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Maria Tereza Viana de Freitas Corujo (Teca)

O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Leia a reflexão de Teca

Ambientalista

O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: transformaação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

PERTENCIMENTO

Sou uma ambientalista que atua em defesa de lugares de Minas Gerais que estão ameaçados ou já impactados por mineração. Comecei num movimento, em 2001, o SOS Serra da Piedade, que é onde eu tenho meu pertencimento. Eu vivia no sopé daquela serra, como artesã de brinquedos educativos, uma vida toda alternativa, indo de 15 em 15 dias à cidade, tudo construído na busca de um novo jeito de ser e de viver. Em 2001, numa audiência pública em Caeté (MG), eu, que não tinha a menor noção do que era mineração, cheguei à constatação: “Como assim? Este lugar aqui é tão especial. Como querem minerar esta serra e destruí-la?” Nestes anos todos, minha atuação se dá, além do SOS Serra da Piedade, no Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela e no Movimento pelas Serras e Águas de Minas (Movsam), que é uma articulação de vários grupos. Participo também da Articulação Popular São Francisco Vivo e da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale.

GANDARELA 

O Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela tem uma luta árdua, de grande magnitude. Gandarela é a última serra onde a Vale tem um filão de minério e de água gigantesco. Ali a Vale está tentando desde 2007 implantar o projeto da mina Apollo, onde poderia centralizar todo seu staff e suas operações em Minas Gerais, e não desistiu disso. Tem sido uma longa história. Lutamos pela implantação de um parque nacional, e tentaram engavetar. Em 2014, foi criada a unidade de conservação, mas que deixou de fora o lugar em que a Vale quer fazer a mina. Em 2019, vimos o sinal de que a Vale está preparando uma próxima tentativa. Para o abastecimento de Belo Horizonte, com a perda do rio Paraopeba [por conta do crime da Vale em Brumadinho], cada vez mais a Serra do Gandarela adquire um valor fundamental. Trata-se da última grande fonte de água do território. O aquífero gigantesco da Serra do Gandarela, por si só, já era para estar livre de ameaça. Infelizmente, neste cenário atual, os atores que deveriam fazer o que tem de ser feito só continuam atuando em prol da atividade privada da mineração.

SURPRESA 

A gente não compartilha estratégias, porque a gente sabe que nossos inimigos estão sempre atentos e adoram ficar mapeando o que a gente faz. Eles devem ficar surpresos em ver como nós conseguimos fazer tanta coisa. Pois as empresas têm tudo na mão: salvo exceções, elas têm prefeituras, câmaras, governos estaduais, governo federal, os sistemas de gestão, o judiciário, a mídia. Para elas, nós devemos ser sempre um ponto de interrogação: como conseguem tanto, se nós dominamos tudo? 

SEM CARTILHA 

Não existe formato (de atuação] – e isso eu acho maravilhoso. Porque quanto menos houver formato estabelecido, mais difícil fica para que eles possam nos mapear. A gente avalia o momento, vê o que dá para fazer, divide quem pode fazer o quê, como pode, quando pode, da forma que pode etc. Eu vi ao longo desses anos muitas iniciativas se perderem em suas trajetórias porque escolheram formatos mais arrumadinhos. No nosso caso, não há uma cartilha, e as lógicas variam de ações ligadas à visibilidade e à mobilização até ações de caráter jurídico ou técnico. Sempre tem gente técnica nos movimentos, que não têm tempo de ir para a rua, mas que ajuda com a fundamentação.

PERSPECTIVA

Quando se conhece como essa ameaça opera, quais são seus objetivos, onde ela quer chegar, quais são os seus alicerces, a gente vai percebendo que a mineração éinconciliável. Em nenhum momento, até hoje, conheci alguma proposta de mineração conciliável com o desejo de os lugares não serem impactados. Ser “contra” a mineração não é uma bandeira que se adotou por questões ideológicas, no sentido puro. É porque a atividade minerária não tem nada a ver com outras perspectivas de geração de prosperidade e de paz. A idéia de “tempo” para a mineração é o aqui-e-agora, o lucro máximo já, não importa o quê. A nossa perspectiva é a do pertencimento ao ambiente e à paisagem, aos nossos estilos de vida, aos nossos sonhos de futuro.

