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Marchas longas: movimento, percurso e destino

Cássio Martinho e Mikael Peric O deslocamento das pessoas pelo espaço, numa jornada de longa duração, produz forte impacto político e simbólico, como demonstra a história dos movimentos civis e das lutas não-violentas

O deslocamento das pessoas pelo espaço, numa jornada de longa duração, produz forte impacto político e simbólico, como demonstra a história dos movimentos civis e das lutas não-violentas

Cássio Martinho e Mikael Peric

Marcha do Sal, Índia (1930)

Atravessar um território tem sido, desde sempre, uma ação tão potencialmente revolucionária quanto ocupar um território. A história está repleta de exemplos de êxodos, diásporas, cruzadas, marchas – de fuga ou enfrentamento, de ataque ou defesa – de povos, grupos ou agentes em conflito. Muitas vezes atravessar o território se dá em razão de uma ocupação (uma expedição de conquista ou uma fuga em massa, por exemplo), quando o próprio território é o objeto da disputa; outras vezes ocorre em função de motivos econômicos e sociais, como no fenômeno da imigração; ou sob a orientação de uma ideia ou propósito (religioso, social ou político), como nas peregrinações, romarias e manifestações. Com frequência, diferentes motivações se combinam para produzir esses deslocamentos.

Atravessar o território constitui também uma tática política. Caravanas (ou expedições) e longas marchas são os casos mais ilustrativos. Ambas têm como características estruturais a travessia do espaço geográfico e a decorrente longa duração da ação. Como o deslocamento no território é físico e implica, mesmo, romper as distâncias com o uso do corpo, o seu tempo de duração pode ser bastante longo. Nas caravanas e grandes marchas, o percurso demorado também é feito de paradas (pequenas ocupações ad hoc) – onde há descanso, ação e interação – e, por isso, o espaço não é só um recurso, uma utilidade ou ferramenta para a tática, mas a condição de sua existência política. Caravanas e grandes marchas são ambas táticas do espaço e para o espaço.[1]

1 As manifestações de rua são outro exemplo da travessia política dos espaços, embora ocorram em geral no ambiente restrito das áreas centrais das cidades e, por isso, não se encaixem bem nessa categoria analítica.

Embora grandes deslocamentos ou êxodos [2] devam ser tratados sempre como fenômenos políticos, aqui caravanas e longas marchas são entendidas como táticas políticas na medida em que se constituem desde a origem com esse duplo caráter explícito: são políticas porque têm fins políticos; são táticas porque sãomeios para esses fins. Tais são os casos da Marcha do Sal, na Índia de 1930, que tem Mohandas K. Gandhi como idealizador; a caminhada de Selma a Montgomery, nos EUA, que marca uma inflexão no movimento pelos direitos civis de afrodescendentes nos EUA na década de 60; as marchas zapatistas no México em 2001 e 2012; as marchas nacionais do MST no Brasil; entre outras iniciativas em todo o mundo.

2 Os casos são abundantes: desde os percursos bíblicos à Terra Prometida até as colunas de imigrantes percorrendo a Europa ou a América Central no século 21, passando pela diáspora africana e um sem-número de fugas e migrações forçadas. 

As marchas longas são manifestações especialmente emblemáticas desse atravessamento político dos espaços. Enquanto as caravanas podem manter sua constituição inalterada durante a jornada (com o mesmo grupo de pessoas, por exemplo, se deslocando sem ganhar necessariamente novos integrantes), as grandes marchas vão se encorpando e tornando-se mais volumosas à medida em que percorrem um território. Elas se nutrem da passagem pelos lugares, alteram profundamente a paisagem social ao convocar os habitantes a seguir junto e, assim, transformam os lugares enquanto são transformadas por eles.

As marchas longas são, ainda, uma plataforma de táticas; elas incorporam todo um conjunto de métodos de ação em seu percurso. Merecem, portanto, um exame mais minucioso.

APROXIMANDO O OLHAR

Como em todo ato demonstrativo, o efeito simbólico é componente essencial da tática da marcha longa. Ela tanto será mais efetiva quanto mais inteligível, forte e compartilhável for a mensagem da qual é portadora, e tanto mais transformadora quanto mais conseguir exprimir essa mensagem por meio de sua própria forma. Nesse sentido, as marchas longas possuem uma alta capacidade discursiva, que é potencializada pelo seu caráter espetacular e extraordinário.

São pelo menos cinco os principais elementos estruturais ou técnicos da tática, que ostentam forte estatuto simbólico, a saber: o ponto de partidao contingente de pessoas que se move, a distância a ser vencida, o percurso e, finalmente, o destino ou ponto de chegada. A eles, se junta outro componente de caráter político: a causa que a marcha defende e os objetivos ou metas almejados. Esse mix de fatores compõe o discurso político da tática.

