Por Luciana Ferreira e Ivan Rubens Dário Jr
Se você se animar nesta leitura, faça-a como viajante. Não estamos falando daquele/a viajante que compra um pacote de turismo. Estamos nos referindo a um/a viajante movido/a por uma curiosidade, por um desejo de encontrar pessoas, lugares, culturas, movido/a por um desejo de encontros e, neste movimento, procura, busca, encontra-se mesmo que aos poucos, fragmentos, pedaços, porções. Movido/a, enfim, por este desejo de encontros.
É neste movimento que estamos pensando antes com o corpo que com a cabeça. Por isso, atentos/as ao mundo que nos rodeia, nos convoca o olhar e escutar as pessoas, pois o mundo é povoado de pessoas que não são exatamente assim como você e eu. O mundo é povoado por pessoas outras. Neste movimento de vida que passa por ver, ouvir, encontrar, agir, estudar, sentir e pensar, escrevemos este texto.
Vivemos uma situação de dores, perdas, tantas dificuldades que as palavras faltam, fogem, nos escapam. Este momento é complexo:
1) o pior presidente de todos os tempos governa o Brasil;
2) um vírus letal está no mundo.
Coincidência desastrosa que arrasta brasileiros e brasileiras para a morte. A cada dia os números de infecções e mortes aumenta. Publicamos este texto no final de abril de 2021. Completamos um ano de isolamento e vivemos a chamada segunda onda da pandemia. Estranho… saímos da primeira?
Em condições normais os meses de abril colocam em muitas escolas todo um trabalho de preparação para o feriado de Páscoa. Crianças alvoroçadas com ovos, trabalhos com este tema, a expectativa para mais um feriado e o merecido descanso com o feriado. Mas neste ano foi diferente: o sentido de ressurreição, as cerimônias – missas, cultos, almoço pascal com ares de encontro festivo, a partilha dos ovos, grande parte disso foi substituído pelo isolamento social. “Fique em Casa” deu o tom deste final da quaresma. Toda a lógica da ressurreição, do renascimento, da nova vida possível numa mesma vida foi substituída pelo isolamento social. Cuidar de si e cuidar do outro nunca foi tão necessário para seguirmos (enquanto humanos) no mundo e com o mundo.
Entramos no segundo ano de isolamento, encontros em espaços fechados estão proibidos. Mas aula é encontro!!!
Que tempo é esse?
Como está isso?
Como lidar com essa contradição?
A educação escolar está ameaçada de paralisia?
Como professores, estudantes, famílias estão lidando com esta situação?
Fechadas/os desde o final de fevereiro/2020, encontramos Brasil afora muitas realidades, a pandemia evidencia a cada dia a desigualdade social, econômica. E agora está ainda mais evidente a desigualdade digital. É constitutivo da escola acolher as diferenças mas, sem encontrar as diferenças, sem vê-las, sem senti-las, resta ignorá-las? Estude quem conseguir é a revelação de um lamentável salve-se quem puder. São muitas as revelações. Quem está atento viu (e vê) de um tudo: aulas por canais de televisão; Aulas pela internet via plataformas pagas, não pagas; Aulas por materiais impressos distribuídos a cada estudante; Aulas dadas pelos pais; Aulas dadas pelos irmãos mais velhos; Aulas mediatizadas pelas telas, pelo celular; Falta de Aulas por falta de telas; Abandono de aulas, algo que aumentou muito.
Um estudo publicado em janeiro de 2021 pela Unicef aponta que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020 no Brasil. Outros 4.125.429 afirmaram frequentar a escola sem acessar atividades escolares. Até mesmo famílias que conseguem manter uma rotina de estudos com as crianças e possuem internet em casa estão enfrentando dificuldades em manter esse modelo de estudos onde a interação se dá pelas telas. E como nosso interesse com este texto é pensar a aula, perguntamos:
Isso é aula?
O que é uma aula?