BEM COMUM 

Minerar é tão impactante que deveria ser baseado em outras premissas. Estou indo além da idéia de “soberania nacional”. Para mim, mexer no meio ambiente ou no subsolo com atividade de mineração teria de ocorrer apenas e absolutamente quando fosse necessário para o bem comum. A quantidade e diversidade de impactos no ar, no solo, na água, na paisagem, na saúde é tão alta que se deveria extrair só o estritamente necessário do bem mineral, de maneira que cause o menor impacto, e reaproveitando tudo de modo a que nunca mais seja preciso mexer de novo naquilo. Nada a ver com a economia, mas com o impacto nas pessoas e no ambiente. É o que deveria estar sendo feito.

PARAR TUDO 

Agora estamos aí com essa crueldade da questão das barragens. Como é que se pode cogitar, depois do que aconteceu em Mariana e depois do que aconteceu em Brumadinho, que as minerações continuem sendo licenciadas a rodo, quando a primeira coisa que tinha de ser feita, a nosso ver, era parar tudo? Aqui no Quadrilátero Ferrífero [1] há mais de 200 barragens, cuja noção de estabilidade perdeu qualquer sentido, porque as duas últimas que romperam não tinham estabilidade garantida. Parar isso já teria que ter acontecido de imediato. Uma tragédia da proporção desses dois crimes exigiria uma mudança imediata de atitude. Essa é uma transformação para a qual valeria a duras penas batalhar. Não poderia haver mais nenhuma barragem operando, e não só aquelas que estão a montante, qualquer uma. Resumo da ópera: a qualquer momento podem acontecer novas tragédias, e maiores.

[1] Quadrilátero Ferrífero é a região mineral existente no entorno de Belo Horizonte. O território de cerca de 7 mil quilômetros quadrados abrange 27 municípios e concentra a maior parte das jazidas e lavras de minério de ferro de Minas Gerais.

ALTERNATIVAS

Num nível mais profundo, a transformação que nos move é saber que há outras formas [de viver]. Não é verdade que nós precisamos de uma economia baseada em exportação de commodities; não é verdade que estamos melhores, prósperos ou desenvolvidos por causa da mineração. É só olhar à nossa volta, há números e dados. Sabe-se que os municípios que têm sua economia baseada em mineração não são lugares com qualidade de vida, onde as pessoas estão felizes. Ao contrário. Há uma grande falácia, um grande marketing e muita mentira sobre a “importância da mineração”. Esses territórios, onde a mineração diz ter chegado como se antes não houvesse nada, tinham outras perspectivas. Nós temos alternativas mil para, nesses lugares, termos uma divisão de renda mais justa.

DOR 

Eu estava em Caeté, e quando meu irmão disse: “Teca, rompeu uma barragem em Mariana”, caí num choro convulsivo. Porque, quando você luta muitos anos sabendo do monstro com que você está lidando e de tudo o que ele pode causar, quando acontece aquilo contra o qual você lutou tanto, você não tem palavras para descrever a sensação – porque não precisava ter acontecido! A gente falou, a gente disse, a gente sabia. Quando você tem esse cenário, a dor é gigantesca. Não é só a dor da perda do rio, do sofrimento, da dor das pessoas. É a dor de se ter a certeza absoluta de que aquilo não era para ter acontecido!

BRUMADINHO 

No caso de Brumadinho, já vínhamos acompanhando há anos que a a Vale não cumpria as condicionantes. Nós conhecíamos a verdadeira face daquele complexo, e nesse caso, tentamos tudo o que se podia para evitar aquelas licenças. Nós não sabíamos que a barragem estava com problema, pois o tempo inteiro tanto a Vale como o Estado afirmavam que havia um ótimo controle. Mas nós tínhamos certeza de que ali havia coisas mal resolvidas. Sabíamos que a continuidade daquele complexo teria de ser avaliada de uma forma sistêmica e muito mais embasada. No dia 11 de dezembro de 2018, [2] numa reunião com muita gente da comunidade – do lado de lá, o empreendedor atestando que estava tudo perfeito e incrível, desconstruindo e dando respostas esfarrapadas ao que a gente alegava – , houve votação e foram dadas as três licenças de uma vez. O que fez ficar sem chão a turma de lá, porque era tão surreal que tanta coisa errada fosse licenciada. Quando você sabe tudo o que o prefeito podia ter feito e não fez, tudo o que o Estado podia ter feito e não fez, então se tem a certeza absoluta de que aquelas pessoas não precisavam ter morrido. É muito duro.

