Por Pedro Obliziner, coletivo Margens Clínicas
A pessoa que sofre uma ação violenta está, no momento no qual a violência ocorre, no ponto mais passivo frente a este acontecimento, com recursos reduzidos para escapar do que lhe acontece e, a partir daquele ato, sua vida se modificará de alguma forma, de formas mais ou menos drásticas. No instante seguinte à violência sofrida, a pessoa começa a retomar as rédeas de sua subjetividade. O primeiro passo para tal ocorre internamente enquanto ela escolhe como pode registrar aquela cena para si própria – o que vai se lembrar, o que vai esquecer, que interpretações dará a cada elemento -, em um segundo passo, ela ganha ainda mais controle sobre o passado quando narra o acontecido para outras pessoas, o que pode se desdobrar em outras ações possíveis, como reivindicações, mobilizações sociais, artísticas e afetivas.
Qualquer um desses passos, contudo, pode ser prejudicado por interditos sociais, bloqueios das narrativas efetuadas por uma moral vigente que é apoiada e apoia violências estruturais, como, por exemplo, as diversas formas que nossa sociedade tem para dizer que pessoas negras que morrem assassinadas pela polícia não devem ser mortes lamentadas pois seriam “bandidos” ou não seriam “pessoas de bem”. Estas formas de negar o que aconteceu interrompem o processo de se tornar ativo em sua própria história, arremessando a pessoa novamente para a posição passiva e subjugada, e, como nós, profissionais de saúde mental, podemos observar, constitui um impedimento para a elaboração do que ocorreu e um ponto decisivo para a instauração de fato traumático na subjetividade daquele sujeito.
É isto que levou o psicanalista húngaro, Sándor Ferenczi, a afirmar em 1931: “o pior é realmente o desmentido, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento” (em Análise de crianças com adultos, ed. Martins Fontes), ou seja, o que cria uma ferida no psiquismo do sujeito não é o ato violento em si, mas uma experiência social na qual a sua narrativa é desautorizada, negando a sua experiência.
Este reconhecimento negado pode se dar em diversas esferas, a) o déficit de reconhecimento pode ocorrer na esfera do amor, com pessoas que estimamos afetivamente, mas que passam a negar este amor frente a algo do qual discordam, vemos isso frequentemente em relações de pais e filhos, quando os pais passam a ver com maus olhos novas formas dos filhos se expressarem, seja em sua expressão de gênero, sexual, escolha profissional, etc.; b) este déficit de reconhecimento por ocorrer numa esfera legal, na qual somos vistos como sujeitos jurídicos detentores de certos direitos, mas, em algum momento, percebemos que uma lei que deveria ser universal é aplicada a um, mas não a outro; c) por fim, o déficit de reconhecimento pode se dar na esfera da coletividade cívica, na qual vemos um ao outro como parte de um todo, uma comunidade, as trocas aqui ocorrem por meio da solidariedade ao meu igual, o que também pode ser negado quando eu passo a dizer que aquele igual não é tão igual assim, que não deveria ser parte da minha coletividade do modo como a vejo.
A situação se agrava conforme mais destas esferas ficam comprometidas, de forma oposta, a preservação do reconhecimento em algumas destas esferas pode servir como alívio para uma violência sofrida em outro âmbito. Se sou expulso da casa dos meus pais por, por exemplo, ser homossexual, sofrerei de maneiras bem distintas se minha nação tiver leis consolidadas me beneficiando – o direito ao casamento com parceiros do mesmo sexo, adoção de crianças etc. – e se o restante da sociedade civil me apoia e não me discrimina do que se eu for expulso da casa dos meus pais e, ainda assim, viver em um país onde a violência heteronormativa for estrutural e pungente.
