que resolva fazer turismo após a COP não ultrapasse esse período. 

A COP dividida em duas áreas, zona azul e zona verde. A verde é o espaço das negociações e é restrita para participantes credenciados. A azul é onde acontecem reuniões, painéis e recebe participantes inscritos em geral, inclusive a sociedade civil e imprensa. As duas zonas são espaços seguros. 

Saiba mais sobre a logística no Guia para Participantes Brasileiros na COP-29, documento feito pelo governo brasileiro. 

Uma conversa com Marina Silva sobre ativismo, COP e o tempo da urgência

Uma conversa com Marina Silva sobre ativismo, COP e o tempo da urgência

“O tempo da urgência é agora. O lucro de poucos não pode seguir acima da sobrevivência de muitos”

A ministra do meio ambiente Marina Silva

Quantos ativistas e quantos ativismos cabem na vida de uma pessoa? A vida de Marina Silva ecoa essas perguntas de maneira significativa: desde que veio ao mundo, em 1958, num seringal à 70 quilômetros de Rio Branco (AC), Marina foi inúmeras: militante das comunidades eclesiásticas de base (CEB) , fundadora da Central Única dos Trabalhadores, do Partido dos Trabalhadores e da Rede Sustentabilidade, professora,  vereadora, senadora, deputada federal, socioambientalista, candidata à presidência e ícone internacional do ambientalismo, por três vezes ministra.

A trajetória da ministra do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas nos faz nos questionar sobre o que define uma “pessoa ativista”. Que espaços ela pode (ou deve) ocupar? Quais são suas tarefas históricas? Quais os dilemas de alguém que luta? Uma coisa é certa: o ativista é alguém que tensiona o poder, a destruição e a desigualdade em qualquer espaço que ocupe. E esse percurso fala da amplitude do que pode ser ativista. E das armadilhas e potências que cercam essas caminhadas.

Como ministra, em 2003, na primeira vez, participou de um governo que conseguiu derrubar a taxa de desmatamento da Amazônia em 67,6%. Ficou até 2008 no cargo, tendo perdido batalhas contra projetos desenvolvimentistas pretensamente sustentáveis, ou descaradamente insustentáveis, e ganhou outras que seguraram o céu mais um pouco em seu lugar. Não foi suficiente. Não apenas a crise climática se acirrou, como o desmatamento subiu nos últimos quinze anos. Um tanto dessas derrotas podem ser sentidas como derrotas das propostas da ex-ministra.

Marina retorna ao Ministério do Meio Ambiente em 2023, vinte anos depois de sua saída, agora como ministra do meio ambiente e das mudanças climáticas. O compromisso assumido pelo Presidente Lula é de desmatamento zero até o fim do mandato. O desmatamento da Amazônia caiu novamente: 19,5% entre agosto de 2022 e julho de 2023, e mais 46% entre 2023 e 2024. Também caiu no Cerrado e na Mata Atlântica em 2024. Mas o clima não ajuda: 2023 e 2024 são alguns dos anos mais quentes já registrados e o país sufoca em fumaça e fogo. Ou se afoga em chuvas.

Pensando nos caminhos de Marina e nos desafios do presente, nós da Escola de Ativismo chamamos ela para uma conversa. Perguntamos sobre o que é ser ativista e o que ela diria para alguém que está começando agora. Sobre as tensões que se enfrenta ao estar no poder e o que é possível alcançar justamente por estar lá. Sobre promessas e limitações da COP. E sobre a meta necessária do desmatamento zero. 

Escola de Ativismo: Marina, você tem uma longa trajetória política: começou seu ativismo dentro dos movimentos sociais, dos seringueiros e da igreja e sindicatos. Para você, analisando a situação tantos anos depois, quais são os desafios para os ativistas socioambientais na Amazônia hoje? O que você diria para um(a) jovem ativista como você um dia foi e que está fazendo a luta em seu território?

Marina Silva: O contexto mudou bastante, assim, os desafios se transformaram, mas continuam existindo. Hoje os ativistas não estão mais isolados, sem comunicação, no interior da Amazônia. A luta socioambiental que as comunidades tradicionais e os povos indígenas levam em favor das florestas em pé e dos seus direitos são conhecidas, dentro e fora do Brasil. Existe uma maior visibilidade do conjunto das lutas e das ameaças à floresta e ao ativistas. Não dependemos mais apenas do contato direto das lideranças viajando para fora do Brasil para denunciar o que estava acontecendo, como o Chico Mendes precisou fazer em 1987 (no BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento). É possível alertar apoiadores, a opinião pública e as autoridades bem mais rápido do que há 30, 40 anos. Há espaço para repercussão nos meios de comunicação, no Congresso Nacional, no Judiciário. Mas nem por isso os desafios se acabaram. A sociedade brasileira está muito mais polarizada e armada. A violência contra os militantes e ativistas, no campo e na cidade, é letal, com a eliminação – muitas vezes física e muitas vezes moral – dos que contrariam os interesses de alguns poderosos e da criminalidade. Vemos reputações serem destruídas ou abaladas por meio de fake-news. Vemos campanhas de difamação, campanhas de publicidade baseadas em meias verdades que buscam desacreditar causas, vemos batalhas judiciais que exaurem os recursos de tempo e financeiros de indivíduos e de grupos inteiros da sociedade. Hoje como ontem, infelizmente, não basta ter dados, fatos e a justeza das causa – é preciso conseguir fazer com que o público acredite nos dados e fatos apresentados, inclusive em questões tão urgentes e evidentes quanto as mudanças climáticas.

O que eu diria a uma jovem ativista? Parafraseando o poeta espanhol Don Antonio Machado: “caminhante não há caminho – o caminho se faz ao andar”. Conheça o que foi feito antes – até porque o novo não se cria a partir do nada – sem que isso  signifique usar o que foi feito como mera repetição: inove e viva os desafios do teu próprio tempo.

Sua trajetória ativista te levou também para espaços institucionais do poder e da política. Olhando para seu caminho, quais são os dilemas, contradições, possibilidades e potências de estar dentro desses espaços? O que foi possível fazer e o que você sente que deixou de poder fazer ao estar nesses lugares?

Estas perguntas dariam um bom roteiro para uma coleção de livros autobiográficos. Os espaços institucionais permitem antes de tudo dar às nossas experiências a escala necessária para começar a mudar a realidade. Quando estamos na militância, no ativismo, nossa capacidade de pôr em prática as nossas propostas é sempre limitada pelos recursos disponíveis e pelos embates com aqueles que discordam de nossa visão. Nos espaços institucionais, estes limites continuam, mas são ampliados. E como não poderia deixar de ser, as diferenças com aqueles que acreditam em um modelo de desenvolvimento diferente de nossa visão continuam existindo mesmo com aquelas pessoas e instituições que são nossas aliadas. Assim, o poder que temos é sempre relativo e mediado pela realidade política. Conseguir reduzir o desmatamento na Amazônia, na Mata Atlântica e ver isso se desenhando também para o Cerrado, mesmo em um contexto climático adverso; conseguir colocar a questão ambiental, mesmo que em meio a inegáveis contradições, próximo ao centro do debate do modelo de desenvolvimento; aumentar o financiamento para programas de economia sustentável; trazer para o planejamento público federal o método de trabalho em programas transversais, compartilhados entre vários ministérios e com a sociedade; esse são alguns dos feitos para os quais sinto que estar dentro dos espaços institucionais de forma comprometida é sem dúvidas uma relevante contribuição.

