Por Juman Asmail
tradução: Carolina Munis
O ano de 1948 é celebrado por Israel como sua “independência”. O ano de 1948, no entanto, é o ano da Nakba – a Catástrofe Palestina: luto pela limpeza étnica, pelas atrocidades e pela expulsão forçada. A limpeza étnica, enquanto ferramenta primordial para o colonialismo de ocupação, não é nova. Os povos indígenas do Brasil enfrentaram o mesmo crime durante a colonização portuguesa na América do Sul. Parece que o mundo não avançou muito desde 1500. É século 21, e no entanto Israel continua a cometer tais crimes à luz do dia, exceto que o faz com técnicas e tecnologias “inovadoras” que são comercializadas como “inovações Testadas em campo” e exportadas para o resto do mundo (1). A militarização é, assim, empregada em cada contexto local para oprimir e marginalizar um determinado grupo, como as práticas historicamente racistas contra a população negra no Brasil.
MOMENTO DECISIVO
Quando fui chamada para escrever uma contribuição, com foco na Palestina, para a Tuíra, não recuei. Fiquei entusiasmada em compartilhar mais sobre a luta, minha e de mais de 12 milhões de palestinas e palestinos – o povo indígena (2) da Palestina –, pela libertação frente à colonização, ao apartheid e à ocupação militar em curso. Porém, mais do que isso, eu estava ansiosa para me conectar com a luta dos povos indígenas do Brasil e aprender mais sobre ela, bem como a luta mais ampla contra o racismo e a ascensão de poderes de direita no Brasil. Espero, neste artigo, compartilhar algumas ideias sobre o boicote e o desinvestimento como táticas usadas pelo movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) liderado pelos palestinos e o impacto que elas têm. Talvez mais importante, também espero colocar questões sobre a mobilização conjunta, além-fronteiras, que pode aproximar nossa luta coletiva contra a opressão.
Um momento decisivo emerge: sento-me para realmente escrever este texto e, de repente, sinto o ímpeto da responsabilidade… A responsabilidade de me engajar em uma questão tão importante quanto “o que é transformação real para o ativismo?”(3). Percebi que, se soubesse a resposta, provavelmente não estaria escrevendo. Pelo que sei, é nossa responsabilidade coletiva continuar a nos fazer perguntas. Continuar duvidando de nossas respostas. E, então, buscar responder novamente às nossas dúvidas e seguir com este processo. Percebi que a verdadeira mudança reside na continuidade do acontecimento da mudança. Ou talvez, a continuidade do vir a ser – como o vir a ser de Tuíra…
AMEAÇA ESTRATÉGICA
Depois da Segunda Intifada, a situação na Palestina estava sombria: colônias israelenses em expansão, continuidade da limpeza e ocupação étnica e um impasse no assim chamado “processo de paz”. Nesse contexto, mais de 170 federações e coalizões que representam centenas de grupos políticos, sindicatos, organizações culturais e ONGs locais lançaram e manifestaram apoio à convocação do BDS. A sociedade civil palestina convocou pessoas conscientes em todo o mundo a boicotar, desinvestir e impor sanções a “Israel” até que cumpra o direito internacional. A convocação foi feita em 9 de julho de 2005, um ano após a data da Opinião Consultiva da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que considerou ilegal o muro de Israel. O movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) estabelece três demandas visando três direitos básicos dos palestinos: o retorno dos refugiados para suas terras natais, o fim da ocupação e o fim do apartheid (4). Em 2012, o movimento havia ganhado apoio popular internacional. Em 2015, Israel declarou oficialmente que considera o movimento uma “ameaça estratégica” (5) e lançou contra ele uma ofensiva, que se estende da adoção de políticas e legislações internas até a pressão por mudanças na política internacional, numa tentativa de reprimir o movimento, seus membros e seus apoiadores tanto na Palestina quanto no exterior.
Por que uma entidade tão poderosa, dotada de recursos efortemente militarizada quanto Israel veria um movimento pacífico e de base como uma “ameaça estratégica”?
FORÇA DE UM BATALHÃO
O avanço inédito que o movimento BDS liderou estava menos na execução da tática em si e mais na escala de seu impacto. O boicote como uma tática tem sido empregado por lutas em todo o mundo, da Índia à África do Sul, aos Estados Unidos. E tem sido usado de maneira organizada como uma ferramenta para a resistência na Palestina desde pelo menos 19226, à época em resposta aos sistemáticos ataques armados contra os palestinos cometidos por colonos europeus durante as primeiras formações de colônias sionistas (7). Junto com as greves gerais, também foi usado para resistir às políticas britânicas de “mandato” que facilitaram a transferência em massa, acelerada pela ascensão do nazismo, de colonos judeus europeus para a terra palestina. O boicote passou, então, a ser usado em toda a luta palestina, inclusive, e mais substancialmente, em 1929-1948 e durante a Primeira e a Segunda Intifadas (Levantes).
