Um ensaio sobre os fenômenos do isolamento e do contato social
Por Mario Campagnani*
O movimento, os caminhos abertos, os encontros. A invenção da roda é uma revolução sempre lembrada. Com ela se abre a possibilidade de chegar a locais até então inacessíveis, de circular. Certamente não tão admirado quanto sua companheira histórica, o muro é outra invenção humana cuja origem se perdeu no tempo. O primeiro ser a pegar uma pedra, não para lascá-la como ferramenta de corte, mas em busca da retidão, da possibilidade de que uma ficasse sobre a outra, não teve noção do que essa proposta significaria para seus bilhões de descendentes, milhares de anos depois. O objetivo cartesiano, alinhado. O movimento não só não é meta, como também é adversário. O que se busca é a solidez estática, a separação, a impossibilidade de contato de um lado com o outro.
O muro e a roda seguiram na história de diversas formas, mas as sociedades – salvo algumas civilizações nômades cada vez mais raras – tiveram no primeiro e não na segunda, o elemento central de sua constituição. E a evolução dessa tecnologia seguiu se sofisticando tanto que em algum outro momento perdido na história um ser teve a ideia de uma parede que existe para além da fisicalidade: uma fronteira, uma linha imaginária que usa ou não algum elemento da geografia para se basear, uma abstração que ganha concretude em como as relações humanas se estabeleceram a partir do momento em que ela foi riscada. Uma caneta num papel na Europa rasgou milhares de quilômetros na África. Decretos para impedir, até mesmo por assassinato, qualquer um que não respeite as paredes fronteiriças da modernidade, obra humana muito mais poderosa do que qualquer Grande Muralha.
Uma vez que a humanidade se sente protegida, cabe o debate sobre o que nos ameaça. Não há necessariamente uma relação direta entre proteção e ameaça, por mais que possa parecer natural. Para se sentir protegido, não é necessário que exista uma ameaça, um ataque. Novamente, é a abstração que dá conta de construir aquilo que o físico, o material, o que é tocado e o que pode tocar não representa.
“Sinto mais medo ao pensar em permitir a entrada do inimigo do que perder a toca”
Em seu conto “A Toca”(1), Kafka apresenta a história de uma criatura que despendeu a maior parte de sua vida construindo sua morada, sua proteção em caverna entranhada na mata, coberta de musgos, contra ameaças do exterior. Apesar de haver traços humanos na descrição do personagem, as linhas vagas em relação à sua imagem reforçam ainda mais essa condição indefinida, talvez de algo que já foi homem e hoje é um ser novo, constituído darwinianamente pela relação e adaptação ao ambiente. Numa narrativa estreita e escura como os túneis da criatura, somos levados até sua cabeça e seus medos.
De alguma forma ele sabe que sua vida está entrelaçada com a do seu lar, feito de labirintos e do “Meu reduto”, espaço principal e preferido dele na toca. Foi o sangue de suas mãos e de sua própria testa cavando a terra por incontáveis anos que criou todo aquele espaço de proteção. E algo precisaria justificar todo aquele esforço ao final. A justificativa surge por meio de um som, baixo e intermitente, cuja origem é desconhecida. É o que basta para despertar todo o medo do ser que ali vive.
Não é a ameaça que cria o medo de ter seu território, sua casa, seu corpo, sua toca invadida. Para isso basta a imaginação. Saber que o outro pode chegar por meio de um leve sussurro, ou então por gotículas espalhadas pelo ar, é uma possibilidade que já basta para efetivamente despertar o medo.É esse sentimento primordial, que brota de profundas cavernas interiores, que Kafka utiliza para conduzir o protagonista em sua jornada contra o inimigo invisível. Ele imagina o possível encontro com esse invasor. Não há outra possibilidade que não seja a morte dele ou do outro. Não haverá qualquer diálogo ou busca por compreender o que se passa. Adentrar as paredes da toca é a única informação que basta para definir que é um inimigo.
A toca ou a parede por si só nunca garantiram qualquer separação ou segurança. Essa sensação somente advém, ao fim, da vigilância da estrutura. Nos melhores momentos, a criatura de Kafka somente consegue sentir uma paz que se assemelha a dos países que nunca vão abdicar de exércitos, armas, controle. Por maior que seja o muro, ele sempre pode ser atacado. O inimigo está lá, sempre esteve, mesmo que apenas como um som que só você consegue escutar.
Para permanecer seguro é preciso estar atento e confiante na parede que nos foi ofertada ou feita por nossas mãos. O Estado, a casa, a toca. Templos erguidos sem altar, deuses em si mesmos. Símbolos de uma proteção que estátua alguma pode oferecer.