O Brasil é o país mais afetado na América Latina por deslocamentos climáticos. A tragédia no Rio Grande do Sul, as enchentes e secas históricas na Amazônica, os incêndios e as nuvens de fumaça cobrindo o país, além de diversos outros eventos extremos evidenciam a urgência da nossa situação. Ao mesmo tempo, temos um congresso reativo à pauta ambiental e passamos, nas suas palavras, por um apagão de cinco anos na política ambiental. Alertas foram ignorados e os efeitos são sentidos. O tempo para ação é curto e o prognóstico terrível. É possível pensar ainda na política de desmatamento zero prometida no começo do mandato? O que ainda falta para ser feito? Nesse cenário, como ter esperança? Quais as perspectivas para o futuro da luta climática? 

A política de desmatamento zero é antes de tudo necessária. Precisamos, inclusive, reflorestar, recompor e recuperar as funções ecológicas de nossas florestas e espaços de vegetação nativa. E, mesmo com a resistência de parte significativa do setor privado a quaisquer limites na sua capacidade de decidir o que fazer em suas propriedades ou com seus investimentos, é uma questão de bom senso saber que a mudança no clima imporá limites muito mais estreitos do que qualquer política pública poderia definir. Isso acontecerá em pouquíssimo tempo e os dados científicos e os eventos extremos estão aqui para prová-lo. 

Quanto a termos esperança, sempre digo que ela é fundamental para seguirmos em frente, mas ela não pode vir de uma crença ingênua no futuro, ela deve vir da decisão de colocar em jogo nossa capacidade de acreditar criando. A sociedade brasileira mostra que entende a urgência do clima e a necessidade de mudar nosso modelo de produção e consumo. No entanto, precisamos romper a inércia dos resultados já alcançados, posto que ainda são claramente insuficientes. O tempo da urgência é agora e não pode estar submetido aos tempos da política, das eleições a cada 2 anos e das lutas pela manutenção de privilégios de poucos frente a necessidade de sobrevivência de muitos. Os mais vulneráveis economicamente são também os mais vulneráveis aos eventos extremos, mas eventualmente todos os seres humanos serão impactados.

A COP30, que acontecerá no ano que vem em Belém, deve ser uma oportunidade para o Brasil liderar pelo exemplo, sobretudo com NDCs robustas e alinhadas com a missão 1,5O, fazendo o enfrentamento das mudanças climáticas, aliando tecnologia e conhecimentos tradicionais para implantar soluções apropriadas, justas e prenhes de equidade.

As últimas COPs foram muito criticadas pela falta de voz, protesto e espaço para ativistas e defensores ambientais. Que garantias o governo federal pode dar de que em Belém será diferente? Os coletivos, organizações e especialistas climáticas terão sua voz respeitada no Brasil?

É do conhecimento de todos que as COPs se instituem dentro da logística dos processos multilaterais liderados pelas Nações, como a meu ver precisam ser, a fim de que todos os países possam ter a chance de fazer parte das decisões. O país que a sedia não tem o controle sobre sua governança de funcionamento e negociação. Isso é de domínio das Nações Unidas. O fato de ser sediada em um país diverso como o Brasil, que a duras penas consegui manter sua democracia, exige uma maior conectividade entre o multilateralismo formal e o multiculturalismo social. Ou seja, maior conectividade entre a zona verde da sociedade civil que lidera pelo exemplo, pressiona, constrange e exige, e a zona azul, dos representantes formais dos Estados, que em última instância são quem negociam e decidem. É esta conectividade que permitirá de que se decida levando em conta o necessário sentido de urgência de um planeta em inegável estado de emergência.

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Ativismos e democracia: “A luta pela democracia em Cuba começa com a defesa diante da comunidade internacional”​

Loyet Broche: A luta LGBTQIAP+, pelos direitos humanos e pela dignidade em Cuba

"A singularidade da luta pela democracia em Cuba começa precisamente com a defesa perante a comunidade internacional do nosso modelo democrático, construído a partir de nós e para nós, diferente dos demais, contextualizado e, sobretudo, fruto da autodeterminação", diz Loyet Broche, na série Democracia e Ativismos da Revista Tuíra #04

Quais são as lutas em Cuba?

Cuba, no seu desenvolvimento histórico, caminhou para um país cada vez mais plural e cheio de nuances. Esse princípio de homogeneidade como regra essencial para a organização da vida ficou no passado, em seu lugar se construiu uma sociedade diversa, polifônica e colorida. Neste contexto, é normal que sejam defendidas diversas lutas, causas que representam diferentes setores e interesses. A minha formação como jurista e teólogo, bem como a minha experiência de fé como cristão, levam-me a ser um soldado daquela parte da sociedade que defende a justiça, a liberdade e o direito a viver de forma digna e plena. A Educação Popular mostrou-me o caminho para a emancipação e ao mesmo tempo revelou aquela parte dominante que todas as pessoas carregam consciente e inconscientemente e que devemos converter em práticas emancipatórias. Por isso, luto firmemente para alcançar relações horizontais, equitativas e não discriminatórias. É uma luta que assume os seres humanos como iguais em oportunidades e direitos, que entende a vida como um valor supremo, que afirma a importância de que todos temos um lugar neste mundo diverso.

Como você faz sua luta?

Faço parte do Centro Memorial “Martin Luther King Jr.”, uma organização da sociedade civil cubana que, a partir de sua inspiração cristã e tendo como referência a Teologia da Libertação e a Educação Popular, trabalha para promover processos de participação popular para a transformação do compromisso, presença ativa, baseada numa ética emancipatória, solidária, ambiental e de paz. Ao mesmo tempo, afirma a equidade e justiça de gênero e as diversidades a partir de uma posição feminista, não heteronormativa, anti-racista, antiandrocentrista e anticolonial que desmantela e denuncia o patriarcado como uma estrutura política, econômica e sociocultural sistemática e injusta, que utiliza o sistema de dominação múltipla do capital para afirmar opressões, violências, desigualdades e insustentabilidade das diversas formas de vida e existência que fazem parte da nossa casa comum. Fazemos tudo isso através de duas redes organizadas em todo o país, a Rede Ecumênica de Fé para Cuba e a Rede de Educadores Populares, baseadas em processos de formação e acompanhamento de experiências comunitárias.

Como está organizado o movimento gay em Cuba? Quais são as principais políticas públicas existentes?

Acredito que não podemos falar de um movimento gay organizado em Cuba, embora existam ativistas, redes e instituições que defendem os direitos das pessoas LGBTIQ+.