Durante a última década, contudo, o BDS teve um sucesso singular em influenciar um espectro de apoiadores em escala global, o que pode ser melhor compreendido através de uma análise do espectro de aliados (8). Mais pessoas e instituições que antes eram neutras em relação à situação na Palestina estão se tornando aliadas passivas, e mais agentes do campo da oposição passiva estão se tornando neutros. Isso se reflete no aumento do número de resoluções do BDS que foram adotadas entre sindicatos de estudantes, associações acadêmicas, sindicatos de trabalhadores e partidos políticos, muitos dos quais enfrentaram oposição minoritária em seu eleitorado. O número de artistas e personalidades culturais que estão explicitamente cancelando seus eventos em Israel ou implicitamente evitando tais conotações com o regime israelense também está aumentando. Em 2018, Gilberto Gil cancelou seu show em Tel Aviv após telefonemas de grupos do BDS no Brasil e de artistas palestinos. Outros notáveis exemplos recentes incluem os cancelamentos feitos por Lana Del Rey, Shakira e Lorde, para mencionar apenas alguns. Da mesma forma, a seleção nacional de futebol da Argentina abandonou seu jogo amistoso com Israel após as reivindicações de times de futebol palestinos e grupos do BDS em todo o mundo. Os múltiplos níveis de ações permitidas pelo boicote enquanto tática oferecem outro nível de compreensão e análise de uma determinada forma de mudança: aquela em que apoiadores passivos são habilitados a se tornarem apoiadores ativos por meio de chamadas para a ação específicas e realizáveis.
O BDS, embora seja um conceito orientado para a ação, é no final das contas uma ideia que foi adotada por massas de pessoas conscientes em todo o mundo. Enquanto nós, como pessoas, somos mortais, uma ideia não pode ser morta. Isso talvez seja aquilo que mais vem preocupando Israel. O aparato militar pode matar ou encarcerar pessoas, mas não pode destruir um pensamento. Sinto-me compelida, aqui, a mencionar o assassinato pelo Mossad (9) de um dos mais renomados romancistas e escritores palestinos, Ghassan Kanafani, em 1972. Lendas populares contam que Golda Meir, então Primeira Ministra de Israel, disse que a literatura de Kanafani era equivalente a um batalhão – uma unidade militar de 300 a 800 soldados. Em resposta à ampla difusão e apoio ao BDS a nível global, Israel lançou uma campanha anti-BDS sob a bandeira de Brand Israel (10). É uma tentativa de retratar com uma imagem mais favorável a sua realidade opressora. Em 2016, o regime israelense alocou 26 milhões de dólares de seu orçamento anual para combater as atividades do BDS e formou uma unidade dentro do Ministério de Assuntos Estratégicos responsável por coordenar os esforços contra o movimento (11). Além das medidas internas, o lobby sionista no exterior, especialmente no Reino Unido, na Europa continental e nos Estados Unidos, buscava veementemente criminalizar essa campanha de solidariedade não violenta por meio de lobby com políticos e parlamentares. Além disso, houve processos contra ativistas e tentativas de infiltração em grupos – todas, táticas de intimidação.
MÚLTIPLOS ALVOS
Ao passo em que o boicote tem sido usado há muito tempo no contexto da luta palestina, o desinvestimento é uma tática relativamente nova e amplamente inspirada nas campanhas de desinvestimento durante a histórica luta contra o apartheid na África do Sul. Os primórdios dos esforços de desinvestimento contra Israel foram liderados por estudantes palestinos e árabes que estudavam no exterior no final de 1999 e início de 2000, na esteira de lutas interseccionais pela justiça social e contra o avanço de políticas neoliberais em todo o mundo. No centro das campanhas do BDS, como explica Noura Erakat, está uma “estratégia tripartite enraizada na lógica econômica”. Isso é particularmente importante no contexto do desinvestimento, porque a hipótese na qual se baseia o sucesso dessas campanhas é de viés corporativo. Elas identificam Israel como um alvo primário, poderoso demais para que seus mecanismos internos de decisão sejam influenciados pela pressão externa direta. Em seguida, identifica alvos secundários que facilitam, ativam ou lucram com os crimes de Israel e são menos poderosos e/ou mais responsivos à pressão externa do que o alvo principal. Essas miras secundárias incluem corporações multinacionais que investem bilhões de dólares na economia de Israel e ainda dependem da obtenção de clientes, contratos e investidores a nível global. Se um número suficiente de alvos secundários retirar seus investimentos, o mercado israelense se tornaria financeiramente sobrecarregado, o que comprometeria sua capacidade de sustentar seu sistema de opressão. A equação final vem a ser, portanto, que as corporações devem chegar a uma decisão interna de que investir em Israel é ruim para seus negócios em nível global. Isso acontece através do ataque a contratos e investimentos locais em dezenas de países simultaneamente. Esses clientes e investidores são alvos terciários e são ainda mais suscetíveis à pressão do que os alvos secundários, podendo frequentemente cancelar seus contratos com os alvos secundários por causa de seu ethos moral.