PARTIDA E DESTINO

Nesse conjunto, o destino parece ser o componente mais expressivo. Ele manifesta, na sua condição de fim da marcha, especificamente, os fins do ato. Muitas vezes o ponto de chegada, em marchas de protesto, é o lugar onde se decide o futuro da luta, o lugar do poder, isto é, o lugar a partir do qual pode se desenhar a mudança. Desse modo, a Marcha Nacional dos Sem-Terra, [3] de 1997, tinha como destino a capital do país, Brasília, sede do governo central, arena da deliberação política sobre a reforma agrária. No caso da gandhiana Marcha do Sal, que se constituía também como um exercício de ação direta, era preciso chegar ao mar (seu destino) para ocupar as salinas, assumir a manufatura do sal e se apropriar da riqueza pretendida.

3 A Marcha Nacional dos Sem-Terra por Emprego, Justiça e Reforma Agrária, do MST, foi iniciada no dia 17 de fevereiro de 1997, com o objetivo de chegar em Brasília no dia 17 de abril, quando se completou um ano do massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará. Cerca de 1.500 sem-terra partiram de três pontos diferentes do país – São Paulo (SP), Governador Valadares (MG) e Rondonópolis (MT). Cada coluna percorreu aproximadamente mil quilômetros, atravessando diferentes cidades e vilas, em um percurso que durou dois meses. Cerca de 100 mil pessoas aguardaram em Brasília a chegada da Marcha, que exigia o debate sobre a reforma agrária e a punição dos responsáveis pelo massacre de Eldorado dos Carajás. A data passou daquele ano em diante a celebrar o Dia Internacional de Luta Camponesa.

Pontos de partida também são simbolicamente importantes nas marchas longas. A escolha de Selma para o início da célebre marcha dos direitos civis, [4] por exemplo, expressa uma situação e uma aspiração política que contribui para o entendimento completo da ação realizada. Os pontos de partida podem ter papel semelhante ao dos destinos especialmente em determinados casos, quando, depois de atingido o final do percurso, o contingente que se move retorna. Nesse momento, a marcha põe em cena uma dialética da partida e da chegada que reconstrói o significado dos lugares. É aí, de novo, que a tática encontra o seu sentido. O exemplo dos sem-terra e dos zapatistas é emblemático dessa dialética: eles percorrem longas distâncias até a capital do país, para em seguida regressar aos lugares que são (ou pretendem) seus. O movimento Ekta Parishad, da Índia, também constrói suas marchas nesta dialética. Todo o exercício do percurso é uma afirmação do seu pertencimento a um lugar, logo, uma afirmação do lugar. Eles vão para dizer que ficam.

4 Marcha de Selma até Montgomery, no Alabama, foi conduzida por Martin Luther King Jr. e outros líderes da época. Em março de 1965, os manifestantes levaram cinco dias até à entrada de Montgomery, Por fim, ao menos 25 mil manifestantes caminharam juntos até o Capitólio, sede do governo estadual. A Marcha tornou-se um ícone do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e no mundo.

Chegar ao destino, contudo, não é fundamentalmente o elemento definidor da tática. A marcha é uma saga, uma história contada ao longo de um percurso. É um processo vivo, atraente, que desperta a curiosidade enquanto gera, sustenta e amplia uma expectativa. Seu clímax e desfecho imprevisíveis vão dar peso ao caminhar. A marcha pode estar envolvida em suspense, em tensão, em drama, na incerteza de seu desenrolar. Uma vez que a dúvida quanto ao sucesso da jornada pode potencialmente engajar e mobilizar, a marcha mexe com a esperança de quem a acompanha.

Acampamento da Marcha do Sal em Kapadwanj, Índia (1930). Entre as participantes, Gandhi

No caso da Marcha do Sal, [5] o elemento decisivo consistia na ação de desobediência civil – pegar e fazer o sal era um ato contrário ao SaltAct, a lei do império britânico de 1882 –, enquanto que a marcha de Selma para Montgomery era ela mesma o seu o próprio fim. A questão central desta última consistia justamente em verificar se ela aconteceria ou não. Qualquer ato final passou a ser menos relevante do que o simples fato de a marcha existir. A permissão dada ao movimento por direitos civis de seguir em caminhada prefigurava a construção de um país plural. Ao se dar espaço para o movimento negro ocupar a rodovia, dava-se espaço, também, para toda a população negra ocupar sua cidadania e sua nação. Por sua vez, na Índia, a Marcha do Sal consistiu num mecanismo magnético do ponto de vista físico, uma vez que esta crescia no percurso, tensionava a atmosfera política ao mesmo tempo que mantinha presa a atenção dos espectadores, curiosos pelo seu desfecho. Será que eles vão conseguir? Será que serão presos antes? Será que é possível desafiar o império a este ponto? Neste sentido, tudo indica que a maior potência da tática da marcha longa, portanto, se realiza no próprio percurso, como se verá adiante.