O Centro Nacional de Educação Sexual é uma instituição de ensino, pesquisa e assistência na área da sexualidade humana que defende os direitos sexuais do povo cubano, foi fundado em 28 de dezembro de 1988. Uma das principais ações públicas organizadas por esta instituição em defesa das pessoas LGBTIQ+, é a Jornada contra a Homofobia e Transfobia em Cuba, no qual todo dia 18 de maio é realizada uma marcha que atravessa as ruas centrais de Havana. Da mesma forma, em 18 de dezembro de 2000, foi criado o primeiro grupo do que mais tarde se tornaria a “Rede de Mulheres Lésbicas e Bissexuais” com presença em todo o país, uma forma de tornar visível o ativismo pela visibilidade e pelos direitos sexuais e humanos de mulheres não-heterossexuais. Existe também a “Rede Cubana de homens que mantêm relações sexuais com outros homens” (HSH-Cuba) e a “Rede de Pessoas, Casais e Famílias Trans” (Transcuba). Fora destas redes, existem ativistas independentes que posicionam a sua luta em defesa dos direitos das pessoas LGBTQ+. 

Nos últimos anos, tem havido um maior número de políticas públicas baseadas nesta parcela da população, medidas que não só reconhecem e protegem o exercício dos seus direitos de cidadão, mas também promovem a sua incorporação em todos os setores da sociedade. Os anos de 2019 e 2022 foram decisivos neste sentido, uma vez que foram aprovadas em referendo popular duas leis que definiriam o futuro para um caminho de justiça, são elas a Constituição da República e o Código da Família. Estas duas normas incluíram em seus artigos uma série de elementos a favor das pessoas gays, lésbicas, bissexuais e trans, dentro dos quais podemos mencionar o casamento igualitário, o direito a adoção, o tratamento jurídico da maternidade e paternidade substituta, entre outros.

Como está organizado o ativismo das igrejas conservadoras em Cuba?

Tal como aconteceu há alguns anos na América Latina com o fenômeno do fundamentalismo religioso, Cuba atravessa um processo semelhante. Pela primeira vez, este setor da igreja cristã cubana saiu ao espaço público com uma agenda política clara. O contexto da reforma constitucional e posteriormente a aprovação do novo Código da Família foram o fermento para declarar abertamente a sua defesa da família tradicional e, portanto, a sua retumbante oposição ao direito que as pessoas LGBTQI+ têm de estabelecer e viver em família. É importante destacar que se trata de igrejas com elevado número de membros que realizam um trabalho evangelizador assumido como salvífico.

Qual é a sua participação nas temáticas abordadas?

Assumo um trabalho de ativismo a partir da minha atuação no Centro Martin Luther King e como membro da Rede Ecumênica Fé para Cuba, e, da mesma forma, minha formação como jurista me permite estudar e me aprofundar nessas questões. Atuo especialmente em diversos processos de formação como elemento central para a transformação, a partir disso abordamos questões relacionadas aos direitos humanos, participação cidadã, gênero, feminismos, cultura jurídica, entre outros.

Qual é a diferença entre a luta pela democracia em Cuba e em outros países?

A questão da democracia pode ser complexa em tempos de tanta polarização e fundamentalismo político, elemento que é ampliado num mundo globalizado e neoliberal. Parece que existe um modelo democrático único entendido como verdadeiro, e no qual o exercício dos direitos humanos é plenamente cumprido, claro, um modelo com características essenciais relacionadas com: o presidencialismo como receita para excelência da fórmula de governo republicano, o multipartidarismo e capitalismo como a única forma justa de organizar a vida econômica e social. Isto nos coloca diante de uma situação óbvia, tudo o que é diferente desta fórmula não goza de legitimidade no sistema mundial e também é considerado algo ruim, sendo até mesmo descrito como regimes ditatoriais.

Cuba é um país diferente, evidentemente não responde à organização social estabelecida por aqueles que governam o mundo e que tem gerado graves consequências para esta pequena ilha caribenha. Parece que a soberania não é tão soberana e que a ideia de que a liberdade não é tão verdadeira como se diz, decidir ter um sistema que não se enquadra nos moldes pré-estabelecidos pode levá-lo a ser considerado um país em que os direitos humanos são violados, com um governo autoritário e um sistema ditatorial. A singularidade da luta pela democracia em Cuba começa precisamente com a defesa perante a comunidade internacional do nosso modelo democrático, construído a partir de nós e para nós, diferente dos demais, contextualizado e, sobretudo, fruto da autodeterminação, que deve também ser entendida como uma expressão democrática.

Por que a luta de Martin Luther King é uma inspiração no contexto cubano?

TEXTO

Loyet Ricardo García Broche

Licenciado em Direito pela Universidade “Martha Abreu” de Las Villas, mestre em Direito Constitucional e Administrativo pela Universidade de La Habana, e bacharel em Teologia pelo Seminário Evangélico de Teologia de Matanzas, é integrante da Coordenação Colegiada do Centro Martin Luther King e membro da Rede Ecumênica Fé por Cuba.

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A luta pelos direitos humanos, pela dignidade, pela justiça e pela não discriminação, é lutar pela vida como valor supremo, como bênção máxima de Deus e esse foi o testemunho de Martin Luther King. Acreditamos firmemente, pela nossa experiência de fé, que o testemunho que Jesus nos deixou se manifesta fielmente na vida e na obra daquele homem negro, pastor e defensor de direitos que foi Martin Luther King, por isso a nossa missão deve ser acompanhar o povo nessa busca pela justiça, pela felicidade, pela dignidade de todos os cubanos, especialmente num momento tão complexo como o que vivemos. O convite é não nos cansarmos, não perdermos a esperança, continuarmos na luta para alcançar aquela vida plena e abundante que Jesus do Caminho deixou como promessa.

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Ativismos e democracia: “A democracia acontece quando as pessoas vão para a rua, se organizam, se formam na luta”

Vanda Aparecida dos Santos: Fé, esperança e luta definem o projeto de educação popular ambiental no pantanal brasileiro

"A democracia acontece quando as pessoas vão para a rua, se organizam e se formam na luta", diz a educadora Vanda na série Ativismos e Democracia da Tuíra #04

Por um jeito artista de ser educadora

Minha militância tem início num convento das irmãs de São Vicente de Paula, nos anos 1980. Meu noviciado (1) aconteceu em São Paulo num tempo de grandes lutas na praça da Sé e na Candelária no Rio de Janeiro, no período da redemocratização do Brasil, entre caminhadas e greves de fome, sempre na luta social pela libertação com mestres como Leonardo Boff, Carlos Mester, o bispo Dom Angélico Sândalo Bernardino, Dom Luciano Mendes, Dom Paulo Evaristo Arns.

Em Goiás, fui professora na pré-escola e no ensino médio. Organizei grupos de jovens tanto na paróquia quanto na região – quando organizamos uma inesquecível caminhada carregando caixões de defunto com mensagens de interesse da juventude até a praça central de Goiânia. Em 1987, com o desastre provocado pelo vazamento do Césio 137, os jovens passaram a cantar durante um encontro de juventude no Rio de Janeiro: “Eu amo Goiânia, Goiânia me ama”… Foi quando o estudante de teologia Isidoro Salomão pediu apoio para animação do grupo de jovens do Mato Grosso, já que eu “tocava violão e cantava muito bem”. Aos 23 anos, contra a vontade do bispo de Goiânia, fui transferida para Campo Grande (MS), minha terra natal.

