A crise global da pandemia pode nos ajudar a limpar os olhos para enxergar melhor o mundo e a vivenciar outros modos possíveis de envolvimento com a comunidade e a natureza.
Por Ailton Krenak
*Este texto apresenta o registro da conversa de Ailton Krenak com Luciana Ferreira, durante o Festival AmazôniaS, realizado online em abril de 2020. Uma versão resumida foi publicada em Tuíra de Emergência, aqui.
Estamos na quarentena e apesar de tanta desinformação sobre qual a melhor atitude a tomar diante de uma situação dessas, [a opção de] ficar em casa é a mais óbvia. Algumas pessoas ficam achando que é um conselho difícil de ser oferecido, porque muitas pessoas não poderiam ficar em casa, principalmente nos grandes centros urbanos, em comunidades em que todo dia precisa-se trabalhar para trazer a comida para casa, trazer o remédio e pagar as contas. Então dizer para uma pessoa dessas “fique em casa” pode ser uma ofensa. Eu não quero de jeito nenhum ofender ninguém com uma recomendação de ficar em casa. A gente não sabe onde dói e o que nós temos que fazer a cada momento. Acredito nessa natural sabedoria a que cada um de nós pode recorrer para que a gente possa seguir vivendo da melhor maneira e superar as dificuldades. Nós estamos vivendo uma situação de dificuldade nos últimos meses, digamos assim, agravada pelo fato de que agora nós temos também uma espécie de confusão de orientação. Eu estou aqui em Minas Gerais, no médio rio Doce — aquele rio de que vocês tiveram notícia quatro anos atrás, quando a lama da mineração invadiu nosso lado, que é o nosso rio. Nós estamos a uns 300 metros da calha do rio, é pertinho daqui de casa. Nós não podemos usar a água desse rio, vocês já sabem disso, e nós somos assistidos aqui por caminhão pipa e outras ações emergenciais que as empresas responsabilizadas por esse dano tem que promover para 130 famílias que vivem aqui nesta reserva. É uma reserva, tem quatro mil hectares, a vegetação tá bonita, tá verde, mas é uma paisagem que eu costumo dizer que ela não confere se você for experimentar a água do rio, por exemplo. Então ela até desperta na gente uma crítica sobre o cuidado com a aparência das coisas. Você pode olhar uma paisagem, pensar que ela está bonita, mas você vai ver que ela está sendo depredada, não é?
Chamo ele de livrinho azul. Esse livrinho veio em um momento da minha vida depois de já ter transitado por vários lugares e de ter me engajado, por um bom tempo, na organização das nossas comunidades, dos nossos povos da floresta. Eu acredito que algumas pessoas sabem da minha ativa participação no movimento indígena na década de 1980 e 90, dessas lutas que configuraram essa realidade que os povos indígenas vivem no Brasil hoje. Eu não tinha mais uma perspectiva com relação a essa coisa dos movimentos sociais, do engajamento no sentido ativo da política social, porque estava muito crítico em relação a toda essa confusão que nós estávamos vivendo quando eu fiz essas conferên-cias que viraram o livrinho. Juntas, essas ideias provocaram mesmo uma abertura de picada, abriram uma trilha que me possibilitou ir além daquele lugar, com relação a nossa perspectiva sobre a floresta, o meio ambiente, os nossos rios, a política em relação às águas, a ideia dos Comitês das Bacias Hidrográficas (de que eu fui membro), do Conama(2)(de que fui membro quando ele tinha sentido, [porque] foi totalmente descaracterizado). Então todos aqueles lugares sociais que a gente podia ir como cidadãos, representando lugares diferentes da nossa realidade, da vida brasileira: eu senti que eles estavam sendo totalmente abduzidos. Então eu falei “o que eu vou ficar fazendo nesse lugar?” Ficar aqui na aldeia, não só na quarentena, mas ficar aqui na aldeia no resguardo longo, é muito bom, porque me permite refletir sobre o que já fizemos e não ficar repetindo a mesma coisa. Sobre o livrinho, eu digo [que] aquele livro já foi, eu estou além das proposições daquele livro e das provocações que eu fiz com relação à ideia de natureza e humanidade. A ideia de uma certa humanidade que recobre o planeta todo, a ideia da super humanidade que são aqueles que ficaram de fora do clube da humanidade. Eu não imaginava que nós íamos ser arrochados pela realidade para ir além desse lugar. Com essa situação agora, o mundo inteiro está sendo convocado a parar. Se o mundo inteiro tá sendo chamado a parar, alguém pode ter também tempo para pensar bem se aquela correria que a gente estava fazendo até outro dia, se ela era consciente, se nós estávamos indo numa direção consciente ou se a gente só estava fazendo a corrida da boiada.
