Devolvendo o futebol ao povo e articulando a luta à celebração nas arquibancadas e ruas, as torcidas antifascistas vêm ganhando espaço em todo o país.
Por Coletivo Baru
Protestos antifascistas e antirracistas tomaram às ruas de São Paulo em 2020 e foram puxados, em grande medida, por torcidas organizadas l Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/Ponte Jornalismo e Pavio
Já faz algum tempo que as bandeiras de time, com a palavra antifascista, estão presentes nas manifestações de esquerda do país, ao lado de movimentos sociais, partidos e sindicatos nos lembrando que o futebol é, antes de qualquer coisa, do povo. E que a união de futebol e política não só é possível, como faz parte de sua própria história.
Das arquibancadas para as ruas e redes sociais, as torcidas antifascistas surgiram e se consolidaram principalmente nos últimos anos, acompanhando a ascensão da extrema-direita no Brasil. São um fenômeno recente, portanto, podendo ser rastreado principalmente a partir de 2014 – apesar de a mais antiga delas ter sido criada em 2005: a Ultras Resistência Coral, torcida anticapitalista do Ferroviário Atlético Clube. “Essa centelha que nós lançamos ganhou corpo, essa chama se espalhou por vários locais do Brasil”, conta Carlos Marques*, da Resistência Coral. Hoje as torcidas antifa encontram-se em todas as regiões brasileiras, e se articulam também em movimentos unificados nacionais e regionais.
“A escalada autoritária e populista de Bolsonaro, usando todas as camisas de time de futebol, foi um divisor de águas: se a direita brasileira está avançando e usando o futebol de palanque fascista, alguém precisa agir”, diz Ot*, torcedor da Resistência Alvinegra, uma das torcidas antifascistas do Clube Atlético Mineiro, surgida em 2019.
E uma coisa puxa a outra: Carlos Marques conta que, uma vez criada a torcida, juntaram-se ao movimento tanto torcedores de esquerda quanto militantes que passaram a se interessar pelo futebol “justamente por esse viés politizado, de esquerda, anticapitalista e classista que a torcida tinha enquanto proposta”. Assim, as torcidas antifascistas vêm se mostrando um importante espaço de encontro e formação política, de luta por direitos e de trabalho de base.
Torcidas abandonam a rivalidade para se unir por uma causa em comum em 2020 l Foto: Pedro Ribeiro Nogueira l Ponte Jornalismo e Pavio
O ativismo das torcidas organizadas antifascistas
“São totalmente compatíveis a luta por direitos e a luta por um futebol mais justo, democrático e popular. Porque entre os direitos da classe trabalhadora está incluso o direito ao lazer e nós sabemos que no Brasil o futebol é um dos principais lazeres de grande parte da população, de parte da classe trabalhadora”, argumenta Carlos Marques. Ot completa: “O futebol é o ambiente perfeito para se discutir as lutas populares. As torcidas, organizadas ou não, são compostas em sua imensa maioria por ‘gente como a gente’: homens e mulheres com poder aquisitivo baixo, que trabalham duro diariamente. O esporte é uma válvula de escape, uma diversão em meio aos problemas do dia a dia”.
Nisso está um dos pontos de partida mais importantes de seu ativismo: a construção conjunta em torno de um ideal comum, aliada à defesa irrestrita de um direito fundamental de toda a classe trabalhadora – o direito ao lazer, à festa, à diversão, ao espetáculo alegre e coletivo que pode ser encontrado em um jogo de futebol. “O futebol é um dos espetáculos mais políticos que existem”, resume Ot.
Daí que uma das frentes de atuação dessas torcidas é a defesa do acesso da população ao estádios, como explica Marques: “Quando nós lutamos contra a mercantilização do futebol, contra a elitização desse esporte, estamos lutando também por esse direito da classe trabalhadora, para que ela tenha esse lazer. Que o futebol volte a ser, ou permaneça, onde é possível, acessível à maioria das pessoas”.
Originalmente um esporte das elites, o futebol tornou-se, ao longo de sua história no Brasil, mais e mais parte da cultura popular. Hoje, parte da luta das torcidas organizadas é para que ele se mantenha de fato acessível ao trabalhador e não volte a ser um privilégio das elites. Carlos explica como o aumento dos preços dos ingressos e a padronização imposta às arquibancadas têm restringido não só quem pode frequentar os jogos, mas também a forma com que pode fazer isso.