Nos anos 1990, agora em Ponta Porã (MS), eu lecionava em dois períodos e lutava junto com a juventude na realidade complexa da fronteira do Brasil com o Paraguai. Convidada para tocar na ordenação de Isidoro Salomão (2), fui a primeira jovem mulher a tocar violão e cantar publicamente em Rio Branco (AC). Mais tarde, inspirados na experiência de dom Pedro Casaldáliga em São Félix do Araguaia (MT), que reunia irmãs religiosas, padres e leigos, passei a integrar a equipe pastoral em Cáceres (MT). Ali, passei a dar aulas de ensino religioso e educação artística na rede estadual, além de aulas particulares de violão. Com a equipe de pastoral do Núcleo Missionário Cristo Trabalhador, organizamos o mutirão para construção da sede da Paróquia que aglutinava 35 comunidades rurais e urbanas. A Paróquia Cristo Trabalhador era uma igreja de pé no chão, igreja dos excluídos, igreja de enfrentamento e sem medo, uma igreja libertadora e de lutas: 1º de maio, dia da mulher, grito dos excluídos, dia do agricultor, dia dos direitos humanos etc. Uma paróquia que acolhia os sem-terra que chegavam na região em sua luta pela reforma agrária e o povo Chiquitano (3). Neste momento tem início o trabalho cultural com os povos do pantanal no esforço de celebrar a cultura pantaneira: o grupo Raízes com música, danças, arte e cultura local num exercício de partilha de alimentos e saberes. O grupo Raízes mobilizava muita gente.

Da ruptura com a Igreja à Escola de Militância

Essa agenda de lutas, que envolvia as comunidades e o trabalho na base, formou o  FLEC – Fórum de Lutas das Entidades de Cáceres. Em 2009, num processo de diálogo com as comunidades, veio a grande decisão: romper com a Igreja e transformar o FLEC numa associação orientada pelo mesmo Cristo Libertador. Entre uma certa Igreja e o povo, ficamos com o povo! Nasceu assim a Sociedade Fé e Vida numa assembleia com 150 pessoas em 2010, mantendo as lutas de base nas comunidades de Laranjeiras, Paiol, Sadia e Facão e fortalecendo a luta do rio Paraguai, que já havia começado no início dos anos 2000 (4).

Em 2006, foi criado o Comitê Popular do Rio Paraguai. E a Sociedade Fé e Vida amplia a luta pela terra para a luta permanente pela água (e pela vida) em vários municípios, territórios e comunidades. Em 2019 criamos a Escola de Militância Pantaneira, com o objetivo de formar militantes de cada um dos 13 Comitês Populares de Defesa das Águas e do Clima (5) dos afluentes do rio Paraguai nos temas do nosso projeto e para que esses militantes formem outros militantes em seus territórios, em seus assentamentos, em suas comunidades, em seus Comitês.

A Escola de Militância Pantaneira é um espaço de reflexão do dia a dia, um ensinando o outro no sentido de fortalecer, de dar as bases para enfrentar as lutas. É formação sócio-político-ambiental e engajamento. Sinto que vamos ganhar força em breve. Já fomos mais fortes, depois amorteceu. O povo vai para a rua quando a necessidade é grande. A reforma agrária parou? É povo nas ruas, é povo ocupando terra que força o governo a fazer reforma agrária. Dei o exemplo da reforma agrária, mas isso serve para as outras lutas também.

Ativismo e militância

A democracia acontece quando as pessoas vão para a rua, se organizam, se formam na luta. A Escola de Militância Pantaneira tem esse papel de abrir os olhos para a luta, para a defesa do território, para a defesa de seu povo, para as suas bandeiras de luta. A mudança vem do chão, vem da base, vem do povo organizado que atua, que luta, que milita. O ativismo é pontual, a militância é permanente. O ativista ajuda nas ações pontuais, que são importantes. Tem pessoas que vão para a luta como funcionários – o caso de alguns sindicatos, por exemplo. Já a figura do militante, por sua vez, está na luta, faz da vida uma grande luta por aquilo que acredita, pela transformação da sociedade. O militante está na luta, habita esse território que é a luta. O militante não espera um projeto, não espera ter financiamento, o militante vive sua luta o tempo todo. As ações militantes são experiência e acontecimento, o ativismo nos ajuda a executar com qualidade. O ativismo necessita de um grupo de militantes para executar ações.

Governo vai e vem

Durante os governos Lula, a democracia esteve mais viva e isso favorecia as lutas. Foi um tempo de ascensão dos movimentos: o povo organizado ia para Brasília participar das conferências e das grandes assembleias, ia de avião, tinha condições de acesso e permanência nos espaços de construção das políticas públicas. Percebemos também que durante os governos Lula muita gente se dedicou aos espaços institucionais e descuidou da formação de novas lideranças. Os que lutaram pela conquista da presidência ajudaram a tocar o governo e ficou um espaço vago, faltou continuidade no trabalho de formação de base. Os militantes se formam na labuta, no dia-a-dia do trabalho, nessa formação que é espaço de pensamento e reflexão diante dos problemas da realidade, que é nacional, estadual, mas também local e territorial.

Já durante o governo repressor de Jair Bolsonaro, havia músicas antigas que cantamos novamente, músicas que falam do povo excluído, da luta por direitos. Os nossos trabalhos não pararam, a luta continuou, mas sob forte repressão. Era aquele momento de dar cada passo com cuidado redobrado porque era necessário saber onde estávamos pisando.

A vitória de Lula nas eleições de 2022 foi a gota de esperança para o povo brasileiro que deseja mudança, esse povo mais lascado. Com o novo governo Lula, com todas as limitações e alianças eleitorais, com todas as amarras, o povo vai respirar um pouco, vai ter um pão para comer, cesta básica mais acessível, poder viver. Não está fácil para o nosso povo viver hoje, não!

Na questão ambiental também. O governo anterior aproveitou a pandemia para passar a boiada; trocou o ministro, manteve porteiras escancaradas e a boiada foi passando… Foram os grupos organizados, resistentes, grupos acreditando que o ambiente deve ser o lugar do bem viver e da casa comum, esses grupos de resistência lutando, a catástrofe ambiental seria ainda pior. Talvez a boiada tivesse pisoteado tudo. Aqui no Pantanal, por exemplo, é hidrovia, é PCH (6), é ocupação das APPs (7), o poder econômico tomando tudo, acabando com tudo; o vale-tudo do agronegócio, da mineração; a destruição ambiental…

Nos dias de hoje, resistir já é muita coisa. Aqui no rio Paraguai, o Lourival (8) fala assim: “quando lerem os relatórios no futuro, verão que os votos da Sociedade do Fé e Vida foram a favor da natureza, portanto foram contra a ocupação das áreas úmidas com soja e gado, foram votos contra a hidrovia e etc. Fomos voto vencido, mas fomos resistência”.

Participação e democratização

A nossa luta tem sido também por democratizar as instituições. Nós lutamos na Igreja, nós lutamos na Câmara de Vereadores com o mandato coletivo do companheiro Alonso (9) quando nem se falava em mandato coletivo, nós lutamos por democracia na sociedade. Se a democracia acontece nessas instâncias, a vida vai fluindo.

