Chegar no mês de outubro de 2024 é encarar o amargo marco de um ano do genocídio ainda em curso contra o povo palestino na Faixa de Gaza, perpetrado pelo Estado de Israel. A contagem oficial chega a mais de 40 mil pessoas mortas, 1,8 milhões deslocadas forçadamente e centenas de milhares feridas, e não comunica a totalidade do horror vivenciado pela população palestina. Tampouco as imagens, que fazem deste genocídio o mais hipervisível da história, parecem sensibilizar o mundo sobre o tamanho da destruição e fazer com que ela cesse. Como se não bastasse Gaza, a escalada da violência israelense se expandiu para a Cisjordânia e há poucas semanas faz ataques no Líbano sem precedentes na história. Israel segue impunemente suas atrocidades e crimes contra a humanidade, protegido pelos estandartes do sionismo, do colonialismo, do imperialismo e do neoliberalismo.
Outubro de 2023 não marca um início, mas a continuação de um projeto de 76 anos de colonização, configurado em um sistema de apartheid e ocupação no que se compreende como os territórios de Israel e Palestina. Se no fim do século XIX o debate sionista circulava em torno da questão da autodeterminação judaica e de possíveis resoluções para perseguições históricas, com o tempo concretizou-se como um projeto colonial para a criação de um Estado fundado sobre a expropriação dos palestinos em 1948. Esse processo ficou conhecido como Nakba (catástrofe em árabe).
O poeta libanês Elias Khoury, falecido há poucos dias, foi um dos primeiros a ler a Nakba não como um evento localizado, mas como catástrofe contínua que se estende até hoje: seja na apropriação dos territórios em 1967, no confisco em curso de terras através dos assentamentos, no apagamento de memórias, na militarização da vida cotidiana e no extermínio do povo palestino. Se para muitos Israel significaria a conquista da segurança e liberdade para o povo judeu, para nós do Vozes Judaicas por Libertação, coletivo que integro, foi um sinônimo definitivo de muitas rupturas e reconstruções.
Entro então nessa nefasta linha do tempo a partir de uma pergunta que movimenta muito a trajetória do coletivo: como podem conviver percepções em escala mundial tão opostas em torno do mesmo fato, quando olhamos especificamente para o 07 de outubro? Por um lado, foi imediatamente massificada a informação de que a ação do Hamas foi o “maior ataque contra judeus desde o Holocausto”. Nessa perspectiva, tal fato inédito autorizaria toda e qualquer ação do exército israelense como “direito de defesa” que teria por “consequência natural” o massacre a que assistimos. Essa inclusive é uma das principais égides sionistas, que nomeia o exército como “Forças de Defesa de Israel”. Nessa percepção, tanto o Hamas como os palestinos em geral, além de estamparem exclusivamente as vestes do terrorismo, são eternamente responsabilizados por sua própria catástrofe.
Por outro lado, como comenta o jornalista Antony Loewenstein (2024), o 07 de outubro foi um golpe contra a crença tão consolidada em Israel que os 2,3 milhões de palestinos habitantes de Gaza poderiam ser confinados para sempre na maior prisão a céu aberto do mundo sem haver qualquer tipo de consequências. Sem justificar absolutamente os ataques do Hamas, muito menos desprezar as vidas ceifadas neste contexto, interessa aqui um olhar que faça distinção entre as estruturas e seus sintomas. Desmanchando possíveis armadilhas comparativas dessa linha do tempo, o que se dá como “resposta” a partir do dia 08/10 foi, é e sempre será injustificável. Na compreensão de que há mais leituras do que estas sublinhadas, nos colocamos um desafio enquanto grupo de tentar dissolver perspectivas binárias, desestabilizar e confrontar as narrativas que insistem em normalizar a situação palestina.
Surgimos a público enquanto coletivo a partir da inevitabilidade da revolta e de algo mínimo que ainda não era dito de forma coletiva aqui: um genocídio não será praticado em nosso nome, o Estado de Israel não representa a todos os judeus e deve ser freado em suas políticas e ações constantes de violação dos direitos dos palestinos. A criação do grupo concretizou a possibilidade de um lugar novo em que pudéssemos publicamente manifestar nossa solidariedade à luta palestina e, ao mesmo tempo, afirmar e solidificar uma judeidade antirracista, anticolonial e antiapartheid, uma judeidade não sionista.
A partir do encontro de trajetórias e origens diversas, partilhamos a ruptura com um papel muito bem desempenhado pelas instituições sionistas que convivemos ao firmarem um vínculo indissociável entre judaísmo, judeidade e o Estado de Israel. É importante marcar que não somos “judeus bons” muito menos superiores por isso. Tampouco sofremos de “auto ódio” como muitos também nos acusam, pois nosso posicionamento não se dá apesar de nossas identidades, mas a partir delas. O que cabe aqui é explicitar que a construção sionista, mais do que uma escolha racional por um posicionamento que sustenta a legitimação do que vemos hoje, é um mosaico de manipulação de traumas coletivos e do uso de perseguições históricas para direcionar a aprovação que Israel exista a todo e qualquer custo.
Nos últimos anos, diversas transformações e disputas têm ocorrido dentro e fora da comunidade judaica em relação à Israel-Palestina. Há tanto um fortalecimento de uma direita sionista explicitamente alinhada ao bolsonarismo e ao fascismo, como também manifestações que reproduzem paradigmas datados e crenças como “Dois Estados para Dois Povos” como forma de “resolução” para a questão palestina. Repudiando o sionismo abertamente fascista e desafiando um “sionismo de esquerda” que buscar falar da Palestina sem levantar palavras como “direito de retorno”, “reparação”, “apartheid” e “genocídio”, nos vemos sem lugar nessa comunidade judaica. Nesse cenário, se desenhou a tarefa não só de romper, mas de construir um lugar através da coletividade capaz de se fundar numa outra ética e política, seja na Palestina ou no Brasil.
Ao perfurar o aparentemente inabalável pacto entre sionismo e judaísmo, percorremos esse primeiro ano com muitos desafios, tendo sempre no horizonte que não protagonizamos a luta e a resistência palestinas. Entendemos nossas ações como oportunidades de visibilizar no cenário brasilero um posicionamento solidário desde o lugar que cavamos para ocupar, dialogando e colaborando com os movimentos palestinos. Desse lugar, questionamos as narrativas hegemônicas sionistas e suas representantes, constantemente acionadas como porta-vozes da comunidade judaica, que instrumentalizam o conceito de antissemitismo para silenciar críticas à Israel, dificultando inclusive o combate ao antissemitismo real, que é a discriminação contra judeus pelo fato de serem judeus.
Além disso, impossível não pautar junto de vários outros movimentos e ativistas no país a relação entre Brasil e Israel desde seu lado mais perverso: ambos experimentam as mesmas tecnologias em seus genocídios. Israel exporta sua tecnologia de ocupação e tornou-se ‘referência’ na produção de armas e sistemas de vigilância e monitoramento para o mundo, sem nenhum constrangimento de inflamar conflitos, guerras e a violência de Estado em países por todo o globo. O Brasil, sendo um de seus maiores compradores, além de investir na opressão e extermínio das populações negras, periféricas, indígenas e tantas outras subalternizadas no país, torna-se cúmplice no genocídio do povo palestino.