De acordo com dados divulgados pelo Instituto Datafolha em 2020, pessoas negras e mulheres representam a maior parte dos cristãos brasileiros. Enquanto o público feminino corresponde a 58% dos frequentadores de Igrejas evangélicas e a 51% dos fiéis católicos, pretos e pardos respondem por 59% e 55%, respectivamente. As demandas específicas de ambos os recortes estão associadas às lutas históricas do cristianismo e encontram representatividade em movimentos feministas de caráter cristão.
Fundada no dia 8 de março de 1993, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) surgiu em um contexto de ampla realização de conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) na América Latina, em que eram evidenciadas questões relativas às mulheres negras, pessoas com deficiência, crianças, idosos e pessoas LGBTQUIA+.
“Venho de uma família totalmente católica e tive uma ligação direta com a Igreja através das pastorais de juventude e das Comunidades Eclesiais de Base. Descobri sobre as Católicas na universidade, onde pesquisava sobre mulheres no catolicismo. Me chamaram muita atenção os discursos subversivos desse grupo, que iam de encontro ao que eu questionava na Igreja, como a submissão das mulheres na instituição”, comenta Letícia Rocha, graduada e mestra em Ciências da Religião e integrante da equipe das Católicas há cerca de três anos.
Voltada para a luta antirracista com uma abordagem interseccional, a CDD é reconhecida por instigar o debate da justiça reprodutiva dentro da Igreja. Dentre as principais bandeiras encampadas pelo movimento social estão tanto a luta pelo direito à maternidade desejada e segura para a mulher quanto pela possibilidade de escolha da não-maternidade.
De acordo com Rocha, certos fundamentos da tradição católica cedem espaço para uma reflexão aberta sobre o direito ao aborto. “Não houve um único pensamento sobre o aborto na história dessa Igreja milenar, que nunca teve clareza em confirmar essa questão do aborto como algo inadmissível e pecaminoso. É importante dizer que o aborto não é uma questão de dogma, mas uma matéria disciplinar que a Igreja assume como discussão”, prossegue.
Ela lembra que o aborto só passa a ser deliberadamente repudiado pela Igreja no século XIX, durante o papado de Pio IX. “Isso é relativamente novo e coincidentemente acontece em um período em que a igreja clama o dogma da Imaculada Conceição e no qual ocorre a revolução industrial. Nele, as mulheres começam, em certa medida, a sair de casa e trabalhar. Então, esse dogma vem para dizer qual é o lugar da mulher, que a maternidade, a procriação, estar em casa e cuidar dos filhos é importante”, explica.
Em 2012, a CNBB chegou a publicar uma nota desaprovando as posturas adotadas pela CDD. No posicionamento, a organização diz que “o grupo tem defendido publicamente o aborto e distorcido o ensinamento católico sobre o respeito e a proteção devidos à vida do nascituro indefeso; é contrário a muitos ensinamentos do Magistério da Igreja; não é uma organização católica e não fala pela Igreja Católica”.
A cientista da religião frisa que a Igreja sempre teve uma tendência de rechaçar o feminismo. “A gente recebe esse tipo de coisa, estamos cientes da nossa luta, do nosso papel na sociedade e nós seguimos. Esse tipo de repúdio já aconteceu e pode acontecer, no entanto, estamos firmes naquilo que acreditamos e do que podemos fazer na sociedade. Nota de repúdio não muda nossa luta”, acrescenta.
A Rede de Mulheres Negras Evangélicas é outro movimento social que incorpora a agenda feminista em seu cotidiano. O movimento surgiu em 2018, durante o Primeiro Encontro de Negras Cristãs, realizado pelo Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, no Recife, em torno do tema “Resistência, Espiritualidade e Incidência Pública”.
“Hoje a organização tem repercussão nacional, com representação nas cinco regiões do Brasil e mais de 110 mulheres inscritas. Temos esse propósito de ser um espaço da sociedade civil, em defesa dos direitos humanos e das mulheres, com esse olhar especial para as mulheres negras”, contextualiza Vanessa Barboza, coordenadora executiva da Rede e integrante do Movimento Negro Evangélico.
Vanessa considera que a atuação política da Rede é um desafio narrativo e historicamente posto, que encontra resistência mesmo quando tenta penetrar espaços políticos ditos progressistas. “As pautas racial, das mulheres e da diversidade acabam encontrando um lugar de ‘desprioridade’ de urgência de suas respostas a demandas, que são históricas. São reflexos das relações sociais de maneira geral, que acabam se refletindo no meio evangélico mais fundamentalista, com um discurso de ódio mais marcado, e também entre nossos ditos pares, no sentido de existir uma indiferença ou não reconhecimento da prioridade do que está sendo colocado”, crítica.
A coordenadora da Rede lembra que o racismo e o machismo são estruturais na sociedade brasileira e, portanto, presentes em todos os espaços políticos que nela estão inseridos. “A gente pode pensar que em alguns espaços temos rigidez e refreamento dessas estruturas mais ou menos possíveis para cada grupo. A mudança social é possível porque os seres humanos são capazes de mudar e acho que é nessa esperança de mudança e igualdade que a Rede de Mulheres Negras e o Movimento Negro Evangélico caminham. São movimentos progressistas que têm esse intuito de dizer o que parece óbvio: todas as pessoas merecem viver plenamente sua dignidade humana”, conclui.