É preciso entrar nos espaços institucionais. Em 2009 nós entramos no legislativo municipal por meio do mandato coletivo do companheiro Alonso. Foi uma campanha muito bonita, fizemos bandeiras no lambe-lambe, arrecadamos donativos para produzir o material de campanha, para fazer as visitas e levar a mensagem do nosso programa político. Para chegar a uma candidatura unificada, foi preciso um processo de escolha a partir da base. A posse foi muito bonita, e trabalhamos coletivamente entre 2009 e 2012. Andávamos na Câmara Municipal de cabeça erguida. O Alonso era militante dos direitos humanos, com passagem pelo Incra (10), dava de 10 a zero no parlamento. Trabalhamos firme na produção da Lei do Zoneamento, e o mandato coletivo dava o suporte para a atuação parlamentar do companheiro Alonso. Criamos a Semana do Meio Ambiente e o Dia do rio Paraguai. Até o salário do Alonso era partilhado no sentido de financiar as ações do mandato e os trabalhos de base. Na avaliação final do mandato, percebemos os limites dos espaços políticos institucionalizados.

Atuar nos conselhos

Os conselhos são lugares de luta pela democracia também. A composição dos conselhos é um ponto a ser repensado. A maioria é representante do governo, gente que atua nos conselhos em horário de trabalho, que tem estrutura de apoio, gente que representa associações que igualmente têm estrutura. Como atuam os representantes do movimento social e popular? Nós vamos com boa vontade e com a nossa militância. Eu já fui conselheira também, mas com o quê, com que tempo, com qual estrutura? Como fundamentar um voto? São processos administrativos de centenas e milhares de páginas. Tantos enfrentamentos pesados nós já fizemos no Condema (11), no Consema (12)… Tem toda uma parte jurídica muito pesada para ser vista.

Tem democracias com cara de democracia, mas que no fundo não dão espaço. Os comitês de bacias hidrográficas não querem nem saber o impacto que um empreendimento terá na base, ali onde mora o pescador, a comunidade. Impera o interesse dos órgãos estaduais de meio ambiente e os interesses dos empresários do setor da energia, da água, das hidrovias e tal. Mas se a gente não estiver lá, não aprendemos, não ficamos sabendo o que está rolando, não posicionamos o voto que representa os interesses dos movimentos sociais. Essa conjuntura tem afastado os movimentos sociais dos conselhos, pelo menos é o que observamos aqui no Mato Grosso. Alguns ainda resistem, mas está bem difícil.

Apesar das dificuldades de atuação nos conselhos, não ocupar os conselhos é abrir mão do direito à voz, é não ter vez. Mas é claro que tem que mudar os conselhos tanto na forma quanto no funcionamento. Imagina o movimento popular pagando advogados para apoiar nossos votos, para apoiar nossa participação, para nos ajudar a entender os processos e a legislação. Sem saber as regras do jogo, como nós podemos participar com qualidade? Mas isso não é justo, nossa participação no conselho é voluntária, não estamos em horário de trabalho, estamos doando nosso tempo e nosso trabalho para o interesse público, é um absurdo ter custos com isso. É preciso repensar isso, esses custos devem vir do governo, é o mínimo.

Arte

A arte é fundamental. Sem a arte a gente não consegue atingir as pessoas. Com a arte você atinge, você vai entrando, vai encontrando as brechas e entra. Cáceres era governada por grandes fazendeiros, nem pensar em reforma agrária. A música, a dança, a poesia, o teatro, a arte foi a forma de sermos ouvidos, as pessoas (principalmente a juventude) nos escutavam. E escutando, a mensagem vai entrando, vai passando, vai sendo memorizada, passa pelo coração até chegar nos braços e nas pernas e nos pés e dá energia para a caminhada na rua e na luta. A arte é fundamental, particularmente a música. A gente cantava. Não entrava nas rádios, mas a gente cantava nas comunidades. Cantar é cantar, é livre, todo mundo pode cantar.

Eu parei com as aulas de educação artística nas escolas para dedicar meu tempo a trabalhar com as comunidades. Tento dar dinâmica, animar os encontros, fazer com que sejam gostosos, prazerosos, que as pessoas entendam o que estão fazendo. TEM UM JEITO ARTISTA DE SER EDUCADORA. Me considero uma educadora popular ambiental.

TEXTO

Vanda Aparecida dos Santos

Educadora popular ambiental

publicado em

Temas

Escuta com o coração

O mandato coletivo do (vereador) Alonso ocupou a câmara municipal com dança, com siriri e cururu, com o grupo Raízes, com as nossas faixas. Ocupamos a Câmara de Vereadores também com nossa arte e nossa cultura. Isso vai modificando os espaços também. Por exemplo, depois que ocupamos a Câmara com dança no Dia do Rio Paraguai, outra vereadora passou a convidar grupos de dança afro para atividades também.

A gente fazia jantar e servia refeições na Câmara durante o mandato do Alonso. As laives populares são uma forma de ocupar, de democratizar os quadradinhos das telas. É ocupar as laives (13), as câmaras, os conselhos, as telas. O povo dos comitês esteve nas laives com seus territórios, chás, ervas, mel. São formas criativas e isso também é arte. Arte é criação.

Um dia, um ano

Certa vez, num curso de verão em São Paulo, dom Pedro Casaldáliga disse assim: “Todo revolucionário tem que ter disciplina, tem que ter organização.” É preciso organização, articulação, envolvimento e convencimento, sem isso você não consegue juntar gente. O Dia do Rio Paraguai é um bom exemplo desse processo que alimenta, um pouquinho por dia, a vontade e o interesse, que mantém vivo o compromisso, que cultiva o envolvimento um pouquinho por dia. É sempre assim: um ano inteiro de trabalho para cada Dia do Rio Paraguai (14). Animar a luta vai por aí.

Notas:
1. Tempo de preparação.
2. Ver Revista Tuíra 01.
3. Indígenas habitantes da fronteira Brasil – Bolívia.
4. Com destaque para as atividades do Dia do Rio Paraguai em 2000 que impediram o então governador do Mato Grosso, Dante de Oliveira de chegar para o licenciamento ambiental do Porto de Morrinhos, que marcaria o início da Hidrovia Paraguai-Paraná.
5. Trata-se de uma rede de comitês populares obedecendo a rede de drenagem na bacia do rio Paraguai. Uma rede que tece redes de luta, águas e afetos na fluidez dos rios de vida..
6. PCH: pequena central hidrelétrica.
7. APPs – áreas de preservação permanente.
8. Lourival Vasconcelos. Conselheiro representando a Sociedade Fé e Vida, enfrentou no CONSEMA a tramitação dos dois portos de Cáceres, Barranco Vermelho e Paratudal, sempre pedindo vistas e se posicionando contra a implantação destes portos do Tramo Norte. Foi servidor da Secretaria Estadual de Meio Ambiente.
9. Alonso Batista foi vereador à Câmara Municipal de Cáceres pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na legislatura 2009-2012.
10. INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
11. COMDEMA – Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente.
12. CONSEMA – Conselho Estadual de Meio Ambiente.
13. Se refere ao jeito de lutar durante o isolamento social provocado pela pandemia do Covid. Uma metodologia criada que denominaram “laive popular”.
14. Todo dia 14 de novembro.

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Ativismos e democracia: “Defender a nossa Casa Comum é intrínseco à fé cristã”​

Suzana Regina Morera: "Defender a nossa Casa Comum é intrínseco à fé cristã"

A fé e a mudança ecológica a partir da encíclica papal Laudato Si em uma perspectiva brasileira, por uma teóloga do Movimento Laudato Si

Tenho 32 anos. Sou formada em Teologia, com mestrado em Teologia Sistemático Pastoral, pela PUC Rio. Trabalho como gerente de programas para conversão ecológica no movimento Laudato Si, em nível global. No momento não resido em nenhum lugar, estou nômade. Tenho viajado bastante pelo Brasil e para outros países, onde fico em casas de amigos e família. Sempre fui muito andarilha.