Estou me embrenhando nessa discussão sobre formas de reconhecimento por dois motivos. O primeiro é para demonstrar que as bases das violências políticas (nome mais amplo que utilizo para me referir a violências estruturais como racismo, transfobia, machismo, assim como diversas categorias de violências de Estado) são violências simbólicas que gerem formas de reconhecimento, mesmo que seja o reconhecimento de quem merece ou não ter acesso a recursos materiais, como saneamento básico. Recentemente, a cantora Elza Soares escreveu uma carta à mãe de Kathlen Romeu que exemplifica bem isto:
“A coisa é mais profunda do que querem nos fazer acreditar. Começa ali na falta de esgoto nas favelas e comunidades, na falta de escolas, de hospitais, de cultura e lazer para nossas crianças. Na criminalização dos ritmos musicais e das manifestações culturais que surgem no morro, como o samba, a capoeira, o funk e tudo que a gente produz. Começa na omissão do poder público na base, na educação dos nossos jovens.”
O segundo motivo é demonstrar que as possibilidades de realização ou irrealização do reconhecimento condicionam nosso sofrimento. Sofremos mais ou menos, ou de uma forma outra, conforme vamos encontrando gramáticas de reconhecimento possíveis, o que exige um trabalho criativo de nossa parte. Dentre estas formas, uma muito potente é o encontro com outras pessoas que sofreram uma experiência similar a sua e que podem, então, se organizar enquanto uma pequena comunidade que passa a difundir a sua narrativa e suas reivindicações. O lema “do luto à luta” que vemos em familiares de pessoas assassinadas pela violência policial exemplifica bem este recurso. Um luto, antes impedido pelas formas de violência do Estado, que passa a ser impulsionado não só pela luta destas mulheres frente às injustiças, mas também pelo acolhimento e companheirismo que vai se formando entre elas.
Deixando de ser indivíduos para se tornar comunidade
A possibilidade de coletivizar – ou aquilombar-se – tem muitas repercussões na história de vida de uma pessoa, um deles é ampliação do horizonte de seu sofrimento. A psicanálise já constata que, no percurso de um tratamento, um passo fundamental é que o sujeito saia da percepção de que sua forma de sofrer é única, criada só para ele – o que Lacan chama de mito individual do neurótico -, para perceber que outros sofrem de maneira parecida. Isto muda a forma de expressão do nosso sofrimento, como falamos sobre ele, o que modifica o próprio sofrimento em si. Alguém pode sair de uma expressão de culpabilização como “não consigo me desenvolver profissionalmente porque sou incompetente” para uma expressão de injustiça social como “eu e outros negros do meu serviço não somos promovidos a cargos superiores por conta do racismo”.
Diferente de um senso comum que vê essa passagem como uma desresponsabilização e conformismo, como se eu não pudesse fazer nada a respeito já que é algo maior do que a minha capacidade, tanto esta mudança de percepção quanto uma necessidade de dar um endereçamento a sua dor pode convidar a pessoa ao engajamento, ao esforço de encontrar estas outras pessoas que sofrem disso e de se mobilizarem. Vemos um exemplo disto novamente na carta de Elza Soares:
“Com o tempo você aprenderá a suportar essa dor, a conviver com ela e com a revolta que ela causa em você e nos seus. Isso fará você cada vez mais forte e mais sedenta por justiça, e essa luta para que a justiça seja feita te dará um novo sentido para viver.
Foi assim comigo. Eu comecei a cantar para salvar meu filho da fome, para dar a ele o que comer, mas aquela batalha eu perdi. A partir dali começou a minha guerra, minha luta por cada uma de nós”
O juntar-se a outras pessoas muitas vezes traz um alívio imediato que é fruto exatamente da mudança de cenário. Se antes a pessoa se via em um deserto árido, onde não encontrava um solo apropriado para sua história germinar, agora ela está em um grupo que a acolhe, entende a sua dor e suas motivações. Isto, contudo, não tem um caráter definitivo, já que logo os limites de atuação do grupo se tornam visíveis, as antigas violências são revividas e novas violências surgem, como podemos ver no alto índice de perseguição e repressão que ativistas sofrem em nosso país. Além disto, o próprio convívio em um coletivo ou organização não está livre de problemas de qualquer forma de socialização humana. Cria-se, no interior do grupo, um circuito próprio de reconhecimento, onde alguns podem se ver mais ou menos contemplados nas dinâmicas de poder ou nas demandas de amor advindas das formas de organização escolhidas, assim como apresentarem diversos níveis de satisfação ou culpa na realização das tarefas.