Na tentativa de encontrar uma resposta mesmo que provisória, recorremos a algumas pessoas que, cada um à sua maneira, pensaram a respeito disso e desta maneira nos ajudarão empurrando nosso pensamento a pensar mais. O abecedário do filósofo Gilles Deleuze começa com a palavra AULA. Diz o filósofo:
Para mim uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula cada grupo ou estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos… As pessoas tem que esperar… Obviamente tem alguém meio adormecido, por que ele acorda misteriosamente no momento em que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém, o assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção, é tanto emoção quanto inteligência, sem emoção não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento do centro de interesse que pulam de um lado para o outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura.
A professora Karen Rechia e o professor Jorge Larrosa, ela brasileira e ele catalão, também pensam a respeito de AULA. Retiramos o seguinte fragmento de texto do livro P de Professor:
a aula constitui o aluno em aluno (e idealmente em estudante) e o professor em professor. Por isso seu limite é (a porta) tão importante. É ao entrar na sala de aula que o aluno se converte em aluno e o professor se converte em professor. O fato de que a aula tenha algo de solene (como corresponde ao espaço público) é muito importante para isso. Sinto esta transformação, já que ao entrar na sala de aula ganho certa gravidade, algo que exige de mim atenção, uma maneira de falar com cuidado (…) A sala de aula é também uma cápsula atencional muito interessante distinta de qualquer outra (…) eu acredito que na sala de aula não se pode estar “como em casa” (…) é preciso fazer com que a sala de aula seja sentida como um espaço separado, distinto, com suas próprias normas e rituais, um espaço exigente.
Vimos acima dois fragmentos de pensamentos a respeito da aula no campo da filosofia e da educação. Veremos a seguir dois fragmentos de aula nas artes. Encontramos no poema denominado Aprendimentos um fragmento do pensamento do poeta mato-grossense Manoel de Barros. Diz o poeta das coisas simples:
(…) Estudara nos livros demais.
Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar
Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um pequeno
grilo podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles, esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova
(…) e que a beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela.
O que mais sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.
Manoel de Barros
Engana-se quem acredita que São Paulo tenha sido algum dia o túmulo do samba. Nada disso. Geraldo Filme é um sambista popular nascido em São João da Boa Vista, interior do estado de São Paulo, fundador da escola de samba paulistana Vai-Vai. Talvez você não o conheça pelo nome mas o conheça assim:
Quem nunca viu o samba amanhecer / Vai no Bixiga pra ver / Vai no Bixiga pra ver (…)
Na canção intitulada Garoto de Pobre, seu Geraldo canta assim:
Garoto de pobre / Só pode estudar / Em escola de samba / Ou ficar pelas ruas / Jogado ao léu / Implorando a bondade dos homens / Aguardando a justiça do céu / Seu lápis é sua baqueta / Que bate o seu tamborim / Ninguém olha este coitado / Senhor qual será o seu fim?
Na escola de samba da vila / é onde ele vai estudar / Ensaia o ano inteiro / Tem provas no carnaval / Ele desce dos morros / Ele vem das vilas / E chega a cidade / Alegra os turistas / Recebe os aplausos da sociedade / Se criar novos passos / Criar nova ginga / Ou compor um samba / Está aprovado, recebe o garoto / O diploma de bamba
Na escola de samba / Aprende a rir, / Aprende a sofrer, / Aprende a chorar / Mas não sabe ler / Doutor qual o seu destino será?
Depois de encontrar estes pensamentos acerca de AULA e ESCOLA, depois de ler as linhas acima, vamos tecer juntos essas linhas. Gilles Deleuze apresenta que aula é colocar a matéria pensamento em movimento. Larrosa e Karen colocam a atenção no sentido constitutivo de ser estudante e ser professor. Manoel de Barros mostra uma aula com o mundo, com a natureza, em contato e contágio. Geraldo Filme coloca a questão: quem pode estudar? Para ele, garoto de pobre só pode estudar em escola de samba, criar passos e gingas para enfrentar as injustiças que não foram criadas por ele, por um modo de vida que não garante as mesmas oportunidades para todos e todas. Quando o baque é muito pesado, sobreviver primeiro. Apenas um corpo vivo pode aprender a ler, aprender a escrever e etc, etc, etc.