Laudato Si na origem

O grande marco na minha vida para eu ser ativista foi, com certeza, a encíclica Laudato Si do Papa Francisco, que é o primeiro documento de um papa especificamente sobre o cuidado com a Casa Comum, o cuidado com a natureza e o planeta Terra. Essa encíclica foi lançada em 2015, durante a minha graduação em Teologia. À época, todos os eventos, congressos, palestras foram sobre a Laudato Si, um documento histórico para a Igreja Católica e para o mundo.

Quando eu li a encíclica, percebi que ela juntava todas as áreas da minha vida. Desde pequena eu tive a oportunidade de estar mergulhada na Criação. Minha família todo ano fazia viagens no meio da floresta amazônica, não na Amazônia legal, mas na região da floresta no Estado de Tocantins, e eu sempre senti uma conexão muito profunda com a natureza. A espiritualidade franciscana sempre esteve presente na minha vida, pois meu pai foi seminarista franciscano. Ao mesmo tempo, eu sempre tive vontade de pensar criticamente sobre a fé – essa foi uma das razões que me motivaram a estudar Teologia depois do Ensino Médio.

O Papa Francisco fala que a gente está vivendo um momento de crise, crise complexa em várias dimensões, ambiental, na política, no social, na economia, também na cultura. Eu sempre tive também uma conexão muito forte com as artes. Com a Laudato Si, eu senti que convocava inclusive meu lado artístico. Com a Laudato Si, eu encontrei um caminho para colocar todos os meus dons a serviço do cuidado da nossa Casa Comum e da justiça para as pessoas mais vulneráveis, que sofrem mais as consequências da crise ambiental que estamos vivendo.

Em 2015, poucos meses depois da publicação da Laudato Si, conheci o Movimento Laudato Si (que na época se chamava Movimento Católico Global pelo Clima). Comecei a acompanhar o ativismo católico na área de justiça climática e justiça socioambiental desde então, mas foi em 2017 que comecei a me engajar de maneira mais concreta através do curso de Animadores Laudato Si, oferecido gratuitamente pelo Movimento. Conforme fui crescendo e me engajando nessa área, ao mesmo tempo eu estava aprofundando meus estudos na área de teologia decolonial, latino-americana, feminista, e também passando por processos bastante intensos de desconstrução pessoal no que diz respeito à branquitude, à heteronormatividade e ao catolicismo. Por isso, minhas principais lutas acabam sendo um emaranhando de pautas, que eu resumiria como justiça socioambiental, justiça racial, liberdade religiosa e liberdade sexual-afetiva.

 

Do pessoal ao global, os diversos campos de luta

Dentro do campo da justiça socioambiental, a principal luta é conscientizar e mobilizar a comunidade católica global sobre a importância de cuidar da nossa Casa Comum, de o quanto isso é intrínseco à fé cristã, e assim poder trabalhar com ações concretas para alcançar, ou melhor, ir construindo mais justiça climática, ecológica e socioambiental. No Movimento Laudato Si, trabalhamos através de três pilares estratégicos: conversão ecológica, estilos de vida sustentáveis e mobilização profética (em inglês, prophetic advocacy). Eu trabalho especificamente na área de conversão ecológica, criando e gerenciando programas de desenvolvimento pessoal e comunitário para integrar os elementos da nossa Casa Comum na vivência cotidiana da espiritualidade, nas práticas litúrgicas das comunidades de base e nos níveis da hierarquia católica.

Uma das principais iniciativas que ajudo a coordenar é o Tempo da Criação, uma celebração que acontece todos os anos do dia 1 de setembro ao dia 4 de outubro. É um tempo ecumênico de oração e ação pela nossa Casa Comum, que teve início em 1989, quando o Patriarca Dimitrios I estabeleceu 1 de setembro como o Dia da Criação para a Igreja Ortodoxa. Posteriormente a data foi sendo adotada por outras denominações cristãs e, em 1999, a Rede Ambiental Cristã Europeia (ECEN) propôs estender a celebração até dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, que é reconhecido por diversas denominações cristãs como exemplo de vida pelo cuidado da natureza e dos mais vulneráveis. No site oficial (1), é possível encontrar os diversos materiais e propostas que organizamos para ajudar a mobilizar as pessoas cristãs ao redor do mundo para se engajarem nesse tempo.

Já no campo da justiça racial, liberdade religiosa e liberdade sexual-afetiva, minhas ações acabam se concentrando no desenvolvimento teológico para a justificativa e aprofundamento dessas lutas. Ao mesmo tempo, é um desenvolvimento teológico que acontece na minha vida, principalmente através das minhas experiências pessoais de convivência e partilha com uma diversidade de pessoas potentes que inspiram minha caminhada e que ajudam a me humanizar. Costumo olhar para essas minhas lutas pela perspectiva do trabalho árduo das formigas, sabendo que a minha presença e minha troca de ideias com pessoas da minha família e de contextos eclesiais são também formas de lutar plantando a semente da justiça no coração dessas pessoas.

Tenho duas grandes lutas pessoais: superar o trauma do moralismo católico distorcido que por tanto tempo determinou minha forma de enxergar o mundo e de tomar decisões para a minha vida pessoal, e aprender a viver com a tensão de ser católica, mas, por grande parte do tempo, não me sentir católica devido à institucionalização do catolicismo. Ambas essas questões eu já venho enfrentando através da terapia e do cultivo de relacionamentos saudáveis com pessoas que também se encontram nessas encruzilhadas. Nos próximos anos, desejo potencializar ainda mais minhas próprias superações pessoais através de experiências comunitárias, para assim inspirar outras pessoas a entrarem em processos de libertação.

Conservadorismo

Confesso que a única coisa que me vem à cabeça ao comentar sobre o conservadorismo religioso é angústia e frustração. Essas tendências conservadoras – pior, fundamentalistas – na Igreja Católica desvirtuam toda a essência do cristianismo. É muita incoerência seguir defendendo certas pautas e posicionamentos que afetam diretamente os direitos das pessoas. No fundo, essas tendências que tanto criticam as “ideologias” que “atacam” a fé cristã são elas mesmas uma ideologia de um cristianismo desencarnado, moralista e não-misericordioso.

Nas várias religiões que existem, conheço pessoas que lutam ativamente pelos direitos humanos e ajudam a construir uma sociedade mais justa. Há muitas lideranças religiosas históricas que foram importantes para as lutas sociais de base. Por outro lado, as religiões enquanto instituições, historicamente apoiaram processos políticos e sociais que abusaram dos direitos humanos. O que me conforta e me ajuda a seguir caminhando como resistência dentro da Igreja Católica é saber que existem várias pessoas cristãs e de outras religiões que estão juntas na caminhada por um mundo mais justo.

Religião e democracia

Eu entro um pouco em crise quando tento refletir sobre a democracia. Por mais que eu acredite que a democracia é teoricamente a melhor solução que encontramos como sociedade “civilizada”, ao mesmo tempo, na prática, ela está ainda longe de ser a melhor para todas, todos e todes. Uma parcela do problema é justamente o fato de ser um modelo que já parte de uma noção de sociedade “civilizada”, sob as influências de uma visão de mundo ocidentalizada branca europeia.

