Transgredir para bell hooks significa romper com todo o tipo de dominação que existe no espaço da sala de aula. Significa, nas palavras dela, “abolir a falta de disposição de abordar um ensino a partir de um ponto de vista que inclua uma consciência de raça, de sexo e de classe social, em que a raiz deste processo está muitas vezes no medo de que a sala de aula se torne incontrolável…”, de “fazer da sala de aula um contexto democrático onde todos sintam a responsabilidade de contribuir”, que significa “transgredir as fronteiras que fecham cada aluno numa abordagem do aprendizado como rotina de linha de produção”, onde as identidades são fixas em apenas um modo de ser e habitar o mundo para dar espaço a um processo onde a aposta é de que cada pessoa possa inventar outros modos de existência, a partir de um processo educacional que com Freire se afirma libertador, onde todos tomam para si a responsabilidade do processo educacional como se fosse uma plantação em que todos temos que trabalhar juntos!
O segundo ponto que destaco é o de ensinar com a pluralidade.
No livro de bell, Ensinando a Transgredir, encontramos a palavra multiculturalidade. Segundo ela, esta ideia está presente em toda a sociedade nos dias atuais. Toda a sociedade se diz democrática e cultiva os melhores gestos e valores, sobretudo na Educação. São muitas palavras presentes nas propostas pedagógicas que expressam este propósito, como “diversidade”, “inclusão”, mas será que basta reconhecer a diversidade? Basta reconhecer a diversidade e manter cada um no seu lugar? Penso que o processo educacional e as relações necessitam de muito mais. A Educação necessita que a gente se misture e se contagie uns com os outros. A educação necessita que a gente se modifique a partir do encontro com a diferença.
Encaremos a realidade. Em todos os níveis, da Educação Infantil à universidade, temos que reconhecer que algum tipo de mudança se faz necessária. Muitos de nós aqui presentes frequentamos escolas onde o modo de ensinar refletia a noção de uma única maneira de pensamento e experiência, a qual sempre acreditamos ser a maneira correta. A maioria de nós aprendeu a ensinar reproduzindo um modelo. Como consequência, a Educação, a escola, tornou-se um espaço em que não se pode ou se deve perder o controle. Então a pluralidade, as diferenças, se consideradas, trariam muitos problemas à escola. A solução encontrada foi anular estas singularidades e focar no conteúdo das disciplinas. As professoras tornaram-se técnicas pedagógicas (e podemos dizer que as coisas estão ficando ainda mais complexas quando palavras como facilitação, gestão e empreendedorismo adentram os currículos, mas isto seria conversa para outra mesa) e sobre isto exige-se um debate profundo sobre o lugar em que o mercado-capital vem colocando a figura da professora, da Escola e da Educação. É, definitivamente, algo preocupante.
Retornando, penso que seja de extrema importância levar em consideração este receio das professoras. Já ouvi de muitas colegas que a sala de aula precisa ser um espaço seguro, local com foco no ensino e na aprendizagem, onde as crianças assistam as aulas silenciosamente e respondam somente quando são estimuladas a isso. O que deixamos de notar é que este ambiente de suposta neutralidade não é nada seguro para uma criança negra que, em sua maioria, se mantém calada prolongadamente, ou simplesmente não interage nem com a professora nem com os demais alunos.
Ouvi de professoras, colegas brancas, a dificuldade que sentem com algumas crianças negras que permanecem caladas durante muito tempo, que não se sentem confortáveis em expor suas ideias na sala de aula.
Aqui percebe-se o jogo das relações de poder centradas na linguagem: quem fala? Quem ouve? E Por que?
O cuidado para que todos na sala de aula estejam atentos ao processo de contribuir para o aprendizado não é uma abordagem comum no sistema chamado por Paulo Freire de “educação bancária”, no qual os educandos são meros depósitos, consumidores passivos de conhecimento desconectados de sua realidade e necessidade.
Uma vez que temos muitas professoras ensinando a partir deste modelo, torna-se difícil consolidar uma educação numa perspectiva comunitária ou numa perspectiva, como anunciaria Gert Biesta no livro Para além da aprendizagem, um espaço mundano, no qual se valorize a pluralidade e a diferença em que educadores preocupam-se menos com o controle e o projeto, e mais com a condição paradoxal da educação que é o seu fazer e o seu desfazer, à medida que os alunos encontram suas vozes, dentro da sala de aula.