5 A Marcha do Sal, também conhecida como Marcha para Dandi, ou SaltSatyagraha, talvez seja a marcha longa mais famosa da história. Começou com cerca de oitenta pessoas, percorreu quase 400 km, passou por quatro distritos e 48 vilas e culminou em seu grande ato, 24 dias depois do seu início, sob o apoio presencial de dezenas de milhares de pessoas. Tendo partido no dia 12 de março de 1930 de Sabarmati Ashram, onde vivia Gandhi, a marcha chegou a Dandi no dia 5 de abril. No dia seguinte aconteceu, então, o ato de desobediência civil. Às 6h30, Gandhi, acompanhado de seus seguidores, desobedeceu as leis britânicas de controle e monopólio de produção do sal. Ele chegou ao mar, escavou com as mãos um pedaço de lama e a levou para as águas ferventes onde faria seu próprio sal. A repercussão deste ato simbólico testemunhado por milhares de indianos e correspondentes internacionais disparou inúmeros protestos não violentos por todo o país, transformando para sempre a conjuntura política da Índia. 

AQUELES QUE SE MOVEM

Não é à toa que se usa a palavra “movimento” para designar o próprio fenômeno da luta social. A luta social movimenta quem dela participa, movimenta quem com ela se relaciona e movimenta, também, a causa que nela se realiza. Assim, a marcha longa pode ser a metáfora paradigmática desta luta. Os atores que promovem e executam a marcha, eles próprios estão em movimento.

O contingente que se move constitui a matéria prima para que o efeito político da tática se realize e seus objetivos sejam alcançados. Neste particular, é preciso que haja multidão. Marchas minguadas, com fileiras esparsas de poucos participantes, não dão conta de sua pretensão. Uma marcha longa é, sem dúvida, por suas características, uma demonstração de força.

A distância (a ser) percorrida e o que ela subentende de esforço e organização conferem a grandeza que o efeito político da tática exige. Realizar uma marcha longa é realizar um grande feito. Caminha-se muito, debaixo de sol e de chuva, o que demonstra um profundo compromisso com uma causa ou questão específica. O poder da entrega a uma façanha árdua e desgastante é algo que atrai a atenção e potencialmente pode mobilizar e engajar outras pessoas cujos interesses estejam envolvidos com a ação de quem caminha.

Como disse Rajagopal Puthan Veetil durante a marcha Jan Satyagraha [6] de 2012: “Quando suamos sob o sol, quando a terra e o céu estão queimando, quando nós caminhamos, suando sob o calor do sol, isto é sacrifício. Quando dormimos nas ruas, isto é sacrifício. Quando comemos uma vez só ao dia, isto é sacrifício”. Conclui ele: “Então, porque nós estamos fazendo este sacrifício? Para que possamos derreter o coração deles”. [7]

6 Promovida pelo movimento Ekta Parishad, um dos herdeiros do pensamento e da prática gandhiana, a marcha Jan Satyagraha, (“marcha por justiça” ou “compromisso com a verdade”), foi parte de uma campanha pelo direito e acesso à terra e aconteceu em outubro de 2012. Tendo como distância prevista os cerca de 350 quilômetros entre as cidades de Gwalior e Delhi, capital da Índia, a marcha teria duração de 27 dias. Com um trabalho prévio de mobilização e preparo, um conjunto de demandas foi apresentado e discutido com o Ministro do Desenvolvimento Rural da Índia pelo menos seis meses antes do início da caminhada. No dia 2 de outubro, aniversário de Gandhi, a marcha teve início, Pouco mais de uma semana depois, caminhando cerca de 12 quilômetros por dia, a marcha chegou em Agra, onde então foi anunciado um acordo com o governo, garantindo a formulação da Política Nacional de Reforma Agrária, a implementação de leis relativas ao direito à terra e a imediata instauração de uma Força Tarefa para implementação da agenda acordada.

7 Tradução livre. Esta fala foi feita durante a marcha e está registrada no filme MillionscanWalk, de Christoph Schaub e Kamal Musale, produzido na Suíça em 2013.

Ao se colocarem em condição tão exigente e difícil, aqueles que marcham apresentam para o mundo a importância da sua luta, o tamanho da sua necessidade, da sua implicação e, também, da sua exclusão; o tamanho da negligência de quem está no poder. A disponibilidade de se colocar sob tais condições é um elemento que traz força para as marchas e, conforme os dias passam, conforme avançam os passos, maior o sacrifício e, assim, maior a força intrínseca da tática, maior o seu momentum.