E mesmo diante da filosofia, da educação, da poesia e do samba, apesar desses encontros todos, do pensamento, esses encontros agora estão nas telas. É bem verdade que estamos nos acostumando cada vez mais com as telas. As relações humanas estão cada vez mais mediadas, midiatizadas por telas. As telas invadiram nossas vidas já há algum tempo. As casas possuem uma dezena de aparelhos que nos fazem atravessar o mundo em um clique. TV’s, computadores, celulares, estão nos cômodos como se fossem pessoas. Não raro, assumem o lugar das pessoas: tocam, falam, fazem barulho, emitem ruídos, se fazem presentes, preenchem os espaços, limpam o chão. Fazem inclusive uma coisa que algumas pessoas não fazem: escutar. Isso mesmo, esses aparelhos nos escutam, registram e dão retorno. Você já reparou nos anúncios e nas propagandas que aparecem nas suas redes sociais ou seu email gratuito?
Mas se antes eles conviviam com a gente, com o isolamento social tais aparelhos ganharam centralidade: são fonte de informação, companhia, entretenimento, espaço de festa, estudo, música, exercícios…. enfim, tudo! (ou quase tudo)
Aqui estamos situados: a presença destes aparelhos nas casas e nas vidas. A presença desses aparelhos colocados como parentes e convivendo intimamente conosco. A privação dos encontros como consequência do isolamento social. Mas os encontros são constitutivos do espaço escolar… Escola é lugar de encontro!!!
Se faz escola estando em casa? Se faz escola quando os encontros estão limitados às telas? Se faz escola pela internet? Que tipo de encontro é esse?
O que é uma aula?
1/4 de aula
Abril de 2020. Duas casas geminadas, uma grande família. Grande, agitada e barulhenta. Muito entra e sai de gente da casa, colegas, parentes… Tudo silenciado pela pandemia. A casa mudou junto com a mudança na vida, nos ritmos, todo um movimento cessou. Mas naquela manhã algo diferente me atravessou.
6h50, passos arrastam um chinelo. Sobe as escadas e entra lentamente no quarto. Abre a porta, embrulhada em uma coberta, touca na cabeça, caneca de café com leite e um pão nas mãos, despeja tudo isso sobre a mesa, livros e um estojo cheio. Como ela conseguiu carregar tudo isso? Diz: “bom dia” e liga um notebook. A abertura da tela fez entrar no quarto meia dúzia de vozes, meninos reclamando e meninas agitando, falas de insatisfação típicas dos 15 anos de idade: é muito cedo e faz muito frio. Entra também uma voz animada, meio gripada, adulta:
– Bom dia! Bom dia! Vâmo acordar, povo! Quem aí está a fim de dar um mergulho na piscina nesta manhã? Hein?! Muito frio? Então já que ninguém vai mergulhar vou fazer a chamada!
Mas que loucura é essa? Deve estar fazendo uns 5 graus nesta manhã e o cara pergunta quem quer mergulhar na piscina???
Chamada? Um computador quer fazer chamada? Como assim? Seria um sonho desses que acontecem na fronteira do sono e da vigília? Seria um pesadelo? Não adiantou mexer o corpo na cama, não adiantou cobrir a cabeça com o travesseiro…
Chamada??? Sim porque aula deve ser aula. Aula com ou sem presença, tem chamada. Descobri isso e comecei a pensar neste espaço-tempo demarcado dentro da aula, da escola, somente agora, essa coisa de ter seu nome dito em público, nome e sobrenome. No livro “Em defesa da Escola – uma questão pública”, Jan Masschelein e Maarten Simons (2013) comentam a chamada revela o sentido de anonimato da Escola. Na chamada você não é filho do fulano de tal, neto do beltrano, mesmo carregando um sobrenome. Na escola você é o João, a Maria, o Roberto e ponto. Quando o professor ou a professora chama seu nome você responde: presente! Piadas, apelidos, gracinhas costumam aparecer também. Será que a menina vai dizer PRESENTE sem estar presente?