Um exemplo é a extinção das “gerais”, que, segundo lembra Carlos, “era aquele espaço que havia nos estádios em que o trabalhador podia pagar um preço mais baixo para assistir a partida do seu time. Se extinguiu o momento que acontecia em alguns estádios, em que, faltando 15 min pra acabar o jogo, os portões eram abertos para que as pessoas pudessem assistir pelo menos aquela parte final. Muita gente que não tinha condição de pagar pelo ingresso entrava nesse momento”. Outra mudança que aponta para a crescente gentrificação do esporte é a alteração do próprio espaço dos estádios, que, a partir da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, passaram a seguir um modelo europeu – o “padrão Fifa”. A forma das torcidas ocuparem as arquibancadas foi alterada e “higienizada”, o que afeta diretamente a própria atuação das organizadas antifascistas, que muitas vezes têm seus materiais barrados de entrar nos estádios devido a seu conteúdo político, por exemplo.
“Nós não vamos aceitar que o trabalhador seja retirado do futebol, nem pelo Atlético e muito menos por presidentes e governantes que estejam no poder. Se precisar brigar, nós iremos”, afirma Ot. Carlos Marques explica qual é essa briga: “É basicamente a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, e isso se reflete também no futebol – mais democrático e mais acessível. Que esse lazer possa ser um direito de todos e todas pertencentes à classe trabalhadora”.
Essa luta não se restringe apenas à presença dos torcedores nos estádios, como completa Carlos: “E, quando se fala de todas e todos, isso implica também lutar no sentido não só do acesso em termos de ter condições de entrar no estádio e pagar o preço do ingresso, mas para que sejam respeitadas as diversidades, para que mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros e negras, possam se sentir bem nesse espaço, sem serem alvos de preconceitos, de machismo, de racismo, de homofobia. Que o espaço do futebol seja de fato acessível também no acolhimento, sem opressões”.
As torcidas antifascistas têm bastante clara a noção de que sua luta nos estádios é indissociável da luta das esquerdas no país, pois entendem que, sendo do povo, o futebol também é o espaço de construção, propagação de ideias, diálogo e trabalho político de tudo aquilo que diz respeito ao povo. Assim, as bandeiras dos times tremulam ao lado das bandeiras das lutas populares.
“O esporte sempre esteve em paralelo aos grandes acontecimentos políticos do país, e é impossível uma luta popular da esquerda ‘eliminar’ o futebol das pautas. É um tiro no pé, visto que uma imensa parte da população brasileira é apaixonada por ele. O papel da esquerda em relação ao futebol é bem simples: o diálogo e propagação de ideias. Conversar com o torcedor é literalmente conversar com o povo”, resume Ot.
O diálogo e a propagação de ideias tornam-se parte da maneira das torcidas antifascistas estarem nos estádios, e variam desde manifestações públicas e ações solidárias a negociações com as diretorias dos times e outras torcidas organizadas.
Exposição de faixas nos estádios, distribuição de panfletos, comunicação virtual, convocação de reuniões entre o clube e os torcedores, apresentação em rádio, presença em manifestações de rua, como em atos de 1º de maio ou contra o governo federal: essas são algumas das formas com que as torcidas antifascistas se comunicam e marcam presença politicamente.
“Um exemplo disso foi a ação que fizemos no dia de aniversário do golpe militar, em 2021, quando torcidas do Brasil todo esticaram faixas pelas cidades e nas portas dos estádios com a frase ‘Ditadura nunca mais’”, lembra Eme.
Eme, integrante do Movimento Unificado das torcidas antifascistas brasileiras, explica que existem diferentes tipos de organização das torcidas no país: aquelas que são perfis e páginas em redes sociais, movimentando-se apenas no ambiente virtual e sem presença nos estádios; outras que são pequenos agrupamentos de militantes, sem vínculo com as organizadas e, portanto, com menor adesão popular; as torcidas que têm interação com as organizadas, seja por possuírem membros delas, seja por trabalharem conjuntamente em algumas frentes; e, por fim, os núcleos antifascistas que se formam dentro das próprias torcidas organizadas.