Quando olho para minhas experiências mais próximas aos povos indígenas, por exemplo, percebo as possibilidades de outros sistemas de organização social e política, que surgem e acontecem graças a uma cosmovisão, ou cosmovivência, holística e profunda. Digo tudo isso porque vejo a luta pela democracia como algo necessário, mas, ao mesmo tempo, que deve continuamente ser questionada para pensarmos em outros modelos políticos e outras formas de organização como sociedade.

Religião e democracia devem caminhar juntas, com a necessidade de que haja a maior representatividade possível da diversidade que é o mundo religioso, mas os processos democráticos continuam longe dessa pluralidade. É importante pensar mais fora da caixinha, a partir da sabedoria dos povos originários e de suas formas de viver a espiritualidade, que permeiam todas as outras dimensões da convivência comunitária.

Notas:
1. www.tempodacriacao.org

TEXTO

Suzana Regina Moreira

Formada em Teologia e Mestrado em Teologia Sistemático Pastoral, pela PUC Rio, atua como gerente de programas para conversão ecológica do Movimento Laudato Si, em nível global

publicado em

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Ativismos e democracia: “Território é o lugar dos afetos, das pertenças, das memórias coletivas”​

Priscilla dos Reis Ribeiro: Ancestralidade, luta indígena, feminismo e território

"Ancestralidade e luta por território marcam uma resistência que renasce sempre que nos enraizamos", diz a ecoteóloga na série Ativismos e Democracia da Revista Tuíra #4

Ancestralidade

Sempre esteve presente na história de minha família a “lenda” de uma antepassada indígena da qual ninguém se recorda do nome e que foi “pega a laço” para ser trazida para a fazenda dos meus antepassados. Eu-menina, cabeça cheia de criatividade, olhos cheios de poesia e alma encharcada de música, me pegava pensando em como seria essa mulher, se seria verdade esse “causo”, qual seria seu nome. Pois bem, a passagem do tempo que nos arrasta consigo, me fez desejar, na vida adulta, cavar essa narrativa e retirar de sob os escombros da branquitude essa mulher da qual herdei os longos cabelos lisos e negros como a noite sem luar, o rosto redondo e os olhos também negros, puxadinhos que se fecham quando sorrio.

Na travessia iniciada em busca de minha própria autoetnografia, me deparei com a ancestralidade tupinambá que, de tão visceral, reposicionou tudo dentro de mim, especialmente o entendimento de quem sou, dos ciclos da vida e das relações com a coletividade. Abrir os olhos para perceber os atravessamentos da minha história na vivência diária do meu corpo-território, e como isso transborda para o emaranhado do corpo social, e como está enraizado no corpo da terra, me fazendo renascer. Não porque antes eu estivesse desconectada de mim ou alheia a minha espiritualidade, mas sim porque me apresentou outras formas de ser na vida, outros mundos possíveis onde desejo habitar e a Terra sem Males onde desejo pôr os pés ainda nessa vida.

A luta abraçada

Partindo em busca de mim mesma, surpreendi-me ao encontrar os outros. Apaixonei-me pela pele cor de terra, pelos sorrisos, pela nossa língua-mãe que nos foi negada em meio aos epistemicídios coloniais que seguimos sofrendo – prova disso é que ainda hoje continuamos a nos comunicar na língua do colonizador, imposta violentamente. Você que me lê agora assim o faz pela instrumentalidade de uma língua europeia, alienígena ao nosso chão, não originária. Deslumbrei-me pelos povos originários desse território que hoje chamamos Brasil, mas que já foi Pindorama, “terra das palmeiras”, parte imensa e importantíssima de Abya Yala, nossa mátria latinoamérica, chão dos mil povos. Meu coração foi tocado e meu corpo se reconectou irremediavelmente ao Nhandereko (modo de vida Guarani): renasci na Opy (casa de reza) sob a fumaça que transcende e conduz a Nhanderu Ete e compreendi que a causa indígena é parte de nosso DNA histórico – não se pode relegá-la ao esquecimento.

Memória, justiça e território

O direito à memória caminha junto com o direito à justiça e por isso, o fato de ter meus sentimentos profundamente tocados pelos indígenas e ter sido adotada como filha pelos Guarani Mbya, que me deram o poético e simbólico nome de Para Poty, xondaria da Tekoa Ka’aguy Hovy Porã (Aldeia Mata Verde Bonita em Maricá, Rio de Janeiro) , me impulsionou à luta por políticas públicas que tornassem a vida daquela comunidade mais digna. É fato que a nossa Constituição de 1988 nos artigos 231 e 232 garante às populações indígenas os direitos inerentes à cidadania no estado democrático de direito, mas é sabido também que em nosso Congresso por anos a fio, mesmo após a democratização, as necessidades desses povos foram relegadas ao silenciamento conivente de quem deveria lutar pelo estabelecimento efetivo da lei.

Dessa forma, minha entrada no processo de retomada indígena ancestral (etnogênese) e meu retorno à universidade, para aprofundar meus conhecimentos nas epistemes que nos compõem como nação, veio acompanhado do engajamento político que busca operar ações afirmativas nos territórios indígenas. Sabemos que a palavra “território” denota mais do que terra: é o lugar dos afetos, das pertenças, das memórias coletivas. É o ente que imprime em nós relação real de parentesco com a montanha que nos aconselha em seu majestoso existir, o rio que nos lava as lágrimas, as árvores que nos embalam nas suas sombras frescas. É a localização no mundo de onde nosso umbigo está plantado, onde nosso amor floresce, onde nossos olhos se enchem de mar.

Chão e lugar

O bioma que nos pariu é quem identifica nossa subjetividade, pois o carregamos no corpo e na alma – eu trago para essas palavras os verdes múltiplos da Mata Atlântica e o azul celestial da Baía de Guanabara, pois sou do Rio de Janeiro e ele é parte de mim. E quanto a você? Qual dos seis biomas que temos em nosso território exerce guiança aos seus passos de caminhante nessa vida? Será o amazônico, o da Caatinga? Você é filhote do Cerrado, da Mata Atlântica como eu, do Pampa ou do Pantanal? O que a vegetação, os animais, o clima desses lugares dizem sobre você, sobre a cartografia afetiva do seu corpo-mapa, corpo-território, jeito-de-ser-no-mundo?

Repare: por mais que não tenhamos consciência disso, não sabemos ser gente à parte dos nossos territórios. O lugar de onde viemos imprime em nossos corpos marcas e estabelece conexões que nos seguirão (ou guiarão) por toda vida, definindo nosso jeito de comer, vestir, gastar nossos recursos, morar e até amar. Por isso é fundamental nos empenharmos no processo de solucionar seus problemas mais elementares como alimentação, moradia, saúde, educação e cultura. Em outras palavras, a bandeira da justiça social deve tremular alta no mastro da democracia verdadeira que queremos para o nosso país, dentre outras questões urgentes.