Não foi preciso. Ela não disse nada, nem os seus colegas. O professor foi ditando os nomes presentes a partir das “janelas abertas” na tela dele. E quem disse que eles estavam presentes?
Nenhuma resposta do tipo:
– Presunto!
– Faltei!
– Tô aqui!
– Faltei mas tô levantando a mão!
Nada de brincadeira. Nenhuma voz exceto a do professor que ensinava inglês e falava sobre os ‘genitive cases’.
Fiquei ali, na cama de algum modo participando da aula, sim porque para participar era preciso apenas estar ali com o computador aberto. Câmera fechada. Microfone fechado. A adolescente ali sentada parecia um corpo sem nada, dedicado ao tédio da aula mediada pelo computador.
Levantei, dei um beijo nela e perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”
E ela: “Tô achando ótimo! Assim não preciso ver a cara desses moleques!”
Para ela o estudo neste momento fica melhor se separado da convivência. Bom, se Gilles Deleuze estiver correto, esse adormecimento do corpo durante uma aula é parte da aula. Espera-se que o conceito despertador ative o corpo e coloque em movimento a matéria pensamento.
Seria essa uma aula?
2/4 de aula
Da cozinha escutei outras vozes. Pensei: Ah, tem mais alguém fazendo aula. Segui os sons, cheguei ao quarto de outra. Bati na porta, abri devagarinho… achei sinceramente que a encontraria deitada na cama, com computador aberto, meio dormindo, meio acordada, livros jogados, cobertas na cabeça. Para nossa surpresa a mais nova estava sentada à mesa, computador e livros abertos. Olhava firmemente para a tela enquanto encostava a sola do pé direito na nuca. A voz que saia da tela era feminina, escuto a palavra “Revolução”.
Ela desvia o olhar da tela, me olha, e sorri! Solta a perna, estica os braços pedindo um abraço. Vou até ela mais curiosa do que saudosa. Quem estaria ali falando e prendendo a atenção da menina de 12 anos daquela maneira? Uma figura com um gorro verde de tricô, óculos, muito jovem. Livros ao fundo. Falava empolgada sobre a diferença de “Revolta e Revolução”. A pequena diz: “esta é minha professora de História, ela é muito linda né?”
Fiquei ali observando… Não parecia exatamente uma professora. Seria o cenário, cheio de livros, um quadro pintado a spray ao fundo? Seria a desenvoltura dela ao falar para a câmera? A mais nova estava envolvida na aula, dando um jeito de manter o corpo ativo, ela que é puro corpo. Me senti alegre porque se ela estivesse na sala de aula da escola, naquele belo prédio antigo abriga uma escola centenária, lhe seria negado o movimento do corpo, pés nas orelhas, alongamentos necessários para quem pratica ginástica artística. Pode ser até que ela pense mais fortemente se mexendo assim! Pode ser…
Perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”
E ela: “Não gosto nem assim, nem do outro jeito, mas aqui do quarto eu posso botar o pé onde eu quiser!”
Suspeitas confirmadas. Jorge Larrosa fala do sentido originário da Escola, seu sentido grego de ‘Scholé’ na perspectiva do ‘tempo livre’. Tempo livre para o estudo, para se afastar do mundo e dedicar-se a compreendê-lo, tempo livre para agir no mundo. Na citação acima, Larrosa e Karen Rechia falam do espaço pedagógico e tempo pedagógico, ambos constituintes da escola e fundamentais para o estudo sobretudo durante a vida escolar. Assim, aula é um espaço tempo onde se estabelecem a figura do professor e a figura do aluno. As carteiras, a sala, a mesa do professor, o quadro, tudo isso é extremamente importante na realização de uma aula, importantes para que a arte de estudar, a arte de observar o mundo e pensa-lo, aconteça.