[2] Pouco mais de um mês depois, em 25 de janeiro de 2019, a barragem do complexo se rompe em Brumadinho.

CRUELDADE É surreal. É irracional. Existe um sistema incrustado, tipo um câncer maligno. O pessoal de Casa Branca (Brumadinho), anos atrás, cunhou o slogan: “Mineração, um câncer no seio das Gerais”. As raízes desse sistema são tão fortes que nada mudou. Num primeiro momento depois das tragédias, o sistema se recolheu, mas agora já está de novo em ação. A Vale consegue aproveitar até momentos cruéis como este. Agora percebeu que a legislação permite que obras emergenciais sejam feitas sem nenhuma licença, só com a apresentação de aspectos técnicos. É maquiavélico. Enquanto nas minas de Brucutu (Barão de Cocais) e Cauê (Itabira), onde havia liminar para parar as operações na justiça, a Vale usou seu séquito de advogados e laudos para provar que poderia voltar a operar, em Barão de Cocais Sul-Superior e em Macacos (Nova Lima), ao contrário, fez questão de pagar multas altíssimas e descumprir os prazos para manter a situação em ponto de interrogação sobre a estabilidade das barragens. Quando a gente começa a observar isso, dizemos: “tem coisa aí!”. Por que em Gongo Soco (Barão de Cocais) ela está deixando a situação assim, e ela mesma é quem comunica a Agência Nacional de Mineração de que o talude estava se movendo (mentira, ela sabia desde 2012) e concatena tudo, dizendo que a barragem iria romper, definindo inclusive a data de rompimento, e depois entra naqueles dias com uma ação de tutela antecipada para poder fazer uma obra que está arregaçando a vila de André do Mato Dentro (Caeté)? Eu não tenho dúvida de que a Vale planejou tudo, tanto é que ela já tinha contratado o que precisava para fazer a obra e planejou o dia de comunicar que a barragem iria romper – uma coisa de uma crueldade gigantesca.

PPT 

Eu tenho uma apresentação de powerpoint feita pela Vale quando quis licenciar uma megabarragem em Nova Lima (na zona de inundação alguns dos moradores tinham apenas 9 segundos para se salvar; mesmo assim a barragem foi licenciada em 2016, um ano depois do rompimento da Samarco em Mariana). Nessa apresentação sobre o programa de emergência em caso de rompimento aparece lá: “Construindo comunidades mais resilientes”. Com esse título. Ora, o que estão fazendo nos territórios por causa das barragens é treinando a população para se tornar mais “resiliente”. O sentido é: “Eu vou continuar operando, vou continuar numa boa, vocês que se acostumem.”

MÁSCARA 

Infelizmente essas tragédias podem ser uma mola propulsora, no sentido de mostrar a verdadeira face da mineração. Com esses crimes que aconteceram, mesmo que as pessoas ainda estejam subjugadas, percebe-se que a caixa-preta da mineração está se abrindo. Infelizmente às custas de muita crueldade, está caindo a máscara de uma atividade econômica que sempre ocultou a mentira do que significava.

LUTA CONTÍNUA 

Aí eu pergunto; puxa vida, esta luta nunca termina? A gente não tem de ter a expectativa de que vai terminar amanhã. A escravidão econômica, a escravidão de poder, uma contaminação de todos os espaços, nos domina desde a época em que chegaram os bandeirantes neste território abençoado de lindo, com milhões de indígenas, perfeito intacto, belíssimo. Quando se avalia como foi a luta contra a escravidão, contra a inquisição, a história da humanidade, as transformações de modelos postos como paradigmas consolidados – por mais que fossem violentos e cruéis, e talvez por isso mesmo —, vemos que essas transformações são lentas, demoradas e sofridas.

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