Escola de Ativismo

Bença, Seu Antônio: a vida rio, território e sonho de um quilombola do Vão Grande

No quilombo de Vão Grande, o quilombola é exemplo de como lutar e se organizar, mas também de como sonhar e plantar rezando o que se colhe sorrindo.

Essa matéria faz parte do especial “Onde nasce o fogo: conhecimento ancestral e brigadas anti-incêndio” feita em parceria pela Escola de Ativismo e Fundo Casa. Confira mais matérias clicando aqui.

Ilustrações: Ana Clara Moscatelli

Em toda virada de 18 para 19 de março, a casa de Seu Antônio já amanhece em festa. É a celebração anual de São João, tradição que embala a história de sua família há décadas. “[Meu pai] adoeceu muito e minha avó prometeu para o santo que se ele curasse, faria festa. Ele melhorou. Ele se chamou José. E foi assim até ele morrer”, conta o quilombola de Vão Grande, no interior do Mato Grosso do Sul. Agora, essa tradição sagrada continua através de suas mãos. 

Para ele, é impossível dissociar a fé do seu cotidiano. “Nossa devoção é muito grande aqui, através de nós sermos quilombolas e de nós recebermos aquilo que nossos pais ensinaram pra nós”. Filho caçula, ele nasceu e cresceu no quilombo aprendendo os ritmos da terra e das águas. Vive da pesca artesanal e da agricultura de subsistência, modos de trabalho e vida compartilhados pela maioria dos quilombolas da região. 

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Seu orgulho é poder receber todo mundo em seus aposentos, fazendo festa – seja para os santos, seja para o rio. “A casa da cidade é tudo murada, e aqui é aberto, vendo a natureza, vendo as plantas, os matinho aí, os bambu, tudo verdinho… Como diz o ditado: aqui até onde não chove a mata é verde”, diz ele.

Figura querida e respeitada em Vão Grande, Seu Antônio é aquela pessoa que todos cumprimentam com afeto. “Bença, tio”, pedem todos que passam por ele. Isso foi observado por Silvio Munari, professor e integrante da Escola de Ativismo que desenvolve projetos com o quilombo desde 2019. “É uma pessoa que conhece todas as pessoas ali da comunidade e tem muito respeito pelas outras lideranças”.

Seu Antônio à beira do rio Jauquara

Foto: Escola de Ativismo

Orgulho ancestral

Assim como hoje ele é inspiração para muitos moradores, seu pai também já foi um dia – e segue sendo. “Meu pai não sabia ler, não sabia escrever, mas de experiência não tinha professor que derrubava ele”, relembra Seu Antônio sobre o sonho do seu genitor de ter uma escola no quilombo. O desejo se materializou na Escola Estadual José Mariano Bento, que hoje atende toda a região do Vão Grande e homenageia uma das mais importantes lideranças quilombolas da história local – seu pai, o José. 

Contudo, hoje outra ameaça mobiliza a comunidade: o governo estadual quer municipalizar a escola do quilombo, transferindo sua gestão para o município. Mas o povo de Vão Grande não arreda o pé. “Nós queremos nossa escola, nossa estrutura, tudo o que conquistamos dentro do nosso território. Queremos não apenas manter, mas engrandecer ainda mais o que temos”, defende Seu Antônio.

Encontro das águas

A vida de Seu Antônio flui, ou é, a água. Baixius, comunidade onde vive, fica à margem direita do rio Jauquara, junto de Camarinha e do Morro Redondo. “Nosso rio é a fonte da nossa vida. Foi aqui que nossos antepassados pararam e formaram nossas comunidades”, explica Seu Antônio sobre a importância das águas que garantem não só o trabalho, renda e alimentos do quilombo, mas também a espiritualidade e as memórias da ancestralidade. 

Em 2021, após anos de resistência, os quilombolas de Vão Grande conseguiram barrar na Justiça a construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) que ameaçava devastar o ecossistema local. “O que fizemos? Documentamos tudo, vídeos, fotos, organizamos um baixo-assinado. Graças a Deus, nosso apelo chegou ao Ministério Público e conseguimos proteger nosso território”, relembra Seu Antônio, figura essencial na mobilização.

Essa articulação, que começou em 2018, deu origem ao Comitê Popular do Rio Jauquara, iniciativa criada pelos moradores de Vão Grande e região para defenderem suas águas sagradas, criado com o apoio da Escola de Militância Pantaneira em parceria com a Sociedade Fé e Vida e Escola de Ativismo. Como marco, o dia 28 de abril foi escolhido primeiro como efeméride do protesto, depois como data para celebrar o aniversário do rio Jauquara. “Todo ano, graças a Deus, nós comemoramos com missa e festa o aniversário do nosso rio, porque todos nós sabemos que dependemos dessas águas para viver”, destaca Seu Antônio. 

Silvio, que acompanhou de perto esse processo, não esconde sua admiração. Se quando o professor conheceu o líder quilombola ele era tímido, “ver Seu Antônio se transformar nesse defensor público do rio, enfrentando autoridades com um protocolo de consulta debaixo do braço, foi inspirador”. 

Tal protocolo referenciado por Sílvio está baseado na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, que garante o direito à consulta prévia, livre e informada sobre qualquer projeto que afete territórios tradicionais. “Junto com a Escola de Ativismo, criamos esse documento para nossa segurança. Ele é nosso instrumento de luta”, explica Seu Antônio com a autoridade de quem conhece cada linha do acordo.

Mas nem só de luta vive seu Antônio. Para ele, a riqueza transcende o significado material. Cada reza a São João, cada peixe pescado no rio Jauquara, cada aula na escola José Mariano Bento, cada roça de mandioca: tudo é um ato de resistência, mas também de celebração da vida e uma afirmação de que um quilombo é mais do que um lugar no mapa. É um modo diferente de existir no mundo.

Por isso, sair do quilombo não é uma possibilidade. “Eu nunca tive vontade de sair do meu território, porque eu sei que aqui é uma terra quilombola”, reforça. “Nossa descendência aqui é muito feliz. Porque aqui o que nós pede, Deus dá. Essa é uma terra de vivência, é um lugar de vida. Todo mundo que vem aqui em nosso território, gosta. E nós recebemos. Aqui é um lugar muito sonhador, de paz e de saúde”, finaliza ele.

 

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