Eu fiquei muito impressionado com o fato de a gente ter milhões de pessoas fazendo esse resguardo em um apartamento. E aí teve um corte forte para imaginar que abismo [é] alguém ter que passar esse tempo preso no apartamento; numa casa ainda vá lá, num apartamento vira quase uma prisão domiciliar no sentido que a coisa tem, não é? E que privilégio para aquelas pessoas que não vivem nesses redutos e que podem, por exemplo, estar no campo, na zona rural, afastados dessas aglomerações e poder, por exemplo, produzir seu alimento, seu remédio, suas medicinas, suas realidades locais, recorrer a um repertório de saberes e de práticas que alargam o sentido da vida. Daquilo que no livrinho chamei de “ampliar as subjetividades”, está sendo uma rica oportunidade de exercício agora: a pessoa não está numa rotina de ter que levantar para ir para escola, nem ir para o trabalho, nenhuma outra rotina muito limitadora, [então] pode fazer um pouco de experiência extraordinária. Se alguém está em um lugar no qual pode mexer na terra, que vá mexer na terra, vá fazer alguma coisa no seu quintal! Se você está no sítio, faça no sítio.
Eu não entendo porque alguém que está em um sítio tem que ficar sozinho dentro de casa; ele não precisa, ele pode ficar junto com toda aquela multidão de maritacas e de sapos, e de bichinhos, e outros pássaros, e tudo que está na terra – as minhocas, as formigas – alertando a ele que o único sujeito que foi mandado parar foi o humano. De toda a constelação de outros seres que estão compartilhando a vida na Terra com a gente, só o humano é que é o vetor dessa ameaça, do vírus. Os outros seres, não.
Mais uma vez nós estamos tendo a oportunidade de aprender ao invés de ficar só numa expectativa de que alguém nos indique alguma ação para adiar o fim do mundo. Nós mesmos vamos poder, no dia a dia, pensar “se eu fizer isso aqui, vai ficar melhor no lugar em que eu vivo e pode ficar melhor em outros lugares também”. Nós estamos sendo
O “S” é muito bem-vindo no [termo] “Amazônias”, e eu gostei porque dá a oportunidade para quem não viveu e não vive a experiência cotidiana de algumas dessas regiões, dessas Amazônias, seja na Amazônia brasileira, na Colômbia, na Bolívia, no Peru. Se não fosse aquelas linhas que marcam as fronteiras entre os nossos países, ela continuaria sendo no plural “Amazônias”, porque é tão vasta que chega a habitar um lugar imaginário, de gente no mundo inteiro, [que] anseia por um lugar “Amazônias” e, essas “Amazônias” são uma imagem antes de ser uma realidade. Tem muita gente que lida com as diferentes materialidades dessas “Amazônias”. Tem gente que pensa como um lugar que historicamente foi o Eldorado, que era o lugar de saquear e buscar riqueza, desde a descida dos espanhóis lá de cima pelo rio Negro atravessando o Amazonas, até os que entraram aqui pelo sul. Todos bateram essa trilha como aventureiros, viajantes, caçadores, coletores de todo tipo, exploradores, e os povos antigos que viveram nessas diferentes “Amazônias” tem outras Amazônias no pensamento, no coração e nas suas memórias. No tempo que nós vivemos, no século 21, a multiplicidade de Amazônias que existem e as perspectivas presentes que o governo do Estado, os ministérios têm dessas Amazônias, ou que um empresário do Sul tem desse “Amazônias”: se cada um deles fosse desenhar o que estão pensando, ia ser uma infinidade de Amazônias, porque são os lugares onde cada um quer realizar o seu projeto, digamos assim. Aí nós vamos chegar no campo das pessoas que nos últimos, 20, 30 anos, se engajaram nas políticas públicas, na política dos movimentos sociais não-governamentais para promover a existência desses lugares chamados Amazônias. Os movimentos sociais, os engajados em diferentes campos do que a gente pode chamar de lutas pela Amazônia – desde a proteção à vida, o direito à vida das pessoas que sempre estiveram lá, até a vigilância e fiscalização da invasão desses lugares que se constituem biomas, que se constituem em complexas biodiversidades que diferentes atores querem de alguma maneira se acercar deles — uns para conservar como bem comum da humanidade, outros para controlar, como essa turma agora que tem um grupo de trabalho dirigido pelo [vice-presidente] general Mourão, um comitê de crise para Amazônia. De vez em quando, acontece um evento desses. Na década de 1980, no tempo do governo do Sarney: ele também criou os pacotes. Tinha um negócio da Calha Norte. Depois passou um tempo na década de 1990, tinha uma outra coisa, que era a modernização do sistema de vigilância. Nós vamos achar que o mais bacana deles é aquele que quer conservar a floresta, aquele que quer proteger os modos de vida, apoiar e promover os modos de vida dos povos que vivem na floresta, mas até nessa parte seria bom a gente olhar com um olhar crítico. Tem os inimigos e tem os amigos, tem os caras que querem comer a Amazônia e tem os que querem proteger a Amazônia: se a gente ficar fazendo uma simplificação dessas, nós não vamos ser nem capazes de fazer uma ação que seja honesta com quem está vivendo dentro dessas Amazônias e que precisa que ela continue tendo floresta, rios, e que as pessoas possam ter acesso a alguma segurança nos lugares onde vivem. Aí se abrir tantas linhas para gente observar, a gente iria se perguntar, por exemplo: por que nós todos nos batemos na década de 1990 para que existisse uma infraestrutura voltada para a Amazônia com a ideia de desenvolvimento, mesmo que acrescentado do adjetivo “sustentável”? No fundo o que estava no motor da ideia era o desenvolvimento. E aquela época já tinha gente dizendo: “Por que, ao invés de desenvolvimento, a gente não busca ter envolvimento?”
