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Onde estão os novos espaços e as novas formas de resistência

Luciana Ferreira

Quando me coloquei a escrever sobre a pergunta Onde estão os novos espaços e as novas  formas de resistência?, imediatamente me veio a lembrança um alerta de Hannah Arendt: “A educação é a posição em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele e, pela mesma razão, salvá-lo da ruína que, a não ser pela renovação, a não ser pela vinda do novo e dos jovens, seria inevitável” (1). Sou uma educadora e vejo o mundo a partir deste lugar do entre: de um lado o passado, de outro o futuro. E quando imagino os novos espaços de resistência neste mundo velho, caquético, que dá sinais de esgotamento e cansaço, recorro à capacidade imaginária de inventar mundos, própria da infância.

A criança é sempre o novo que chega. É corpo e afeto antes de tudo. É movimento e intensidade repleta de forças que as formas tentam enquadrar. Um pensamento sem o esquadrinhamento produzido pela disciplina, pela linguagem, pela casa, pela escola. Quando um novo chega, nós que aqui estamos há mais tempo criamos meios para que ela aprenda o essencial para sobreviver. De algum modo, nós nos modificamos nesta investida de explicar e traduzir o mundo a elas. É um movimento muito bonito e importante para o mundo e todos os seres que aqui vivem.

Creio que as palavras infância e resistência são sinônimas, pois as infâncias produzem um modo de existência que, de tão simples e necessário, não cabem no mundo do capitalismo cognitivo. Atividades como brincar, dormir e sonhar, comer, cantar, sorrir, andar por aí, fazer nada, fazer muita bagunça, preparar bugigangas, bolinhos de barro, passar um tempo olhando para uma planta, para a parede, desenhar… são ações de resistência na atualidade onde se exige produção em praticamente todos os setores da vida humana, e cada vez mais sem limite de idade para começar ou acabar.

Tomo distância daqueles que determinam que uma geração é mais ou menos produtiva que a outra. Ou mesmo que um modo de existência possui mais força do que outro. Pelo contrário, com Soriau, acredito que não há potência de existir maior ou menor, “o tênue vapor levemente róseo no céu azulado da tarde não possui menos existência do que a plenitude sólida e iluminada de uma nuvem esplêndida e perfeita, glória de uma bela tarde” (2). No caso das infâncias, existe em Soriau um convite para enxergarmos as existências mínimas. Um ponto de vista de um mundo outro, que em geral nós, adultos, não percebemos. Não notamos porque estamos sempre muito ocupados, fazedores de muitas coisas, de muita produtividade, atentos ao mundo exterior, àquilo que nos empurra para coisas grandiosas, numa perspectiva macro.

Trata-se então de uma provocação das infâncias para uma certa redução. Reduzir para fazer ver o que não é perceptível. Talvez nesta empreitada de fazer-nos ver aquilo que está invisível consigamos suspender aquilo que está no campo dos pressupostos evidentes no mundo velho que, como camadas de poeira, nos impedem de enxergar o novo e a renovação.

Aos olhos da criança, um desenho tem mil ações, um bolinho de barro tem cheiro de comida feita na hora! Uma pipa não é apenas um amarrado de varetas, é o próprio corpo dela ali desbicando no azul infinito do céu. Aos olhos dos povos indígenas um rio é muito mais do que um recurso, uma montanha é parente. E vai por aí…

Que os mais diferentes pontos de vista e os mais diferentes modos de existências nos façam ver, ampliem a nossa capacidade de olhar. Os textos presentes neste Mosaico apresentam um pouco dessa ideia. Pessoas de lugares diferentes, se ocupando de múltiplas lutas, traçam linhas paralelas sobre novos espaços de resistência e, a partir desta pergunta-provocação, buscam elaborar em sua experiência modos de vida e existência inspiradores.

Amália Garcez expressa uma preocupação importante com o mundo. Da Finlândia, ela olha para o Brasil e, junto dos finlandeses, se preocupa com a Amazônia. Encontra na palavra Intersecção possibilidades para o ativismo — justiça climática, justiça social, feminismos se articulando com a luta antifascista. “Não dá para lutar isolado, não dá para falar de meio ambiente sem considerar as pessoas que serão afetadas porque estão em situação mais vulnerável. Não dá para falar de feminismos desconsiderando que tem mulheres ainda mais afetadas pelo machismo e pelo racismo. Eu, por exemplo, não posso dizer que seja a mulher mais afetada pela injustiça social, mas preciso lutar em favor das mulheres que são”. Nessa relação entre os que aqui lutavam e os novos que chegam, vemos ressoar em Amália as palavras de Paulo Freire: “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas sobretudo, com eles lutam”(3).