Tomemos como exemplo a campanha Stop G4S (”Pare o G4S”) . O Grupo 4 Securicor (G4S) é a maior empresa de segurança do mundo e a terceira maior corporação mundial, depois do Walmart e da Foxconn. Foi cúmplice da ocupação de Israel através da prestação de serviço para as prisões e centros de detenção israelenses, o muro do apartheid, os assentamentos e, mais recentemente, a Academia de Polícia. Ativistas do BDS em todo o mundo pressionaram, fizeram lobby e convenceram uma ampla gama de clientes a encerrarem seus contratos com a G4S ou venderem suas participações na empresa-mãe – de agências das Nações Unidas a uma rede local de waffles na Colômbia, bem como investidores tão variados quanto a Fundação Bill e Melinda Gates e o Fundo de Segurança Social do Kuwait. Como resultado dessa campanha intensiva do BDS, a G4S perdeu bilhões em contratos e aplicações, o que eventualmente forçou a retirada de 80% de seus investimentos em Israel. Mas, em seguida, esse efeito se multiplicou: Orange, Veolia (12) e CHR são todas corporações multinacionais gigantes que também removeram seus investimentos de Israel devido à pressão do BDS. Gradualmente, mais corporações estão entendendo que investir em Israel, que significa lucrar com crimes, é ruim para os negócios. Em 2014, o Relatório Mundial de Investimentos da ONU descobriu que o investimento estrangeiro direto na economia israelense caiu 46% em relação a 2013. Segundo os autores do relatório, o aumento das campanhas de boicote é parte da razão por trás dessa queda (13).
Poeta Ghassam Kanafani
SOLIDARIEDADE INTERSECCIONAL
Mas a história sobre a G4S estaria incompleta sem menção à interseccionalidade. Em seu livro A liberdade é uma luta constante, Angela Davis explica que o modelo econômico neoliberal, enraizado na privatização, permitiu que a coerção estatal alcançasse o lucro por meio da privatização do encarceramento e da guerra. Através de suas operações internacionais, a G4S estava lucrando não apenas com violações na Palestina, mas também com prisões de que ela possuía e geria em caráter privado, centros de deportação de imigração e abusos trabalhistas. A interseccionalidade identifica uma sobreposição entre as fontes de opressão enfrentadas pelos grupos marginalizados com base em seu sexo, gênero, raça, classe social e outras bases, convocando possibilidades de ação conjunta que transcendem esses limites. A campanha Stop G4S construiu conexões com múltiplos setores afetados pelos delitos da empresa, como grupos lutando por moradia, asilo e direitos trabalhistas. Havia todo um rol de injustiças, como mostrava o caso de Jimmy Mubenga, um migrante angolano que foi morto pelas mãos de guardas da G4S durante a deportação forçada do Reino Unido, ou as violações trabalhistas enfrentadas pelos trabalhadores da empresa, especialmente no Malawi e Moçambique, ou os maus tratos aos requerentes de asilo por guardas de segurança no centro de detenção de Papua-Nova Guiné.(14)
Davis descreve a Interseccionalidade como uma estrutura que nos permite pensar sobre o que podem parecer lutas transnacionais dramaticamente diferentes como lutas muito semelhantes passíveis de resposta coletiva (15). A sede por justiça aproximou palestinos e brasileiros em 2016, quando ativistas brasileiros convenceram o estado da Bahia a encerrar seu acordo corporativo com a Mekorot, a companhia de água israelense que implementa as políticas de apartheid de Israel contra o direito dos palestinos de acessar a água. Sob uma ótica similar, a privatização da água não é novidade para o Brasil e tem sido motivo de preocupação para a luta pela justiça da água no país desde pelo menos 1996. Arte e cultura são outros aspectos importantes da nossa existência que poderiam ser usados para resistir à injustiça. Em 2018, a cantora, performer e ativista trans-negra brasileira Linn da Quebrada cancelou sua participação no Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv, já que Israel usa esses festivais como uma forma de pinkwashing para cobrir seus crimes (16). Linn recebeu pedidos e cartas para cancelar sua participação de diferentes pessoas ao redor do mundo, inclusive de Angela Davis, que não apenas escreve sobre a interseccionalidade, mas também a pratica de maneira significativa.
