Indígenas organizam fiscalizações autônomas e tentam pressionar poder público para reverter invasão; suas terras estão entre as mais devastadas do país
Por Pedro Ribeiro Nogueira (Publicada em Agosto de 2021)
“Sou inimigo de garimpeiro e contra o garimpo na nossa terra. Eu quero a terra livre, [viver] em paz, [ter] uma vida sossegada.”, disse Faustino Kabá, em vídeo gravado durante a Assembleia da Resistência. O encontro reuniu mais de 200 Mundurukus de 47 aldeias, em dezembro de 2020 na aldeia Waro Apompu, no rio Cururu, região do Alto Tapajós, na Terra Indígena Munduruku e Sai Cinza para encarar o problema da explosão do garimpo na região e organizar a defesa de seu território.
Da Assembleia de Resistência, além de uma carta com posicionamento e reivindicações, surgiram uma série de expedições autônomas de fiscalização dos Munduruku contra a mineração clandestina. Capitaneadas por 7 associações do povo e encarando a negligência dos órgãos estatais, as fiscalizações levaram homens, mulheres e crianças para tentar conter o avanço da destruição de seus territórios.
Em março, dezenas de Munduruku foram impedir balsas que levavam tratores para o igarapé Baunilha, porta de entrada do Cururu, a “última fronteira da exploração mineral na TI Munduruku – a área próxima à foz do Rio Cururu”, segundo a nota técnica “O Cerco do Ouro – Garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, escrito pelas pesquisadoras Ailén Vega, Laize S. C. Silva, Luísa Molina e Rosamaria S. P. Loures, com base em comunicados, entrevistas, estudos, vivências e documentos das organizações indígenas. Enquanto agiam no território para frear fisicamente a destruição, também notificaram os órgãos responsáveis e pediram que as forças de segurança federais impedissem a continuidade da intrusão dos garimpeiros.
Fiscalização autônoma do território (Igarapé Mapari, TI Munduruku, 2018) > fotos retiradas do relatório
“Vamos continuar independentes na proteção de nosso território. Mesmo se não tivermos resposta, vamos continuar guerreiras, guerreiros, caciques e pajés. Seguimos nossa luta com ajuda dos nossos espíritos que nos guiam e dos nossos pajés, nossas organizações do povo Munduruku que estão juntas na defesa do território. Defendemos nosso território porque os nossos espíritos são relacionados com a terra, rio, floresta, animais e peixes, além disso existe uma grande farmácia aberta para os tratamentos de diversas doenças. Terra protegida também é o Grande professor para aprender tudo que tem nela”, disseram, em carta.
Os Munduruku, que se autodenominam Wuy Jugu (“nós somos pessoas”) ressaltam em suas falas, ações e comunicados que é assim que se resolvem e que funcionam enquanto povo: decidindo e agindo coletivamente. Não tem uma organização que responda por todos, nem vereador, nem liderança.
O Protocolo de Consulta, documento elaborado coletivamente pelo povo em 2014, deixa bem claro: antes de qualquer aventura dos de fora no território, “devem ser consultados os sábios antigos, os pajés, os senhores que sabem contar história, que sabem medicinas tradicionais, raiz, folha, aqueles senhores que sabem os lugares sagrados. Os caciques (capitães), guerreiros, guerreiras e as lideranças também devem ser consultados”.
Resistência ancestral
“Os pajés nos ensinaram que os espíritos precisam ser consultados antes da retiradas deles sobre qual o melhor lugar para ir”, reforça Alessandra Korap, da Associação Wakoborũn, formada por mulheres Munduruku, ao lembrar da ação em 2019 que resgatou doze urnas funerárias, retiradas à revelia dos Munduruku, de lugares sagrados durante a construção das barragens hidrelétricas de São Manoel e Teles Pires, em 2010. Cerca de 70 indígenas ocuparam o Museu de História Natural em Alta Floresta, no Mato Grosso.
O blog Ativismos conversou com Alessandra Korap Munduruku, quando ela estava voltando do Levante Pela Terra, em Brasília, uma mobilização que juntou mais de mil indígenas de 45 povos ao longo de junho em um acampamento para lutar contra o PL 490, que inviabiliza novas demarcações e permite mineração em Terras Indígenas, e pressionar o Supremo Tribunal Federal que irá decidir sobre o destino da TI Xokleng, em Santa Catarina, e sobre a tese ruralista do Marco Temporal, que também visa impedir a criação de novas TIs.