Se trata de fé, certamente. Não é necessário provar que deuses existem ou não. O ponto é o quanto eles atuam pela simples crença em sua influência na nossa vida. Como todas as divindades, essa também comprova seu poder, não por linhas tortas, mas pelas retas, altas, duras e vigiadas. Se fazemos algo porque acreditamos que estamos protegidos, por uma parede ou um deus, essa escolha já é um resultado direto dessa metafísica.
“Você vive em paz, aquecido, bem alimentado sendo o proprietário, o único dono de todas as suas múltiplas passagens e quartos, e evidentemente não está preparado para renunciar, ou melhor, a arriscar tudo…”
Estar do outro lado do muro é estar exposto, arriscar a misturar-se com aquilo sobre o que não se tem controle. Cercado por barreiras, é possível dimensionar o que pode afetar, atingir. No exterior, o fluxo é independente, incontrolável.
É também a possibilidade de encontrar com a diferença, causa de deslumbramento e incômodo. É nessas possibilidades de trocas entre casas, povos e continentes que o mundo constituiu seus maiores feitos e orgulhos. Também é a partir desse encontro que genocídios e dominações foram feitas. O muro, afinal, nunca parou de ser ampliado, apenas se sofisticou, assumindo a porosidade seletiva que interessa àqueles que o construíram.
Para alguns povos, certamente, essa constituição de muros e propriedades nunca fez sentido. Em 1500, quando um grupo de portugueses chegou ao território que foi batizado posteriormente de Brasil (após alguns nomes menos criativos), já havia um tratado assinado em 1494 dividindo um território sobre o qual ainda nem se sabia o tamanho. Possivelmente, os indígenas que encontraram o grupo de brancos mal nutridos não entenderam bem o que se passava, mas se houvesse uma possibilidade de explicar que uma linha reta do norte ao sul do planeta dividia aquele território, certamente eles tomariam os portugueses como loucos.
Essa divisão, porém, funcionou. Se não em termos práticos imediatos, como ideia que foi sendo trabalhada, tijolo por tijolo, durante séculos. A propriedade do Estado, do rei, do latifundiário, do empresário, do pai de família. O que está cercado por meus muros me pertence, mesmo que sejam vidas.
A guinada epistemológica pode não ser exclusiva, mas é europeia por excelência. Não é o homem que pertence à terra, é a terra que pertence ao homem. E algo só pode pertencer a alguém se houver as linhas, físicas ou imaginárias, que demarcam a propriedade. Não existe terra comum, de todos, “sem dono”. Serão elas sempre prioridades nossas, de aliados, adversários ou dominados.
A reprodução dessa lógica chega até as microrrelações entre as pequenas tocas que ocupam os mesmos espaços nas grandes cidades. Quando nos vemos frente a ameaças concretas, o valor dos muros ganha uma dimensão concreta. Condomínios, seguranças, câmeras, alarmes. No momento em que é o outro que traz a doença e a morte, o discurso separatista ganha força. Afinal, temos que nos proteger em relação ao que é distinto.
A culpa então seria da roda. Uma afirmação simples de fazer a partir do momento em que é difícil definir quais são as mortes, quais são as perdas que a escolha pelo muro acarretou. Morrer ao circular é mais fácil de identificar do que morrer por se cercar, palavra que virou sinônimo de se proteger.
Não há aqui a possibilidade nem a necessidade de discutir a eficácia do muro, especialmente no contexto da pandemia, no qual isolar-se é sim uma questão de sobrevivência. A questão é pensar o que seria possível sem ele. A propriedade, a ideia de posse, por exemplo, teria que ser revista, ou mesmo abandonada. Uma mudança que teria que partir do alicerce do como nos entendemos como sociedade, ou da direção que a roda da história segue. E o desafio de fazer isso não como uma construção idílica, mas como a chance de pensar questões diferentes, novos problemas ao menos.
Amamos aquilo que nos cativa, verbo que traz os sentidos de proteção, pertencimento, ligação. Da mesma origem temos o substantivo cativeiro, cujas ligações vêm com sentidos diversos, mas que tem sua acepção mais forte ligada à ideia de prisão. Aquilo pelo que nos sentimos ligados é também o que nos aprisiona. Casa como cativeiro, lar como detenção. É preciso lidar com o fato de que a Síndrome de Estocolmo que nos acomete é fruto do nosso reflexo, da nossa relação com os espaços que construímos com o sangue das nossas mãos ou das de outros.
Notas:
1 Franz Kafka, O bestiário de Kafka, Bertrand Editora, 2016.
*É importante ressaltar, no contexto de pandemia, que tanto o autor como Tuíra defendem o distanciamento social e todas as práticas cientificamente comprovadas de combate e prevenção ao coronavírus.