A pesquisadora Christine de Alencar Chaves, em um estudo sobre o MST, afirmava que a marcha realizada pelos sem-terra em 1997 “percorreu mais que estradas: atravessou um solo moral”. [8] Para além disso, pode-se dizer que a marcha – e reside justamente aí seu poder simbólico e político –, ao se estender pelo território, crioupropriamente esse “solo moral”. A marcha, quando passa, deixa como rastro esse sentido novo para o território, que pode se tornar lendário e receber peregrinações de outros caminhantes mais tarde. [9]

8 Christine de Alencar Chaves. A Marcha Nacional dos Sem-terra: estudo de um ritual político. Publicado em: O dito e o feito – Ensaios de antropologia dos rituais. Relume Dumará, 2001, p. 135.

9 Tanto a rota de Selma a Montgomery, no Alabama, como o trajeto entre Sabarmati Ashram e Dandi, na Índia, receberam reconhecimentos formais. Esses percursos costumam ser refeitos por turistas e ativistas que buscam ver de perto a história da luta não violenta no mundo. Livros já foram escritos sobre esses caminhos. Espaços por onde algumas dessas grandes marchas passaram foram ressignificados completamente, tornando-se símbolos de resistência e transformação.

O longo percurso produz ainda grande efeito sobre quem se move. Aqueles que caminham assumem uma tarefa de grande esforço físico que envolve dificuldades de resistência e cuidado com o próprio corpo. Esse esforço pode se tornar um profundo exercício de auto-conhecimento, de teste dos próprios limites, de convicções e de entrega por algo maior do que o próprio indivíduo. As marchas acabam também por se tornar um intervalo de tempo ocupado pela reflexão sobre a vida em geral, a relação com a família, com o próximo, com o espaço e com as suas próprias necessidades. A marcha se torna, assim, uma experiência profundamente transformadora para quem a experimenta e nela vive a própria vida de maneira simples, colaborativa, integrada. A troca de experiências e de vivências com outros caminhantes, bem como as populações dos lugares por onde se passa, acabam sendo oportunidades únicas de se aprender sobre a situação das pessoas e suas formas de resistir. A criação de vínculos de afeto, de apoio e de cuidado, além de essencial para a manutenção da marcha, fortalece valores e altera comportamentos e práticas individuais.

PERCURSO

A conhecida máxima de um poeta que afirma que o caminho se faz ao caminhar se aplica, com precisão, à tática das marchas longas. No percurso, os ativistas acionam outras táticas de luta – passeatas, atos públicos, rodas de conversa e debates, apropriação simbólica dos muros e das paredes, ações diretas – e, assim, criam um processo vivo e dinâmico de participação coletiva.

A marcha longa cria um ambiente propício para o diálogo e para a atração de novos participantes e apoiadores. Por onde se passa é possível conversar diretamente com o público, explicar o que se está fazendo e o que se pretende. É assim que muitas marchas longas ampliam seu tamanho no caminho e, desta maneira, aumentam também a pressão sobre seus oponentes.

Para aqueles que, por diferentes razões, optam por não se juntar à massa que percorre cidades e vilas, existe ainda um conjunto de tarefas de organização e logística que são essenciais para o sucesso da tática. Não é incomum ver a solidariedade aos manifestantes se transformar em apoio logístico, com o vem e vai de pessoas que trazem alimentos, água, remédios, roupas e itens de higiene pessoal. A rede que se forma entre as populações locais e a marcha auxilia na manutenção desta, ao mesmo tempo em que reforça e deixa mais poderosa a mobilização em torno da causa.

Gandhi, quando realizou a Marcha do Sal, mandava à sua frente, para que chegassem antes às vilas e cidades, batedores que preparavam o território e as populações para a passagem da marcha, concebendo e realizando espaços de diálogo e troca entre o líder religioso e a população indiana interessada.

A Marcha Nacional dos Sem-Terra por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, realizada pelo MST em 1997, recorreu a um planejamento semelhante, que incluía três elementos básicos: a entrada das fileiras da marcha, a realização de atos públicos e a montagem de acampamento provisório. “Em cada vilarejo ou cidade que os caminhantes atravessaram, na passagem das fileiras da Marcha pelas vias públicas e no ato principal, quando se pretendia reunir população e marchantes, a razão de ser da peregrinação era exposta através de palavras de ordem, hinos, representações teatrais e discursos inflamados. Junto com as manifestações públicas, reuniões eram feitas em escolas, faculdades, câmaras municipais, sindicatos e igrejas com a finalidade de dar ressonância à passagem da Marcha Nacional e à mensagem que ela pretendia veicular.” [10] Aqui, também, chama a atenção o paralelo entre os acampamentos provisórios da marcha e a tática dos acampamentos tipicamente realizada pelo MST em suas ocupações, um exemplo de ato demonstrativo didático do que vem a ser o dia-a-dia de luta do próprio movimento.