Para chegar em Brasília, muitos dos Munduruku tiveram que enfrentar obstáculos poderosos: capangas de garimpeiros furaram os pneus e ameaçaram o motorista que os levaria até a capital. Chegando no Levante pela Terra, foram reprimidos ao tentar uma reunião com a Funai para tratar das invasões em seus territórios.
“Quem defende de fato o meio ambiente somos nós, os indígenas, que enfrentam de corpo e alma os ataques de garimpeiros e nos preocupamos com a floresta. São as áreas mais preservadas e não é à toa”, diz Korap, ressaltando a presença cada vez maior das mulheres na luta. “A gente bate de frente com o garimpo, apesar das ameaças e perseguições cada vez maiores. A situação piorou muito recentemente, com esse governo federal anti-indígena. No começo eu achava que ele não gostava só da gente. Mas, a gente percebeu que ele não gosta de ninguém”, diz.
Se os desafios e ameaças são grandes, as frentes de luta são muitas: educação, comunicação, escrever cartas, protestar, fiscalizar e bater de frente e, também, gerar renda. Recentemente, as mulheres Munduruku abriram uma loja de artesanato em Itaituba, conforme Korap anunciou em seu Twitter.
Alessandra também foi uma das responsáveis por pressionar para que a Fiocruz fizesse uma pesquisa na região para avaliar a contaminação do mercúrio vindo do garimpo. O metal pesado, uma vez na cadeia alimentar, causa uma série de doenças na população e afeta o modo de vida e a capacidade de auto-sustento dos Munduruku. O resultado do levantamento é assustador: 100% dos Munduruku apresentam níveis alarmantes de contaminação de mercúrio.
Os Munduruku do Médio Tapajós começaram também a realizar, em 2014, a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu. Expedições de indígenas, com auxílio de mapas, GPS e placas demarcando os limites da Terra Indígena, pressionaram os órgãos federais a acelerarem a publicação do relatório da Funai que já estava pronto desde 2013. As mobilizações foram importantes no processo que culminou na suspensão dos planos de construção do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, que alagaria as terras indígenas em processo de regularização.
As expedições também atuam na expulsão de madeireiros e garimpeiros que cada vez mais invadem o território, derrubam suas matas e poluem os rios com mercúrio. “Os invasores estão matando a nossa vida e derramando o sangue da nossa floresta. A nossa vida está em perigo. Mas por isso, nós vamos continuar mostrando a nossa resistência e a nossa autonomia. Somos capazes de cuidar e proteger o nosso território para nossos filhos e as futuras gerações. Ninguém vai fazer medo e ninguém vai impedir porque nós mandamos na nossa casa que é nosso território”, disseram em carta os Munduruku após a quinta etapa de demarcação das TI, em 2019.
Apesar dos esforços, até hoje as TIs Sawre Muybu e Sawre Bapin ainda aguardam sua demarcação definitiva.
Rastro de destruição
No ano de 2020, as TIs Munduruku e Sai Cinza perderam mais de 2 mil hectares de floresta. Em 2019, foram 1835. A maior parte delas, para as atividades de mineração clandestina.
Falar em garimpo ou mineração clandestina muitas vezes não ajuda a dimensionar o tamanho do “inimigo”. São empreendimentos milionários, apoiados por lobistas em Brasília, vereadores, deputados, senadores, governadores, ministros e até o presidente. As ondas de superexploração do recurso na Amazônia, por exemplo, respondem às flutuações no mercado internacional do ouro. Os lucros, evidentemente, não ficam com os trabalhadores ou até mesmo indígenas aliciados, muitas vezes em situação de trabalho escravo, que são as pernas e braços das “corridas do ouro”. O que fica, depois da miragem do progresso, é a destruição das florestas e a poluição dos rios com mercúrio.
Desde 1747, sabe-se que a região do Tapajós é rica em ouro, mas apenas desde o final dos anos 1950 que a região começou a ser explorada. Entre os anos 1970 e 90, apoiado pelo estado, aconteceu a explosão da mineração na região que hoje abriga as terras indígenas.