Então, seria essa uma aula?
Saio do segundo quarto e fecho a porta.
3/4 de aula
Ouço vozes, um bocado de vozes, vozes de criança… Sobressai uma voz mais forte, adulta. Bato e abro a porta devagar. Ela está sentada de costas para a porta, atenta à tela. A tela contém mais de 20 cabecinhas frenéticas. Não acredito no que vejo. Chego mais perto. É isso mesmo: ela está professora. Não são mais as meninas, agora estou observando uma mulher se fazendo professora. Ela olha para todas as carinhas na tela, ela fala com todo mundo ao mesmo tempo, fecha microfones de alguns, abre de outros, explica, chama a atenção para si, sorri, vibra, mostra uma dobradura, diz a página. Cansei só de olhar.
Ela não consegue nem me ver ali ao vivo, no quarto dela. E eu também nem consegui perceber que o companheiro estava ali dormindo na cama ao lado. Pensei: não deve ser uma manhã tranquila para ela.
Se uma me mostra a liberação do tédio e a outra me apresenta a liberação do corpo, se fazendo professora a terceira mostra atenção total aos mais de 20 rostinhos na tela como se apenas com os olhos ela pudesse evitar que caiam, que chorem, como se pudesse garantir que entendam, que aprendam, que acompanhem e etc. Ela reivindica a presença, ela leva muito à sério o que está fazendo. Ela está comprometida com a aula.
Manoel de Barros o poeta das ‘Ignorãças’, das Invenções, nos disse em seus ‘Aprendimentos’ que é preciso pegar, cheirar, sentir, provar… que a beleza está exatamente em não saber para que isso serve.
O esforço dela, e de muitas professoras e professores neste momento, é grande. Mas será que por estas telas existe a experiência que sugere o poeta? As telas fazem a mediação, possibilitam um certo tipo de encontro com hora marcada, assim como na Escola, mas certamente não possibilitam a inteireza dos encontros limitando a experiência humana, limitando a produção dos sentidos, dos atravessamentos, dos afetos, das emoções.
Junho de 2020. As mesmas casas geminadas, a mesma grande família. Tudo igualmente silenciado pela mesma pandemia. A casa já mais adaptada às mudanças na vida impostas pelo isolamento social, adaptada aos novos ritmos, desacelerada. Na tela plana do notebook várias crianças vestidas tipicamente, quartos com bandeirinhas, carinhas pintadas e a professora sorrindo. Uma espécie de diversão se revelava nos gestos, figurinos e cenários. No quarto de aula fundamental II, indiferença. Já no quarto de aula ensino médio, cansaço (cochilou na segunda aula). Mas o surpreendente aconteceu na hora do intervalo. A adolescente voltou para a aula fantasiada e assim passou o dia. Além da festa junina online, queremos mesmo contar o que observamos durante a aula de física.
O jovem professor tocando viola caipira, música bonita, doce. Silêncio da tela plana. O quarto sala de aula foi tomado pelo dedilhado do professor. Depois de tocar e cantar lindamente, falou da canção, da escolha por aquela canção, falou do seu gosto por viola caipira e, sobretudo, falou do caipira. O professor criou uma imagem muito interessante do sujeito caipira em sua simplicidade. Caracterizou, em seu discurso, uma subjetividade caipira na valorização das coisas simples da vida, palavras dele. Falou da vida no campo… A estudante adolescente comentava: “que fofo! adoro essa aula”.