10 Christine de Alencar Chaves, 2001, p. 13.

Impressiona igualmente o grau de organização coletiva e disciplina presente nas marchas dos zapatistas no México. A performance dos integrantes da Marcha Silenciosa zapatista de 2012 [11] – e seu decorrente impacto midiático – é a demonstração do poder simbólico e político de um movimento organizado. Representantes dos diversos povos de Chiapas – tzeltales, tzotziles, choles, tojolabales, mames e zoques – percorreram vigorosamente as ruas de vilarejos e cidades, todos igualmente cobertos por pasa-montañasidentificados conforme o local de origem e, todos, em um silêncio completo e perturbador. As colunas e fileiras performam claramente uma tomada do espaço– os zapatistas, apesar do caráter temporário do ato, ocupam de fatoas cidades, e demonstram, por meio da cena construída e da experiência vivida, a força política de um exercício concreto de contrapoder. Os registros em vídeo da Marcha falam por si.[12]

11 Em 21 de dezembro de 2012, 20 mil zapatistas marcharam até o centro de San Cristóbal de las Casas; 8 mil fizeram o mesmo em Palenque; 8 mil em Las Margaritas; mais de 6 mil em Ocosingo; e 5 mil em Altamirano, todas no estado mexicano de Chiapas. A Marcha Silenciosa é considerada a maior feita pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) até hoje. Mais informações: https://www.elsaltodiario.com/hemeroteca-diagonal/la-marcha-zapatista-mas-grande-de-la-historia-del-ezln#

12 https://www.youtube.com/watch?v=3HtyX1ATmsw

PREFIGURAÇÃO

Como uma tática de vivência, isto é, durante a qual os sujeitos realizam diretamente com os corpos uma experiência de viver e conviver na ação, as marchas longas agenciam, seja nas localidades por onde passam, seja no seu próprio deslocamento pelas estradas, uma ambiência social alterada, de ordem nova e singular. É o que torna também as marchas longas um campo fértil para a invenção de outras sociabilidades.

Esse fenômeno de produção de “uma esfera específica no curso da vida social” é o que faz Christine Chaves considerar as marchas um tipo de “ritual de longa duração”. [13]  A suspensão provisória dos usos e práticas regulares, a emergência de uma outra temporalidade, o surgimento de novas maneiras e de outras formas de relacionamento entre os agentes (mesmo entre pessoas conhecidas, que, agora, reinventam seu jeito de lidar umas com as outras), em suma, o surgimento de uma convivência simbolizada (ritualizada) de outro modo permite afirmar que as marchas longas constituem também aquilo que Hakim Bey denominou de “zona autônoma temporária” – uma situação singular, especial, fora do Estado, na qual a vida é reinventada.

13 Christine de Alencar Chaves, 2001, p. 15. No caso das marchas indianas, tanto Gandhi como Rajagopal Puthan Veetil, no lugar do termo “marcha”, usam yatra, termo também empregado em peregrinações religiosas. No hinduísmo, assim como em outras religiões indianas, yatra significa peregrinação a locais sagrados. 

Nesse sentido, a marcha longa constitui uma tática prefigurativa por excelência. Ao vivenciar internamente à marcha a realidade do mundo que se deseja alcançar – plural, igualitário, justo e comum; um mundo em que todos desempenhem seus papéis em favor do grupo, de todos e da melhoria das condições de vida –, os espaços de experimentação autônomos inerentes a esta prática acabam por ser, também, uma experiência revolucionária e transformadora para quem dela participa.

Durante o percurso, as pessoas se banham, se alimentam e dormem nas vias públicas. Elas são responsáveis por cuidarem umas das outras, acompanhando idosos, grávidas, cuidando também de enfermidades e, também, possíveis desavenças ou conflitos interpessoais. Toda a gestão desta enormidade de pessoas que atravessa as fronteiras internas do seu país é feita ali mesmo, pelas mesmas pessoas que caminham.