Ainda assim, o engajamento em grupo, o ativismo, permite a mudança da expressão que damos ao nosso sofrimento, desindividualizando-o e permitindo que ele recupere sua função de estabelecer vínculos sociais com os demais. Ele também vai além, gerando uma força de tensionamento das visões hegemônicas da nossa sociedade, ou seja, o ativismo também quer mudar como os outros membros da nossa comunidade se expressam sobre determinado sofrimento. Enquanto escrevo este texto, no meio de 2021, acontecem diversas manifestações que pautam a crise de saúde que vivemos com o covid-19 como genocídio, apontando as ações, e falta de ações, de diversos setores da nossa sociedade – como lobistas de empresas privadas, a mídia e comunicadores e, principalmente, o governo federal e nosso presidente Jair Bolsonaro – como responsáveis pelas já mais de 500 mil mortes. Atos que se colocam em oposição à narrativa de que seria uma tragédia natural.
Aqui, é importante um referencial de vermos a memória, o que implica aquilo que será transmitida aos outros, como memória coletiva. A memória coletiva envolve uma polifonia, diversas versões de um mesmo acontecimento que podem se chocar em oposição umas com as outras, mas que ainda assim continuam coexistindo, permitindo que as visões sobre um mesmo acontecimento continuem vivas e se modificando, aceitando os incômodos das contradições que existem entre essas diversas narrativas ao invés de ter que causar o silenciamento daquelas que se mostram inoportunas.
Muitas formas de ativismo e militância são resistências a este apagamento, por isso que muitas vezes apenas o ato de um sujeito mostrar que ele existe e ocupa uma posição social de difícil acesso a ele já é uma forma de resistência. As expectativas do ativismo, contudo, vão além da demonstração, buscam ações práticas como melhorias na qualidade de vida, acesso à saúde, educação, outras vezes indenizações financeiras e territoriais pelo que já foi retirado indevidamente.
Ainda que no início do texto, com o apoio de Ferenczi, foi apontado que a origem do adoecimento mental é um processo social de desautorização de uma experiência, os processos de reparação não podem ser apenas simbólicos. É importante frisar que, em investigações clínico-científicas, pode-se constatar que estas ações, para se tornar efetivas, devem combinar efeitos práticos e materiais com rearranjos simbólicos, como explicaremos a seguir.
Tanto o acesso a recursos materiais (indenizações na forma de dinheiro, moradia etc.) quanto de atos simbólicos (demonstrações públicas, mobilizações culturais etc.) podem significar tanto um freio para que a violência cesse quanto uma possibilidade de elaboração do que ocorreu no passado. Contudo, por vezes, estas ações se dão de forma parcial. No início das indenizações financeiras às pessoas violentadas pela ditadura militar, as famílias conquistaram, através de muita luta, ressarcimentos pelo Estado, mas, estas compensações financeiras não vinham acompanhadas de atos simbólicos, o que impedia que a comunidade tivesse conhecimento daquelas histórias, das violências sofridas e de seus efeitos através de gerações. O mesmo ocorre quando há apenas atos simbólicos sem a modificação da estrutura, quando, por exemplo, empresas fazem campanhas publicitárias exaltando a diversidade e tolerância, mas reproduzem internamente as lógicas de exclusão.
Estas lutas são por recursos materiais para a modificação das condições de existência, o que resulta na melhoria imediata da qualidade de vida, mas são também sobretudo lutas por reconhecimento, pois só assim elas podem romper a barreira do individualismo para afetar a coletividade, garantido que algo na sociedade seja reestruturado em direção a um futuro diferente.
Neste texto, então, vimos como diversos elementos envolvidos na mobilização social modificam nossas narrativas de sofrimento, transformando um adoecimento individual e alienado em possibilidade de comunhão e/ou disputa social. Um segundo texto fará outra análise de funcionamentos psíquicos envolvidos no ativismo, desta vez no ato de amparar pessoas violentadas e escutar suas histórias.