Carlos Augusto, engenheiro florestal com uma relação muito particular com o mundo das florestas entre Marajó, Belém e o Jari no Estado do Pará, expõe seu modo de pensar a partir de uma educação popular das florestas. Carlos revela sua história e militância junto ao município de Afuá e seus 35 anos de luta popular pelo direito à terra. Percebo com Carlos que a luta e os espaços de resistência podem ser criados a partir de um acontecimento, de fatos trágicos, mas a resistência está diretamente ligada à sobrevivência e, no caso das comunidades rurais e da luta pela reforma agrária, o tempo não se configura como um aliado. Talvez pela resistência dessas famílias é que escutamos de Carlos a frase de seu amigo: “Afuá e Gurupá conseguiram domar o capitalismo”. Será? Como? Os espaços de resistência estão na conexão da juventude florestal que a cada dia descobre o poder da comunicação e da tecnologia para ampliar seu movimento junto com a história e a luta por garantia de direitos básicos conquistados pela geração anterior. Carlos se encontra na conexão: “não estou na casa dos 60 nem na casa dos vinte e poucos, minha posição é de transição, meu lugar de fala é da transição de gerações”. Carlos Ramos cita algumas vezes o cantor e compositor Chico Science, olindense, um dos idealizadores do movimento cultural Manguebeat, que revela no manifesto “Caranguejo com Cérebro”, de Fred Zeroquatro, uma imagem símbolo do movimento: uma antena parabólica enfiada na lama.

Diretamente de Recife, mais precisamente de Caranguejo Tabaiares, Sarah Marques se apresenta como essa parabólica. Mulher, negra, mãe, herdou dos pais o apreço pelo trabalho comunitário, que realiza-se na intersecção do fazer político, ora institucional, e sempre na base, junto de seu povo: “aqui, se brinca na lama, mas quando você cresce, vai pra uma entrevista de emprego, vai para a escola, que geralmente não é no seu bairro, essa mesma lama que você gostava de brincar é a lama que quando você chega nesses lugares, as pessoas já falam: ‘Chegou o cheiro de lama! É fulana que mora em Caranguejo!’”. Sarah demonstra que a vida se faz na luta, e a luta territorial acompanha a sobrevivência. Quando se têm um lugar, pode-se dizer que é possível sentir-se livre: “sou do Caranguejo! Prazer! Satisfação! Esse é meu lugar, daqui não saio não!”. Entre Bregas Protesto, formação comunitária de audiovisual, cines e muito debate, surge o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste! que a cada dia descobre novas formas de energizar a luta iniciada pela geração anterior à de Sarah. Falar em resistência com Sarah significa falar dela própria.

Lutas entre as cidades e a floresta, no Brasil e fora dele, resistências que se apresentam muito antes de aqui estarmos. Os povos indígenas que aqui vivem têm na palavra resistência um modo de existência.

Tipuici Manoki, do povo Manoki, vive no noroeste do estado do Mato Grosso, na região da bacia do Rio Juruena, um lugar muito especial, pois o Juruena é considerado o único rio “selvagem” do Brasil, por não ter uma “grande” usina hidrelétrica instalada. Tipuici detalha o modo traiçoeiro com que projetos grandes e pequenos se instalam, e considera que o modo que encontraram de resistir se deve também à saída de alguns jovens para estudar, para entender o universo “branco” e traçar possibilidades junto com seu povo. Seja em contato com as crianças da aldeia ministrando aulas, seja na universidade, seja na escuta atenta dos mais velhos, Tipuici revela em seu discurso a sabedoria de quem está neste lugar do entre: “Nossa resistência é essa, porque nossa forma de ver o mundo é diferente. Acreditamos num modelo de sustentabilidade e de renda mais coletiva, uma divisão justa nos territórios  indígenas, acreditamos que podemos retirar o nosso alimento da nossa terra, os povos indígenas são conhecedores da agroecologia muito antes de usarem este nome”.

Muitas paisagens subjetivas apareceram neste Mosaico. São expressões, linguagens, marcas de existência e modos de resistência. Finalizamos então com arte. Um artista das ruas, do graffiti, que, inspirado pelos OSGEMEOS ainda na adolescência e no skate nos anos 1990, espalha imagens com a técnica realista nos muros e quadros no Brasil e fora dele. Leo DCO nos enviou sua arte na forma de imagens para compor os novos espaços de resistência que, para ele, se revelam a cada dia, a cada situação, a cada obra concluída.

A arte se insere no acontecimento: “Vidas Negras Importam”, grita um de seus quadros. “A arte é e sempre será um canal de resistência na realidade, sobretudo o graffiti, ele age junto com os movimentos sociais e é uma manifestação política. Gosto das minhas obras, a última é sempre a preferida!” Pensamos com Leo DCO no sentido de obra oferecido por Hannah Arendt: “a obra de nossas mãos distintamente do nosso corpo, que produz e literalmente ‘opera em’, fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o: artifício humano”(4). Por onde passamos deixamos algo: as obras são a materialização da nossa ação e do nosso trabalho. Nas obras de Léo, visualizamos a força nesta atividade de fabricação que tem começo, meio e fim. E que cada coisa produzida pelas mãos humanas pode ser também destruída por elas.

Vimos com Amália, Carlos, Sarah, Tipuici e Leo esse movimento de não se deixar fabricar. De resistir ao projeto de mundo que se orienta pela morte, pela destruição e, ao contrário, constituir para si e para seu coletivo espaços de escuta qualificados daqueles e daquelas que construíram o mundo com as suas mãos e, de posse deste mapa, se organizam para renová-lo.

Notas:

1 Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 247.

2 Etienne Soriau. Les diférentes modes de existence. PUF, 2009, p. 106.

3 Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 2014.

4 Hannah Arendt. A condição humana. Forense, 2014, p. 169

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