Livro foi escrito em conjunto com a comunidade e conta a história do território, sua cultura e seus habitantes

Pedro Silva e sua mãe, Lindalva,  durante as celebrações do Dia do Rio Jauquara

Pedro costumava anotar e transcrever as cantigas que seu avô, seu Francisco, cururueio, cantador e tocador de viola de cocho, entoava. Mais do que seu avô, seu Francisco é memória viva da cultura do Vão Grande, uma região quilombola que reúne cinco comunidades, localizada entre duas morrarias perto de Barra do Bugre, no estado do Mato Grosso. Foram dessas anotações, num caderninho, que surgiram os primeiros rascunhos do que seria o livro “Narrativas do Interior”, lançado no dia 28 de abril.

“Pessoas especiais deixam histórias especiais”, disse emocionado Pedro Silva, ao lado de sua mãe, Lindalva, que citou como sua grande inspiração. O lançamento aconteceu pisando no chão do território durante a celebração do Dia do Rio Jauquara, que corta e alimenta a comunidade.

“O livro conta o que vocês do Vão Grande já sabem. Vamos contando as coisas bonitas mas também as dificuldades que a gente passa”, disse o autor em referência às ameaças do agronegócio e da construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) que ameaça o rio. “É uma história de respeito e de cuidado com a nossa cultura”.

Editado e publicado sem fins lucrativos pela Escola de Ativismo e a Sociedade Fé e Vida, o livro fala do território, de suas pessoas e cultura, do mutirão ou muchirum, da construção das casas, lendas, mitos, contos e causas, sabedorias e ervas medicinais. Também grava em páginas a hospitalidade das pessoas, a religiosidade e a vida do rio.

Sem mais delongas, quem quiser ler o “Narrativas do Interior” pode baixá-lo aqui.

O dia do rio

“Rio Jauquara, Rio Jauquara,

Eis aqui minha homenagem pra essas águas que não para

Rio Jauquara, Rio Jauquara, 

Com suas águas cor de anil, eis aqui minha homenagem, 28 de abril”

– Dito Baiano

Como se marca um aniversário de rio que existe desde sempre? A comunidade de Vão Grande ensina que se celebra a partir da luta e do compromisso dos moradores com suas águas, de modo que, a data de fundação do Comitê Popular do Rio Jauquara, que integra o Comitê Popular do Rio Paraguai, é o aniversário do rio, em 28 de abril.

O primeiro aniversário foi em 2019, enquanto a comunidade se organizava para lutar contra a ameaça de uma PCH — uma das 135 que podem surgir no estado e colapsar o Pantanal, a principal área alagada do planeta, e atingir mais de 120 milhões de pessoas em quatro países.

Ali do sítio do Seu Antônio, que recebeu as comemorações depois de dois anos de pausa por conta da pandemia, contou-se como aquela “festa de aniversário” foi importante para a luta.

Ao articular os quilombolas e trazer para perto a comunidade, foi possível organizar um abaixo assinado contra a construção da PCH. E também mostrar, com fotos e vídeos, aos promotores e juízes quanta vida vive ali. Quanta cultura. Quanto peixe. E, claro, quanta gente.

Entre rezas antigas em palavras que o próprio Pedro Silva diz que ainda está desvendando, tocadas de viola-de-cocho, instrumento símbolo do Mato Grosso, apresentações de Cururu e Siriri, e fartas porções de vaca atolada, lambari e jaú frito, o senso de união de cinco comunidades ia se fortalecendo, em bancos de tora e tábua embaixo da sombra de uma árvore.

E, também, depois na beira do rio. Foi lá que cada comunidade do Vão Grande trouxe um pouquinho da sua água, assim como o Comitê do Rio Paraguai, e as misturaram com as águas que cruzam a frente do sítio Santo Antônio, mostrando que a luta irá continuar fluindo nas margens do Jauquara e seus quilombos, querendo os empresários e governos ou não.

Ah, e claro: toda festa tem que ter bolo.

Entenda o caso

Ao receber menos atenção que suas irmãs maiores, as chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) representam um projeto que, por sua escala, pode ser ainda mais danoso à natureza. Somente no Mato Grosso, estão previstas 135 barragens desse tipo, que podem levar ao colapso do Pantanal, maior área alagada do planeta. 

Essas barragens representam um choque incalculável em uma bacia hidrográfica pertencente a 4 países – Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina –, atingindo diretamente mais de 120 milhões de pessoas.

Os quilombos que dependem diretamente do Jauquara estão nos municípios de Barra dos Bugres e Porto Estrela. São gerações de uma cultura estruturada a partir da relação direta com a natureza, tendo no rio uma centralidade. Atualmente, o projeto para a hidrelétrica tem o nome de PCH Araras. 

A empresa responsável pelo empreendimento é a Prospecto Participações e Negócios, e o projeto básico já foi aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Os rios do Pantanal são conhecidos por seu período de cheia e de baixa. Esse equilíbrio delicado pode ser completamente alterado com o controle humano sobre o volume de água. Como forma de garantir que haverá sempre reserva de água para a geração de energia, os controladores das barragens determinam essa vazão.

Para a natureza e as plantações que dependem desses ciclos para manter sua vida, isso significa o fim de colheitas e de vegetações nativas. No caso dos peixes, a situação é ainda mais grave, pois sem conseguir subir ou descer o rio para se reproduzir, diversas espécies entrarão em extinção nesses rios, levando a uma sequências de mortes em cadeia. Se até mesmo grandes cidades são impactadas por essa interferência, a situação é ainda mais grave em comunidades tradicionais que dependem dos rios para seu sustento e modo de vida, como os quilombolas do Vão Grande.

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