A solidariedade interseccional deu às campanhas do BDS uma proeminência muito maior no universo da justiça social do que inicialmente se poderia imaginar. E, a partir daqui, talvez seja apropriado reconhecer que a fonte de opressão que permite a impunidade de Israel não é tão diferente daquela que permite os avanços racistas de Jair Bolsonaro. Isso foi recentemente capturado por uma declaração conjunta da sociedade civil palestino-brasileira (17) de dezembro de 2018 sobre a internacionalidade de nossa luta coletiva por justiça social, dignidade e liberdade em todo o mundo, na sequência do anúncio dos planos de mover a embaixada brasileira para a Jerusalém ocupada. Da militarização nas favelas à repressão dos movimentos sociais, as tecnologias que são usadas contra os brasileiros e brasileiras não são muito diferentes daquelas que Israel constrói, exporta e utiliza para oprimir a nós, palestinas e palestinos (18). De certa forma, o BDS fornece uma plataforma não apenas para combater o projeto colonialista de ocupação de Israel na Palestina, mas também para resistir à opressão a nível local.
Em um contexto político de limpeza étnica e atrocidades contínuas na Palestina, será que o crescimento mundial da base de apoiadores dos direitos palestinos conta como mudança real? A retirada de megacorporações da economia israelense é uma mudança real? Talvez, talvez não, ou talvez ainda não… Mas talvez o mais importante é que esses resultados foram possíveis devido ao mantra muito simples, mas um tanto difícil, que repetimos seguidamente: juntos, somos mais fortes. Então, talvez a questão que se segue seja: como podemos trabalhar coletivamente de maneira mais inclusiva e melhor organizada para impactar o desequilíbrio global que existe nas estruturas de poder e permite a opressão?
NOTAS
1 Inclusive, o Brasil tem sido um benfeitor de tais produtos. Para um exemplo disso, veja: https://www.stopthewall.org/2014/12/03/bds-successelbit-systems-loses-key-brazildeal-over-palestine-protests
2 No original, indigenous. Em inglês, o termo “indígena” é mais explicitamente entendido como “nativo” – tanto é que os indígenas nos EUA são chamados de Native Americans. Já em português ele evoca mais instaneamente os povos indígenas, sem remeter tão diretamente ao fato de que eles são, afinal, os autóctones. Optou-se por deixar a tradução como “indígena”, e não “nativo”, para aludir à raiz da palavra. A conexão com os indígenas brasileiros logo será feita, algumas linhas adiante.
3 Questão abordada em Tuíra #2.
4 Convocação do BDS https://bdsmovement.net/call
5 Peter Beaumont. “Israel brands Palestinian-led boycott movement a ‘strategic threat’”. The Guardian, 3 de junho de 2015. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2015/jun/03/israel-brandspalestinian-boycott-strategicthreat-netanyahu
6 Fadi Asleh. História doBoicote na Palestina. Khazaaen Archives, 2017. Disponível em: https://khazaaen.wordpress.com/2017/11/25
7 Nur Masalha. Expulsions Of The Palestinians. The Concept of “transfer” in Zionist Political Thought, 1882-1948. Institute for Palestine Studies, 1992.
8 Leia mais sobre o Espectro de Aliados aqui: https://beautifulrising.org/tool/spectrum-of-allies
9 A agência de inteligência de Israel.
10 Asa Winstanley. The failure of Brand Israel. Middle East Monitor, 2017. Disponível em: https://www.middleeastmonitor.com/20170330-the-failure-ofbrand-israel/
11 Nathan Thrall. BDS: How a controversial non-violent movement has transformed the Israeli-Palestinian debate. The Guardian, 2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2018/aug/14/bds-boycott-divestmentsanctions-movement-transformedisraeli-palestinian-debate
12 Mais informações: https://beautifulrising.org/tool/dump-veolia-campaign
13 Moshe Glantz. Foreign investment in Israel cut by half in 2014. Ynet News, 2019. Disponível em: https://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-4672509,00.html
14 Mais informações: https://bdsmovement.net/stop-g4s
15 Angela Davis. A Liberdade é uma Luta Constante. Boitempo, 2018. Tradução livre
16 Mais informações: ttps://bdsmovement.net/news/afterbds-pressure-brazilian-provincecancels-cooperation-agreementisrael%E2%80%99s-mekorot
17 Declaração disponível em: https://bdsmovement.net/news/palestinians-and-brazilians-calljoint-struggle-against-israelbolsonaro-alliance