Um exemplo pode ser encontrado em relatos sobre a marcha da campanha Jan Satyagraha, realizada em 2012 pelo Ekta Parishad. Como relata Jilll Carr-Harris, o movimento teve grande impacto sobre as mulheres. Na marcha, os papéis assumidos por elas foram por vezes muito diferentes daqueles em suas comunidades e vilas. Na marcha, as mulheres não eram dependentes e mantinham-se em nível de igualdade com os homens, assumindo inclusive tarefas não convencionais como, por exemplo, a segurança e a vigília durante as noites. Também ali as mulheres assumiram protagonismos, por exemplo, ao liderarem as marchas, colocando-se à frente das dezenas de milhares de caminhantes. [14]

14 A reflexão de Carr-Harris foi retirada deste vídeo do Ekta Parishad: https://youtu.be/KpxJQeQsakY

Marcha de Selma a Montgomery, EUA, 1965

O caráter prefigurativo das marchas é notadamente impressionante no caso da marcha de Selma até Montgomery, no Alabama. Selma já se tornara palco da luta pelo direito ao voto da população negra nos EUA com mobilizações pontuais e pequenas ações de tentativa de cadastro da população negra nos cartórios eleitorais, quando a morte do ativista Jimmie Lee Jackson motivou os diferentes grupos e movimentos negros a decidir pela marcha. Na luta por fazer valer os seus direitos civis, os movimentos negros tentaram por duas vezes percorrer os 80 quilômetros que separavam a cidade de Selma da capital do Alabama, Montgomery. E por duas vezes foram impedidos. Na primeira vez, a brutalidade da polícia foi tanta que a data ficou eternizada como o “Domingo Sangrento”. Dezenas de pessoas foram parar nos hospitais da cidade. Os relatos de mulheres desmaiadas enquanto eram espancadas atravessaram os oceanos. A segunda tentativa frustrada de marchar até Montgomery foi parada por força da lei, por meio da decisão de um juíz federal que expediu uma ordem contrária ao direito de manifestação e de livre circulação das pessoas.

Neste sentido, realizar a marcha, como aconteceu na terceira tentativa, entre os dias 21 e 25 de março de 1965, demonstrou para toda a população negra daquele país que era, sim, possível ter os seus direitos garantidos e assegurados. Quando Martin Luther King, John Lewis, o Rabino Abraham Joshua Herschel e demais irromperam na capital do estado, com o apoio das forças armadas, destacadas para garantir a segurança física dos manifestantes, irrompia com eles, na sociedade, uma mudança que mais tarde viria a ser oficializada com o VotingRightsAct (a lei de direito ao voto). [15]

15 O direito ao voto para pessoas negras nos Estados Unidos foi garantido em 1870, quase cem anos após o final da Guerra Civil, formalizado na aprovação da 15ª Emenda à Constituição do país. Porém, já em 1876 a Suprema Corte e alguns juízes de estado passaram a limitar o escopo da Emenda, tornando muito difícil o registro de eleitores negros. Mesmo com a aprovação do Civil RightsAct em 1964, a discriminação e o racismo seguiram criando barreiras que impossibilitaram, especialmente no sul do país, o acesso ao voto. Desta maneira, fez-se necessário ao movimento pelos direitos civis concentrar esforços na luta pelo direito ao voto, o que foi feito através de mobilizações populares e da articulação entre Martin Luther King Jr. e o presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson, que apresentou ao Senado a lei que se tornou, em 1965, o chamado VotingRightsAct.

MECANISMO DE PRESSÃO

Pelo fato de a marcha estar associada a algo que poderíamos chamar de clímax (ou desfecho), no sentido da chegada ao destino e da realização do que se pretende nesse local, ela acaba se tornando uma espécie de alerta de uma colisão. A cada dia que se passa, a cada passo dado e a cada quilômetro avançado, o oponente é colocado mais próximo da ação que se desenrolará. Se nada for feito, uma multidão irá irromper na porta da cidade e a força deste feito poderá abalar as estruturas de poder. O melhor resultado para a marcha é, talvez, não precisar ocorrer, mas sim ter as suas demandas atendidas. Foi assim com Gandhi, com Luther King e muitos outros. Nos casos estudados aqui, os agentes que promoveram e lideraram as marchas comunicaram a seus oponentes da possibilidade de não colocarem os pés na estrada caso suas demandas fossem atendidas. No caso da Jan Satyagraha de 2012, na Índia, por exemplo, a marcha ainda tinha muitos dias, quase semanas, para alcançar o seu destino, quando o governo então cedeu e atendeu aos manifestantes.

Assim, o custo político de se acatar os pedidos de um movimento popular, mesmo que parcialmente, pode ser menor do que deixá-lo seguir ou forçá-lo a se dispersar. Tudo dependerá de um conjunto de fatores como a capacidade do movimento de se comunicar, de mobilizar e engajar e, ainda, de seu desenho estratégico quanto ao que motiva a marcha, quais as suas demandas e para onde se dirige.

Chegada da Marcha Nacional do MST em Brasília, 1997.

DILEMA DO OPONENTE

As marchas carregam consigo um elemento chave para toda ação não violenta que se pretende estratégica: elas posicionam seu oponente em um dilema. Ao se colocar um ator em um dilema, este, em tese, terá um conjunto limitado de possíveis movimentos a fazer, como quando se coloca um rei em xeque em um jogo de xadrez. E, para os ativistas, tanto a ação como a inação de seu oponente anunciam resultados positivos.