A Ultras Resistência Coral, do Ferroviário do Ceará, foi pioneira em aliar antifascismo com futebol no país no séc. XXI l Foto: Divulgação
“Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classes”
Essa frase, um dos lemas carregados nas faixas da Resistência Coral, descreve um aspecto central da organização dessas torcidas: a união dos torcedores como classe trabalhadora. É o que explica Carlos Marques: “Nós identificamos que o inimigo do torcedor não está do outro lado da arquibancada, vestindo a blusa de um outro clube ou de uma outra torcida organizada. Os verdadeiros inimigos estão ocupando cargos de poder – poder político, econômico… estão, esses sim, trazendo prejuízos e ferindo direitos dos torcedores, sejam eles de torcida organizada ou não”.
É claro que uma coisa não exclui a outra. A luta pelos direitos da classe trabalhadora, contra o neoliberalismo e por um futebol mais democrático não se sobrepõe à torcida apaixonada por um time – na verdade, as duas coisas acontecem lado a lado, como duas faces da mesma moeda. “O que é mais relevante: o fulano de tal estar do meu lado (ideologicamente) ou ele ser de uma torcida rival à minha? E é aí que eu acho super importante a organização: quando falamos sobre pautas antifas, nós ‘esquecemos’ um pouco a cor da camisa do outro, e levamos em consideração que a nossa luta é conjunta, com total respeito ao amor pelo time, é claro”, reforça Ot.
Apesar dessa união sob uma grande bandeira, os conflitos com o meio mais tradicional do futebol e a resistência encontrada por parte de diversos torcedores tornam necessária uma constante negociação e compreensão das formas com que os afetos se organizam nas arquibancadas.
Sobre as relações entre as torcidas organizadas, por exemplo, Eme aponta a importância de dar atenção às rivalidades pré-existentes, sem passar por cima delas em prol do “antifascismo”. “As rivalidades entre torcidas organizadas são muito mais antigas que esse novo movimento antifa nas arquibancadas daqui, muitas delas com histórico de mortes em confrontos, então não é algo que se pode ignorar”, pontua. Quando há ações que não levam em conta essa lógica, mantendo-se alheias ao mundo das torcidas, “sem nenhum trabalho político antes”, o efeito é apenas o de afastamento das organizadas, como explica Eme. Sem haver trabalho de base não há construção política, não há adesão popular e nem um movimento antifascista de fato, capaz de mobilizar e transformar o ambiente do futebol a partir de seus agentes.
O que está no cerne das torcidas antifascistas, afinal, é a união de torcedoras e torcedores como classe trabalhadora e como povo apaixonado pelo futebol, com tudo o que isso implica: os conflitos de classe, a luta por direitos e o anticapitalismo, por um lado; e as rivalidades entre clubes e a paixão pelo time, por outro. A partir do diálogo, da militância que vai do boca-a-boca à luta institucional, e da presença ativa em manifestações e estádios, os torcedores organizados sob a bandeira antifascista atuam para que o futebol (e a política, de forma geral), seja de fato do povo.
Quanto às divergências entre as torcidas ou entre as diferentes posturas partidárias, o trabalho é para que elas não se sobreponham a esse interesse maior. “Cada um no seu canto, mas todos falando a mesma língua: somos antifascistas”, resume Eme, que também coloca ênfase na importância do trabalho de base como princípio de luta: “Acreditamos que a união e paz entre a classe trabalhadora e seus torcedores não virá do dia pra noite com frases feitas ou tentativas forçadas, mas naturalmente conforme esse trabalho político for ganhando cada vez mais adesão entre as massas.”
Torcidas antifascistas no Brasil
Sudeste
Cruzeiro Antifa e RAP – Resistência Azul Popular (Cruzeiro, MG), Galo Ultras Antifa e Resistência Alvinegra (Atlético, MG); Gaviões da Fiel e Coringão Antifa (Corinthians, SP); Mancha Verde, Palmeiras Antifascista e Porcomunas (Palmeiras, SP); Resistência Tricolor Antifascista e Frente Democracia Tricolor (São Paulo, SP); Santos Antifascista (Santos, SP); Flamengo Antifascista e Flamengo da Gente (Flamengo, RJ), Botafogo Antifascista (Botafogo, RJ), Bangu Antifascista (Bangu, RJ), Vascomunistas e Esquerda Vascaína (Vasco, RJ), Fluminense Antifascista (Fluminense, RJ).