Juntar na luta

Não digo com isso que precisamos inventar a roda. Pelo contrário!  Há muito que podemos fazer para somar a luta de quem já está atuando: usemos nossas redes sociais para dar visibilidade ao que já está sendo feito de bom; nos tornemos voluntários de coletivos que estão atuando com o pé no chão e o sonho em flor;  façamos micropolítica nos ambientes onde circulamos, para reflorestar mentes, modificando mentalidades em prol do sonho comum do bem viver. Yvy Maraey, a Terra sem Males das narrativas ancestrais do povo Guarani, é lugar onde podemos chegar ainda em vida e lá haverá alimento farto para todos, nossos ancestrais dançarão conosco, doenças serão abolidas, pois finalmente teremos paz, terra e território. Que sonho bonito esse! Que sonho possível se estivermos juntos, de braços dados, engajados na vontade que move a força da vida!

Convite

Digo a você que me lê o seguinte. De uma coisa estou muito certa: assumir as pautas indígenas é uma das causas pelas quais vale a pena lutar. Permitir que a vida se desdobre sob a guiança da luta por memória e justiça, pela beleza de dias desfrutados coletivamente, pela soberania alimentar, pela preservação da grande teia da vida, pelas redes de afeto e confiança que podemos tecer juntos. Por todos e todas que vieram antes de nós e impregnaram o chão de nossa terra com o sangue da luta e da resistência, que deixaram seus saberes através dos encantados, pelos que preservam a pedagogia das folhas e das plantas mestras para os que hoje aprendem e multiplicam conhecimento de maneira orgânica na educação popular. Sim, por toda gente que luta amorosamente por dias mais fraternos e pacíficos, eu te convido: vamos juntos?

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Acampamento Terra Livre: A ocupação que ousa pensar um devir indígena para o Brasil pós-Bolsonaro

Acampamento Terra Livre: A ocupação que ousa pensar um devir indígena para o Brasil pós-Bolsonaro

Uma reflexão da Escola de Ativismo sobre a ocupação em Brasília que é a maior mobilização indígena do país

O Acampamento Terra Livre (ATL), que já teve 20 edições e acontece sempre no mês de Abril, é a maior ocupação indígena do planeta e agrega representantes dos diversos povos indígenas presentes em nosso território, que ecoam suas vozes para muito além da aridez do planalto central, onde se reúnem. São vozes que se unem contra o genocídio indígena e por dignidade, justiça, respeito e, sobretudo, demarcação de terras. Porque, como afirmam, sem demarcação não há democracia, e o futuro é indígena.

“Nossos ancestrais sempre nos ensinaram como devemos viver bem, em plena harmonia com outros seres viventes dessa terra mãe. É preciso aliar isso às ferramentas atuais sem deixar que estas desconsiderem esses ensinamentos. O tempo passa e o mundo se transforma, a sociedade se moderniza. Temos que acompanhar esses ciclos da evolução” (1) – Braz França, liderança Baré, ex-diretor da FOIRN.

Diversidade de saberes, diferentes formas de viver

Apesar da colonização e de todo projeto etnogenocida do Estado Brasileiro nesses mais de 500 anos de Brasil, o ATL é exuberante em riqueza cultural e humana – e em resistência também! Apesar das diversas ocorrências de processos de extermínios, os povos indígenas do Brasil resistem. São 305 povos indígenas diferentes em nosso país, representando uma diversidade sem igual no planeta. O ATL conta com marchas, cartazes, banner humano, dentre outras modalidades de ação direta que botam em movimento as reivindicações dos povos ali representados.

Ao longo da programação do 19º ATL em 2023, os diversos grupos indígenas decretaram emergência climática, cerrando fileiras diante de uma questão que afeta toda a humanidade, e conclamaram uma mobilização permanente contra o Marco Temporal que é uma questão que afeta diversos povos hoje no Brasil.

“Minha geração já pegou um território demarcado, homologado, mas a geração dos meus avós não vivenciou isso. Pode parecer que a gente, jovem, não entende esse processo de luta pela terra, mas nossas lideranças são muito cuidadosas em repassar tudo o que acontece, como foi construído tudo aquilo, para a gente conseguir ter acesso ao nosso território”. – João Victor Pankararu, liderança jovem do povo Pankararu.

As demandas e conquistas do 19º Acampamento Terra Livre

Os cerca de seis mil indígenas representando 200 povos, ocuparam a Praça da Cidadania, em Brasília, na maior mobilização indígena do Brasil. E, ao final do ATL, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e suas sete regionais assinalaram em documento a demarcação de terras como ação principal para a garantia dos direitos dos povos originários no país. No documento, a Apib ressalta que o que se passa atualmente não permite que seja possível comemorar os poucos avanços institucionais ocorridos em 2023. 

Ainda no 19º ATL, os indígenas que ali compareceram destacaram a resistência do povo Yanomami, que passa por uma situação genocida, de violações de direitos elementares causada pela invasão do território sobretudo por garimpeiros. Os nove indígenas do povo Guarani e Kaiowá detidos de maneira injusta também foram lembrados e, muito em razão da mobilização do ATL, foram libertados no último dia do acampamento.

Mulheres em luta durante a Marcha das Margaridas de 2023

Foto: Vitória Rodrigues

A mensagem principal do ATL foi “o futuro indígena é hoje, sem demarcação não há democracia!”, que deixam claro a esperança de um devir indígena para o país, que possa viver e respeitar a cultura e os modos das centenas de povos ocupando de Oiapoque (2) a Chuí no território brasileiro. E tendo isso em vista, foi entregue um documento ao presidente Lula chamado “Sem demarcação não há democracia!”, no qual são reconhecidos os avanços, mas é assinalado de maneira crucial as inquietações em relação ao posicionamento da Advocacia Geral da União (AGU) relativo ao Marco Temporal, que ainda em 2024 continua sob vistas, e também foi lembrado a ausência de um cronograma para a retomada da política de demarcação e proteção das terras indígenas.

Ao final da ocupação, o governo brasileiro entregou os decretos de homologação de seis Terras Indígenas (TI): TI Rio dos Índios (RS); TI Avá-Canoeiro (GO); TI Tremembé da Barra do Mundaú (CE); TI Kariri-Xocó (AL); TI Uneiuxi (AM) e TI Arara do Rio Amônia (AC). Dessa forma, quebrou-se um jejum de quase 6 anos sem a garantia deste direito fundamental dos povos indígenas. 

“Para meu povo Baniwa, território significa um lugar sagrado, porque o povo Baniwa se originou de um lugar sagrado chamado Ripana, que é o umbigo do mundo. É uma cachoeira e, segundo as nossas narrativas, as nossas metodologias, nós nascemos de uma vagina feita de pedra. Então nossa conexão com o território é sagrada, porque a gente nasceu dessa Ripana, dessa cachoeira, chamada atualmente Uapuí, e a gente está ligada a esse lugar”. – Francy Baniwa, liderança do povo Baniwa.

Notas:
1. Todos os depoimentos foram coletados no 18º Acampamento Terra Livre e estão presentes na excelente publicação Povos Indígenas do Brasil (2017/2022), do Instituto Sócio Ambiental
2. Expressão popularmente utilizada como referência às extremidades do território brasileiro. Tecnicamente, o extremo Norte brasileiro situa-se no alto do monte Caburaí (1456 metros de altitude), município de Uiramutã, estado de Roraima, na divisa do Brasil com a Guiana.

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