O oponente poderá tanto tentar impedir a marcha de acontecer, como poderá optar por deixar que esta siga seu percurso e realize o que pretende. Deixá-la seguir pode significar um avanço ainda maior para a causa defendida e, consequentemente o enfraquecimento de seus oponentes. Por outro lado, se a escolha do oponente é a de impedir a marcha, duas opções pelo menos são possíveis. Pode-se acatar as demandas do movimento ou, então, fazer uso da força. O uso da força poderá dar notoriedade àqueles que marcham, uma vez que quando forem vítimas da violência, poderão expor o caráter antidemocrático do opressor. O uso da violência contra uma demonstração não violenta costuma gerar bons resultados políticos para os ativistas, que podem ganhar mais atenção, visibilidade e apoio. E, ainda, impedir a realização de um direito – o direito de ir e vir – pode ser ruim para a imagem de quem tenta barrar a marcha.

COMUNICAÇÃO

Martin Luther King Jr. saiu de Selma em 1965, com alguns milhares de pessoas, mas foi proibido por lei de atravessar a rodovia até Montgomery com mais do que 300 pessoas. Os manifestantes não poderiam caminhar os 80 quilômetros entre as duas cidades sob a justificativa de terem de deixar livre uma das faixas da via. Ademais, não havia povoados no caminho, não havia com quem dialogar durante o percurso e, tampouco, a possibilidade de se mobilizar mais gente uma vez que, se isso acontecesse, o limite de 300 pessoas seria excedido. Todas as condições inerentes à marcha apontavam para um baixíssimo potencial de expansão do contingente de caminhantes.

Ainda assim, quando a pequena marcha chegou ao seu destino, ela foi recebida por dezenas de milhares de pessoas que seguiram unidas até o Capitólio da cidade. O trabalho de mobilização e engajamento não podia ser feito fisicamente, mas foi realizado por outros meios, com a participação da mídia, de celebridades e de diferentes grupos e movimentos da sociedade civil que estavam diretamente implicados e interessados na conquista dos direitos civis da população negra dos Estados Unidos.

Isso significa que a mobilização e o engajamento não precisam acontecer apenas in loco, por onde a marcha passa, embora este seja seu grande trunfo. A mobilização e o engajamento de apoiadores e manifestantes dependem, em última instância, da capacidade de o movimento transmitir sua pauta e de sua determinação em atingir um público interessado. Além de pressionar seus oponentes durante todo o percurso, marchas longas contam e escrevem a história. Assim, a comunicação é fundamental.

Quando o Ekta Parishad iniciou em 2012 a Jan Satyagraha, sua segunda grande marcha na Índia, com cerca de 50 mil pessoas, todo o governo já estava ciente do que ali se passava. No primeiro dia, antes que a marcha tivesse decretado o seu início oficial, diversas lideranças populares se reuniram na presença do Ministro do Desenvolvimento Rural e das dezenas de milhares de pessoas que iriam marchar, tornando este um grande evento no país. A comunicação começara meses antes da marcha sair e seguiu ativa a cada passo dado.

Outubro de 2019 é a data em que partiu de Nova Delhi, na Índia, outra marcha longa promovida pelo Ekta Parishad, com o nome de JaiJagat (“uma vitória pelo mundo”). Seu objetivo: alcançar a cidade de Genebra, na Suíça, doze meses depois. Muito antes de seu início físico, a marcha já existia. Ela começou a mobilizar e engajar seu público antes mesmo de ser dado o primeiro passo. Da mesma forma, seu destino já foi informado, bem como todo o seu percurso. Todos os envolvidos já sabem o que os espera meses antes de acontecer. A comunicação faz o trabalho de antecipar seu efeito no tempo e de fazê-la perdurar depois que ela termina.

FAZ-SE CAMINHO AO ANDAR

Marchas longas são táticas complexas que dependem de planejamento, estrutura, sacrifício. São conjuntos dinâmicos dos quais emergem transformações em nível individual e, também, coletivo. Elas transformam quem dela participa, transformam o contexto político, transformam a história e a forma com que se entende a luta popular. Quem caminha transpõe fronteiras, geográficas e psicológicas. Rompem-se crenças e fortalecem-se valores. Aqueles que caminham serão para sempre transformados pela experiência da construção de seu futuro a partir dos próprios pés, optando pelo sacrifício e pela entrega à causa. Aquele e aquela que marcham podem construir pluralidade, fraternidade e igualdade. Marchar questiona as fronteiras, ocupa os territórios e demonstra força, enquanto constrói o próprio movimento.

