Pesquisar

Entender para combater: uma breve história da violência política de gênero contra as mulheres

Luka Franca analisa o histórico de violência política de gênero como um impeditivo para efetivação de uma democracia plena e quais os caminhos para sua superação

“Eu não vou sucumbir
Eu não vou sucumbir
Avisa na hora que tremer o chão
Amiga é agora
Segura a minha mão” (Elza Soares)

A violência política de gênero é uma faceta cruel da misoginia com a qual nós mulheres nos deparamos ao ocupar um espaço público. Espaços estes que são historicamente dominados por homens e por um jeito de fazer política. A violência é estrutural: no Brasil, o direito de votar e ser votada só foi reconhecido em 1932 e teve sua incorporação à Constituição em 1934 e ainda enfrenta inúmeros desafios para ser plenamente efetivado – não custa lembrar que o número de mulheres candidatas em 2024 é de 33% do total, mesmo representando 52% do eleitorado. Além disso, somente em 2024, até 29 de setembro, 130 mulheres foram alvo de violência política de gênero.

Mas o que é violência política de gênero? É quando mulheres são atacadas, ameaçadas, violentadas, caluniadas e constrangidas em seu fazer político por serem mulheres. A definição da Lei n. 14.192, no entanto, deixa de fora uma parcela significativa de ativistas que não se enquadram como candidatas ou eleitas, como veremos mais adiante.

Uma história de resistência

Marielle Franco foi vitimada pela violência política de gênero por conta de sua atenção. l Foto: Mídia Ninja/Fabio Possebon-Agência Brasil/Montagem

Os caminhos de lutas por direitos políticos das mulheres não se deram sem percalços, muito menos sem dura violência contra as que os reivindicavam ao longo da história. Temos como parte infeliz da nossa história no Brasil a Ditadura Empresarial-Militar e a violência estatal que se imprimiu nos chamados anos de chumbo, responsável por tratar com especial violência as mulheres que assumiram a luta contra o regime.  “O aviltamento da mulher que acalentava sonhos futuros de maternidade foi usado pelos torturadores com implacável vingança, questionando-lhe a fertilidade após sevícias e estupros.” Durante a ditadura também tivemos o emblemático assassinato de Margarida Alves em 1983 por latifundiários, o crime foi motivado pela ação política de uma das primeiras líderes sindicais do país na região do município de Alagoa Grande na Paraíba.

Já no Brasil da pós-redemocratização há dois grandes marcos da violência política de gênero. O primeiro resultou no golpe contra a primeira mulher presidente do país.  A campanha para o impeachment de Dilma Rousseff teve um material de marketing que demonstrava todo o motor da misoginia no país: um adesivo para colocar em cima do local de abastecimento de automóveis em que uma caricatura da ex-presidente aparecia de pernas abertas e o meio delas estava o bocal de abastecimento dos veículos, simulando assim um estupro. O segundo episódio é a execução da vereadora Marielle Franco, em 2018, que também vitimou o motorista Anderson Gomes e ao longo destes anos tem se demonstrado um crime político dos mais imbricados do Rio de Janeiro.

Dando um salto para o passado, nos deparamos na Revolução Francesa com um processo que impede as francesas de serem reconhecidas como cidadãs, inclusive tendo suas imagens degradadas junto à sociedade no pós-Revolução, saindo de heroínas para figurarem como traiçoeiras e violentas. O caso mais emblemático desta época é o de Olympe de Gouges que publicou a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” como forma de apontar a ausência dos direitos das mulheres na Constituição francesa de 1791. Gouges além de ter publicado tal declaração também se colocava abertamente contra a escravidão nas colônias francesas e chegou a se indispor frontalmente com Robespierre, chamando-o de “algoz impiedoso” em panfletos escritos e assinados. Gouges foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793. 

Durante a 1ª onda do movimento feminista no mundo, comumente representada na luta pelo direito ao voto, nos deparamos com o enfretamento por parte do movimento sufragista contra diversas formas de violência, especialmente a tortura. Um dos métodos não-violentos adotados pelo movimento sufragista na Inglaterra, por exemplo, foi a greve de fome e algumas vezes as forças policiais recorriam à alimentação forçada para que as sufragistas enfraquecessem suas manifestações em prol do voto igualitário.

Respostas insuficientes

Sim, as mulheres sempre sofreram violência ao se colocarem na luta política e por direitos. O impacto da violência política de gênero retira atrizes do cenário político e assim coloca em xeque o próprio Estado Democrático de Direito. Mas a resposta deste mesmo Estado foi insuficiente.

De fato, em 2021, foi promulgada a lei nº 14.192/2021, que trata da violência política de gênero. Mas ela é limitada: olha apenas para candidatas, parlamentares e membras do poder executivo. 

E esse é um ponto fundamental quando falamos de violência política de gênero. É claro que as parlamentares, candidatas ou membras de poder executivo acabam se expondo mais a esse tipo de agressão pela natureza de suas atribuições, porém o fazer político das mulheres na sociedade é bem mais amplo que isso e necessita de proteção. 

Inclusive, essa diversidade de atuações está prevista na Lei modelo Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres na vida política, ou seja, é possível pensar uma proteção mais global aos direitos políticos das mulheres em nosso país ao olharmos o que há acumulado sobre o debate na América Latina.

A história da ocupação por mulheres do espaço público de debate para defender seus direitos é uma história de violência. No momento atual, vivemos um avanço na ocupação política feminina e nas conquistas de direitos. Mas também temos um Estado patriarcal que impõe que não consigamos proteger os direitos políticos das mulheres de forma global e não apenas aquelas de maior evidência política.

Caso emblemático é a da ex-deputada federal Manuela D’Ávila que sofreu reiteradamente violência política de gênero nos momentos em que era candidata e parlamentar, mas ao deixar a política institucional continuou a ser alvo de violência política de gênero em espaços diferentes e não apenas ela como a filha dela também sofreu ataques. 

É fundamental compreendermos que as mulheres irão exercer atividade política dentro ou fora de partidos políticos, cumprindo ou não tarefa de candidatas ou parlamentares. Restringir a proteção contra a violência política de gênero como acontece no Brasil é não proteger o conjunto dos direitos políticos assegurados na Constituição Federal para as mulheres.

A garantia de direitos políticos para mulheres demorou séculos para ser consolidada e universalizada para além de mulheres brancas com renda própria. Mas ainda falta muito. A falta de uma proteção abrangente para mulheres que enfrentam a violência de gênero e a desigualdade patriarcal é um impeditivo nada acidental à luta contra a desigualdade de gênero, classe e raça. Só com muita organização social e política conseguiremos seguir avançando. Afinal, a igualdade é algo que, apesar de ser propagado pela Revolução Francesa, só poderá ser atingido pela luta das mulheres.

TEXTO

Luka Franca

Jornalista formada pela PUC-SP, bacharela em Direito pela USJT e coordenadora de organização estadual do MNU-SP

publicado em

TAGS

Adicione o texto do seu título aqui

plugins premium WordPress

Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

Assine Nossa Newsletter

Material de aprendizagem, reflexões, iniciativas, resistências. Um conteúdo exclusivo e analítico sobre o cenário, os desafios e as ferramentas para seguir na luta.

E mais: Vem de Zap! Recebe em primeira mão ferramentas, editais, notícias e materiais ativistas! 

Pular para o conteúdo