Dilatação dos corpos, propriedade físicas, contração e dilatação… o professor apresentou pinturas do prédio da escola, falou dos pintores e dos artistas, falou das imagens e mostrou detalhes. Piso, paredes, blocos de concreto, separações, espaços vagos a serem preenchidos pelos movimentos dos corpos. Corpos duros como concreto, se movimentam. Talvez seja mais fácil concluir que o ferro e o concreto se movimentam quando o professor movimenta o pensamento dos alunos e das alunas. Seria a cabeça mais dura que o concreto? seria o pensamento mais mole que o cimento?
Como será para elas este ano letivo?
Será que isso é aula?
E quem não tem computador, nem internet, quem não sabe usar essas coisas, tem aula?
E para que aula se ninguém sabe o que será do mundo?
O que será delas?
Neste tempo de tantas incertezas, neste tempo onde as molduras foram rompidas assim como um rio que arrebenta os barrancos onde corre a água, neste tempo de incertezas talvez seja mais interessante nos dedicarmos às perguntas.
Seriam aulas nos 3 quartos? haveria uma aula por inteiro?
Talvez sim, talvez não. Estamos pensando-as como tentativas de aula. Muitos/as alunos e alunas desejam estar com os seus e com as suas nessa maravilhosa viagem movida pela curiosidade, que aponta o olhar, que coloca a atenção nas maravilhas do mundo, que provoca a curiosidade e o desejo de vida e de mundo. Muitos/as crianças e adolescentes que abandonam a escola porque, diante da fome e das necessidades da casa, estudar não lhes era possível. “Garoto de Pobre” só pode estudar em Escola de Samba onde o lápis é a baqueta que bate o tamborim. Onde a criação de novos passos, a criação de novas gingas ou composição de novos samba, aprova e certifica: recebe o diploma de bamba!
Queremos pensar a Escola nesta perspectiva apresentada na sabedoria da cultura popular: escola é buscar um sentido, escola é encontrar um sentido, escola é significar o mundo, modifica-lo. Queremos pensar a Escola como tempo suspenso, quase que afastado de uma certa realidade, para pensar sobre ela. E, assim, com ideias renovadas, agir. Escola é experiência com força de arrasto. Assim, as tentativas de escola estão em muitos lugares, de muitos jeitos, nos esforços seja por chamada com ou sem vídeo, com jogos e músicas e criações para que o encontro (mesmo que à distância) aconteça.
Observar os 3/4 de aula foi estranho. Estranho para quem se produz educador na dureza da vida e, ao mesmo tempo, se faz estudante na pesquisa. Lutamos contra as tentativas golpistas de Educação à Distância como pregam algumas correntes. Mas após um ano trancados em casa, nos perguntamos como estaríamos sem estas tentativas de encontro mesmo que mediados por telas?
Se estamos cercados de genocidas, genocídios, vermes e vírus, que a escola seja um espaço de refúgio, um espaço para pensar, um espaço para resistirmos à negação do pensamento. Falamos de uma escola que se materializa em um espaço (hoje vazio de encontros) e num tempo, um tempo livre para que o pensamento possa se colocar à deriva em horizontes de criação. Talvez encontremos o quarto de aula para somar 4/4: a inteireza de uma aula. Afastados da realidade dura e por vezes insuportável, que este espaço-tempo não se deixe capturar neurótica produtividade excessiva imposta pelo mercado.
Façamos hackeamentos, nos distanciando, mesmo que por algumas míseras horas, para encontrar potência: viver é mais que sobreviver.
Façamos hackeamentos para pairar, para voar, para estar acima, para buscar o alto, para alcançar o céu antes que ele quede.
Luciana Ferreira é pedagoga e educadora popular, doutoranda em Educação pela UNESP-Rio Claro e integra o coletivo da Escola de Ativismo.
Ivan Rubens Dário Jr é geógrafo, educador e amigo da Escola de Ativismo. Autor de Pedagogias da Cidade: corpos e movimento.