Nordeste
TAU Nordeste (união das torcidas antifascistas da região), Antifascista Sport (Sport, PE), Timbu Antifa (Náutico, PE), Azulão Antifa (CSA, AL), Ultras Resistência Coral (Ferroviário, CE), Movimento 3 de fevereiro e Democracia SCFC (Santa Cruz, RE), Vozão Antifa (Ceará, CE), Resistência Tricolor (Fortaleza, CE), Bahia Antifascista e Frente Esquadrão Popular (Bahia, BA), Vitória Antifascista (Vitória, BA), América-NT Antifascista (América, RN), ABC-NT Antifascista (ABC, RN).
Sul
Frente Popular Alviverde e Coxacomunas (Coritiba, PR), Grêmio Antifascista, Antifascistas do Grêmio, Coletivo Elis Vive e Tribuna 77 (Tricolor Gaúcho, RS), Inter Antifascista (Internacional, RS), Londrina Esporte Clube Antifascista (Londrina, PR), Antifascista do Furacão (Atlético, PR).
Norte
Remo Antifascista (Remo, PA), Frente 1914 (Paysandu, PA).
Torcidas Unificadas
Torcidas Antifas Unidas – Nordeste, Torcidas Antifas Unidas – Brasil (TAU-BR).
História: o Ferroviário Atlético Clube (CE) e a Ultras Resistência Coral
“Nada diminui nossa paixão incendiária. Ferroviário, orgulho da classe operária”, grita a torcida Ultras Resistência Coral. A atuação de esquerda da organizada, aliada às causas da classe trabalhadora, opera também um resgate da própria história do time, que “foi forjado na classe operária”, como conta Carlos Marques.
O time cearense foi criado por operários da estrada de ferro que se organizavam em dois times amadores para realizar partidas de futebol nos intervalos de descanso do trabalho, entre um turno e outro. Hoje, relembrar essas raízes é motivo de orgulho e de luta para os torcedores da Ultras Resistência Coral, que têm os interesses da classe trabalhadora como centro de sua atuação anticapitalista. Formada, em sua origem, majoritariamente por estudantes secundaristas e jovens universitários, a Resistência Coral mantém em sua composição o mesmo laço com a classe trabalhadora que o Ferroviário carrega em sua história: atualmente é composta por trabalhadores das mais diversas áreas, contando com um grande número de professores da rede pública de ensino.
De origem anarco-comunista, a Ultras Resistência Coral foi criada, no meio da torcida organizada tradicional, a partir do incômodo gerado pelos comportamentos de incitação ao ódio muitas vezes percebidos nas arquibancadas. Transformando incômodo em imaginação e luta, os torcedores se propuseram a levar uma outra lógica para os estádios, inspirados no modelo de torcidas organizadas europeias, as ultras. Assim nasce a torcida anticapitalista do Ferroviário: como explica Carlos Marques, “uma torcida abertamente de esquerda, politizada, anticapitalista e que tivesse essa postura diferenciada nos estádios de futebol para combater esses tipos de preconceito, a homofobia, o machismo, o racismo. E também outros aspectos que envolvem o sistema capitalista, como a própria mercantilização e a elitização do futebol”.
Para a torcida organizada, contar a história do time faz parte tanto da paixão pelo Ferroviário quanto da construção política de conscientização e identificação de classe. “Nosso clube está diretamente ligado à classe operária e a Resistência Coral buscou fazer um trabalho de resgate dessa história e dessa identidade classista, que durante um bom tempo ficou relegada a segundo plano. Através desse trabalho a torcida do Ferroviário passou a conhecer mais a sua origem operária e reivindicar essa origem e esse caráter diferenciado do nosso clube. Isso contribuiu para que pudéssemos levantar essas questões que envolvem a classe trabalhadora, dos direitos de classe. Foi um diferencial que nos ajudou a fazer com que a luta pela classe trabalhadora fosse incorporada de maneira mais aceitável pela torcida do Ferroviário”, explica Carlos Marques. “É algo que nos mobiliza bastante. Nos orgulha muito ter essa origem, essa caracterização que a gente reivindica e dissemina nos estádios com muito orgulho”, completa.
*Os nomes que aparecem nessa matéria são fictícios, à pedido das fontes.