“As comunidades locais contam, em seus inúmeros registros de cartas e manifestos, que os garimpos ilegais nunca deixaram de causar prejuízos e problemas nas terras indígenas devido à exploração descontrolada e ao aumento vertiginoso de pariwat garimpeiros no território. Poluição do rio, falta de peixes, doenças, violência contra as mulheres, presença de armamentos, infecções sexualmente transmissíveis, drogas e álcool, desentendimentos e conflitos internos no território são os principais elementos apontados como danosos nessa situação”, diz a nota técnica.
No entanto, nos últimos anos essa presença se intensificou. Entre 2017 e 2019, houve um aumento de 239% da atividade garimpeira. Em 2020, as TIs Munduruku e Sai Cinza somaram 60% dos alertas de desmatamento em territórios indígenas.
A pressão sobre os territórios cresceu muito durante a pandemia, quando o preço do ouro subiu e o governo federal aproveitou para “passar a boiada”. O ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, inclusive visitou Jacareacanga (PA) e defendeu a atividade garimpeira. Na mesma época, a operação Pajé Brabo II, que tentava combater o garimpo, foi suspensa.
O governo federal também já usou aviões oficiais para levar Mundurukus aliciados pelo garimpo e empresários da mineração para Brasília para defender a atividade.
Ameaças além do ouro
A antropóloga, pesquisadora e ativista, Luisa Molina, afirma que a região do Tapajós e suas populações enfrentam um “mosaico de ameaças”. Segundo ela, a região é de grande importância logística para o agronegócio, enfrenta planos de hidrovias para transportes de grãos, portos que atropelam comunidades, construções de mega projetos, como hidrelétricas, o garimpo.
São os “projetos de morte”, como denominam os indígenas, as ameaças à vida dos mais de 15 mil Mundurukus distribuídos entre o Alto e Médio cursos do Tapajós e do Teles Pires, que também vivem nos municípios de Itaituba, Novo Trairão e Jacareacanga, no Sudoeste do Pará.
“Quando a gente fala da luta dos Munduruku a gente tem que levar todas essas frentes de resistência em consideração”, diz Molina.
Os Munduruku, segundo a história de criação do mundo contada por eles, foram incumbidos pelo demiurgo Karosakaybú, de proteger o rio Tapajós e suas florestas. “Eles têm que cuidar de onde moram os ancestrais, dos animais, dos rios. Em cada um desses lugares vivem os espíritos, todas as coisas são vivas, perigosas e demandam cuidado. E a luta é para garantir isso: a vida da terra para todos eles, uma perspectiva de futuro autodeterminado”, afirma a antropóloga.
Para saber mais e apoiar:
“A primeira coisa é escutá-los”, diz Molina, citando não apenas os perfis nas redes sociais de Mundurukus, como Alessandra Korap, mas também os blogs e sites das associações, como o do movimento Ipereg Ayu, que também mantém um canal no Youtube. “Precisamos multiplicar o acesso às vezes, às cartas, os manifestos e notícias que eles mesmo produzem”.
Ela também destaca a importância de participar localmente de protestos contra os “projetos de morte”, como o PL 490, que poderá ser aprovado no Câmara dos Deputados, assim como fazendo parte das mobilizações online promovidas pelas organizações indígenas, como a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). E denunciar ataques contra organizações, territórios e lideranças dos povos, como quando a sede da Wakoborũn foi depredada.
“Quando estivermos na rua, temos que lembrar de defender os direitos indígenas. Eles dizem respeito a todos nós. Se o garimpo aumenta na terra indígena, todos que dependem do rio são prejudicados. Se há desmatamento, as tragédias climáticas se aceleram e todos sentem. Fora que o cerne do Bolsonarismo está ligado ao agronegócio e as disputas fundiárias. Quem se diz antifascista, não pode se afastar da pauta indígena e ambiental. Precisamos desse investimento coletivo para combater essas ameaças”, finaliza Molina.
Mais informações e leituras:
Governo Karodaybi: o movimento Ipereğ Ayũ e a resistência Munduruku
‘As mulheres Munduruku estão envenenadas por mercúrio e temos provas’, denuncia líder indígena