Ainda sobre a ideia de fronteiras e Amazônia, tanto uma pessoa que nasceu em Parintins quanto uma que nasceu em Berlim podem se achar relacionadas com a ideia das Amazônias com a mesma intensidade. Ou aquela menina fantástica que mobilizou o mundo alguns meses atrás, a Greta [Thunberg). A Greta tem a mesma intensidade de entusiasmo e envolvimento com uma ideia de Amazônia do que uma menina que nasceu em Ji-Paraná ou Oriximiná. Não é porque ela nasceu lá na Europa que você vai dizer para ela que “você não tem nada para dizer sobre esse lugar”, porque esse lugar para ela tem outras representações. Quando um chefe de Estado na Europa vira e fala “a Amazônia é isso, é aquilo”, e alguém fica nervoso com ele e diz “esse gringo não tem que falar nada sobre a Amazônia”, é porque não está sendo capaz de entender de onde é que ele está falando. Aquele gringo está falando de algum lugar do mundo; a Amazônia tem um sentido para ele, e isso deveria ampliar a nossa percepção do que são as Amazônias. Elas não são um lugar, elas se constituem numa constelação de lugares de representação mítica, cultural, econômica e política.
Eu já comentei que uma das coisas mais estranhas é que as cidades brasileiras nos trópicos, não só no Brasil, as cidades coloniais nasceram com as privadas viradas para os rios e a porta da sala para uma viela. Pode olhar todas as nossas cidades, inclusive Ouro Preto e Mariana. Parece que a gente foi para esses lugares para cagar nos rios. Pegue as plantas de todas as nossas cidades no Google e olhe: para onde é que fica virado o esgoto? E para não dizer que eu não falei das flores, antes da Covid-19, o Rio de Janeiro estava abas-tecendo as torneiras das pessoas com água de esgoto. Eu acho que é aquele sentido de que tudo o que sobe, desce. Você jogou alguma coisa para cima, uma hora vai cair na sua cabeça. Jogaram esgoto nos rios, o rio está devolvendo esgoto nas torneiras. E numa cidade como o Rio de Janeiro! Não é uma vilinha pobre, que não tem como fazer uma estação de tratamento de água; é o Rio de Janeiro, que nos últimos anos deve ter gastado bilhões com a recuperação da Baía de Guanabara. É espetacular, dava pra filtrar com dinheiro toda a água daquele sistema lá. São tubos de dinheiro.
O mundo hoje é governado por CEOs, gerentes. As corporações escolhem gerentes e botam os caras para governar e, quando eles não estão correspondendo, tiram ele numa boa. Eu acho uma ingenuidade enorme as pessoas continuarem engajadas em partidos políticos e fazerem campanha para partido, a gente deveria ter superado isso. Assim como a ideia da economia movida por uma perspectiva de progresso e desenvolvi-mento é uma ideia vencida, velha e vencida, a gente deveria superar também a ideia da representação política nos termos em que ela foi feita até agora — porque isso é colonialismo. A gente deveria pensar em envolvimento! O envolvimento das pessoas, das comunidades com os lugares onde vivem, e a partir desse envolvimento produzir novas visões, novas realidades sobre a vida social. Agora que nós estamos vivendo um isolamento, a gente deveria pensar como é que a gente faz o religamento dessas relações que não sejam [por meio dos] sistemas falidos e declaradamente corruptos.
2 Conselho Nacional do Meio Ambiente.