CAMINHAR E TRANSFORMAR

Uma lista de pontos para o uso estratégico da tática da marcha longa

LOGÍSTICA_ Para se percorrer longas distâncias com grande número de pessoas deve-se dar atenção redobrada a alguns aspectos. São eles: alimentação, repouso e descanso, higiene, segurança e saúde. O preparo para manter o grupo com energia e saúde durante a marcha é essencial, então lembre-se de pensar em estruturas de apoio, veículos, mochilas distribuídas entre os caminhantes, comida, água, barracas, remédios e material para primeiros socorros, entre outros. Planeje bem o percurso e saiba onde a marcha poderá parar, montar acampamento, descansar. Pense em grupos e horários para preparar a comida. Pense também em como estocá-la.

ORGANIZAÇÃO_ Para se manter grande número de pessoas de maneira organizada e segura durante um percurso, a organização, tanto do uso do espaço como do fluxo de informações, faz toda a diferença. Pode-se subdividir a marcha, por exemplo, num grupo que vai à frente com faixas e palavras de ordem, um grupo ao final que garante que ninguém fique para trás, um grupo responsável pela música (baterias, bandas, caixas de som, carros de som), outro responsável pela segurança etc. Definir responsáveis e coordenadores pode facilitar para se saber com quem falar em caso de necessidade. Considere formar um grupo organizador que tomará decisões, acessará recursos, dialogará com autoridades e assim por diante.

ESTRATÉGIA_Lembre-se que uma marcha que não tem repercussão não produz o impacto e o efeito necessários. Uma dica é comunicar às autoridades e ao(s) oponente(s) que a marcha será realizada e por onde ela passará, bem como o conjunto de demandas do seu movimento. Leve em consideração quais comunidades estarão no seu percurso, quem você pode mobilizar, de quem pode receber ajuda e apoio. Pense em como encerrar a marcha, o que fazer quando chegar ao destino e como esta ação deixará o seu movimento mais próximo dos seus objetivos. A marcha deve fazer parte da estratégia do movimento e não o contrário.

COMUNICAÇÃO_ Comunique-se, ganhe apoio e visibilidade. A comunicação é chave para a mobilização e crescimento da marcha. Converse com a população que está nas cidades e vilas por onde o percurso passa. Converse com o público mais amplo através da mídia tradicional e das mídias sociais. Explique porque estão marchando, para onde vão e o que pretendem. Explique a injustiça que motiva o caminhar, amplie as vozes pela sua causa, abra espaço para que diferentes caminhantes possam ter suas vozes escutadas. Cada passo dado, cada quilômetro vencido é notícia. Quanto mais perto se chega do destino, maior a importância de dialogar com a sociedade.

DESTINO_O local para onde se dirige a marcha é o ponto primordial e estruturante de toda a sua estratégia. Ele deve ser tanto simbólico como prático no sentido de que as pessoas envolvidas no processo de tomada de decisão sobre a causa devem estar no destino também, sendo que é lá que a marcha pode alavancar ou alcançar a mudança pretendida . O local em que você vai chegar com uma multidão é o local onde a pressão atingirá o seu ápice. Use isto a seu favor.

MOBILIZAÇÃO_Comece a mobilizar pessoas e movimentos com suficiente antecedência para que todos possam se preparar para participar desde o primeiro dia de caminhada. Busque iniciar a sua marcha com um número expressivo, se possível, e prepare-se para que ela possa crescer ao longo do caminho. Para tal, conquiste apoio no percurso, receba caminhantes de outras regiões, atraia apoiadores nas cidades e vilas por onde passar. Uma marcha que cresce no caminho ganha mais força e assim pode fazer mais pressão para alcançar suas demandas.

TÁTICAS ASSOCIADAS_ É possível associar uma série de outras táticas à marcha, como ações diretas, assembleias, teatros, ações de desobediência civil e, também, advocacy. Isso pode definir o potencial de sucesso do seu movimento. Construir uma relação de diálogo com tomadores de decisão que possam se articular paralelamente ao andamento da marcha amplia os seus canais de pressão e de negociação. Marchas são espaços vivos, autônomos, transformadores. Nelas existe enorme potência de ação política. Use isto a seu favor.

DILEMA_Táticas não-violentas frequentemente colocam seus oponentes em posições difíceis. No caso da marcha, force seu/sua oponente a tomar uma atitude, seja ela a de tentar desmobilizar a marcha, seja até mesmo optar por não fazer nada. Lembre-se que chegar ao destino e ocupar o local com suas demandas é uma vitória para a marcha. Essa possibilidade de vitória é o que deixa seu oponente em um dilema, uma vez que seu oponente não quer que você avance com sua pauta e movimento. Uma eventual ação ou a inação do(a) oponente será positiva para a marcha.

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