bell hooks fala também da “necessidade de instituir espaços de formação no qual as professoras tenham a oportunidade de expressar estes temores e, ao mesmo tempo, criar estratégias de atuação em uma sala e um currículo múltiplo”. E complementa dizendo que “a escuta atenta das vozes dos alunos, fazer da sala de aula uma comunidade são desafios para ambos os lados – professoras e alunos”. Um aluno de bell disse a ela o seguinte: “nós fazemos o seu curso. Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo, a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida…”. Duro isso, não? Toda mudança, vem acompanhada de dor. Não é fácil…
Mas creio que cada dia mais se faz necessário estudar o sentido destes conceitos universais, para que todos possam compreender a proposta da singularidade, numa perspectiva cada vez mais imparcial, pois a escola pode e deve conversar sobre a opressão, sobre o rompimento de modelos racistas, mesmo na ausência de pessoas negras. Uma vez que este tipo de transformação oferece possibilidades para todas as crianças. A transformação deste tipo de sala de aula é tão importante quanto o de ensinar bem num contexto plural. Quando nós educadoras e educadores deixamos que nossa pedagogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da pluralidade do mundo, podemos oferecer aos alunos a educação que eles desejam e merecem.
Por falar na educação que as crianças desejam, me lembrei de uma situação bastante curiosa que vivenciei em uma cidade aqui do estado de São Paulo, quando atuei com formação da rede municipal com a temática dos Projetos Políticos Pedagógicos.
Nesta ocasião realizávamos escutas da comunidade escolar para a construção dos PPP’s. Num dado momento, percebemos que a Escola que os pais queriam era completamente diferente da Escola que as crianças queriam. Enquanto mães e pais queriam aulas de línguas e tecnologias, as crianças da Educação Infantil queriam apenas mais tempo no parque para brincar.
Reunidos na escola após esta constatação, perguntamos aos pais o que eles faziam naquela mesma escola quando estudaram nela.
A maioria lembrou das brincadeiras, casinha, carrinho, areia, tinta. Da alegria de estar no parque, dos amigos, das festas.
Ninguém teve aulas de línguas.
Ninguém teve aulas de computação ali.
Esta história me faz pensar muito nos modelos. Quem disse que uma escola boa precisa ter um montão de aulas? Quem disse que o modelo de hierarquia onde o adulto sabe e a criança não é o ideal? Quem disse que devemos seguir modelos?
O terceiro e último conceito que gostaria de destacar é o de uma pedagogia radical.
Para bell, o temor de perder o controle na sala de aula muitas vezes leva professores a cair num padrão convencional de ensino, em que o poder é usado destrutivamente. Esse medo de perder o controle molda e informa o processo pedagógico docente na medida em que atua como barreira ao envolvimento construtivo com as questões de classe social, de raça, gênero entre outros.
Deste modo, uma professora engajada em uma pedagogia radical reconhece a importância de confrontar construtivamente tais questões e acolhe a oportunidade de alterar suas práticas com a criação de um modo diferente de educar. Quero com isso pensar em um modo de educação que se realiza, como diria Laymert Garcia dos Santos em Amazônia Transcultural, num modo de fazer “com” os alunos e não somente “para” eles. Rompendo definitivamente com o sentido de linha de produção de aprendizagem para a construção de uma atividade educadora onde professora e estudante se formam e se deformam na medida em que o encontro acontece, menos pelo decreto ou pelo que está nas apostilas, e mais na produção do conhecimento conjunto, intensivo, plural, singular. As experimentações que realizo tem caminhado para este sentido.
Aprendi com Espinosa que é preciso construir bons encontros. Busco a cada aula, seja com crianças ou com adultos, a cada encontro na rua, nas comunidades, nas aldeias, sair diferente do que entrei, assumindo uma condição de devir.
Tento me livrar das capturas identitárias que outrora nos foram impostas pelos opressores. Identidades que nos colocam em uma só condição, em um só modo de vida. Sabemos todos que um navio negreiro era composto por uma multiplicidade infinita! Lá existiam pessoas de diversos territórios, povos, línguas, tribos, culturas, etnias da África. E qual foi a primeira violência cometida pelo empreendimento escravagista? Transformar toda essa multiplicidade, toda a potência, toda a possibilidade presente ali em uma coisa só. Apenas Negros. Negros e ponto.
Venho tentando sair desta identidade aprisionada para buscar uma Educação com Freire, que educa para a liberdade. Diria Fanon, liberdade para quem é oprimido e liberdade para quem oprime. Tento lidar com cada aluno de um jeito, observando seus gestos, sua expressão, seu modo de vida, singularizando também as nossas relações. Algo que traga possibilidades a mim e a eles de sermos mais! De se modificar a cada aula, a cada dia.
Oxalá que mesas como esta não necessitem mais existir, que possamos nos reunir para falar de Educação, de estudos, de produção de conhecimento, onde a criança negra não seja o objeto e não necessite buscar direitos ou representação, pois isso já estará garantido. Com Paulo Freire, encerro por hora: “ser capaz de recomeçar sempre. De fazer, de reconstruir, de não se entregar, de recusar burocratizar-se mentalmente, de entender e de viver a vida como processo, como vir a ser…”