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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Programa Amplificar já está no ar

O programa de rádio “#Amplificar: a Voz das Mulheres na Resistência” é uma iniciativa voltada para a comunicação popular, ativismo e feminismo, pensada e concebida por nós, da Escola de Ativismo, em parceria com a Bigu Comunicativismo e com o Centro das Mulheres do Cabo, e faz parte de um projeto maior de ativismo com as mulheres marisqueiras da cidade de Cabo de Santo Agostinho, muito atingidas economicamente com o vazamento de óleo de 2019 e agora com a pandemia do coronavírus.

O programa vai ao ar na Rádio comunitária Calhetas 98,5 FM, em Cabo de Santo Agostinho, litoral sul de Pernambuco, e pode ser visto também na página de Facebook do Centro de Mulheres do Cabo. A primeira edição já está disponível no link. As próximas serão nas seguintes datas, sempre às 7h55m da manhã: 26 de maio; 9 e 30 de junho; e 14 e 28 de julho.

Onde tudo começou e para onde vamos

O projeto Amplificar surgiu em 2019, como um curso intensivo de comunicação para movimentos sociais, envolvendo três organizações: Bigu Comunicativismo, Escola de Ativismo e Rede Meu Recife. Com um debate, três dias de oficinas sobre comunicação institucional, redes sociais, programação visual e relacionamento com imprensa, e utilizando metodologias participativas e da educação popular, o projeto piloto reuniu 20 representantes de 20 movimentos diferentes. Além do curso, o processo acompanhou os resultados nas organizações, com acompanhamento de médio prazo para entender os impactos no cotidiano dos grupos, onde  pudemos perceber de que modo uma comunicação mais bem planejada e executada pode potencializar o campo ativista.

Já o 2º Amplificar, no qual o programa de rádio de mesmo nome se insere, surge com o intuito de descentralizar o projeto e seguir para outra cidade da Região Metropolitana do Recife, nesse caso, Cabo de Santo Agostinho, uma das cidades mais atingidas pelo derramamento de óleo ainda não solucionado no ano de 2019, que afetou várias praias da Região Nordeste do Brasil.
O projeto consiste numa formação à distância de três meses sobre estratégias de comunicação para marisqueiras do Município do Cabo de Santo Agostinho afetadas pelo derramamento de petróleo em 2019 e pela atual pandemia do Coronavirus, com uma metodologia que combina a interação via whatsapp, aulas e trabalho de cuidado com a autoestima dessas mulheres via programa de rádio a partir de parceria com o Centro de Mulheres do Cabo.

Dos 30 mil pescadora/es do estado, muitas foram afetadas com derramamento nas praias e estuários do Cabo, prejudicando comércio, turismo e saúde. Em seguida, a pandemia do Coronavirus chegou ao Brasil no primeiro semestre de 2020 e vulnerabilizou ainda mais a vida de quem vive do marisco e da pesca artesanal. As medidas tomadas pelo Estado isolou trabalhadores/as e priorizou grandes empresas de comércio. Sem renda, a burocracia e a exigência tecnológica impediram que muitas famílias pudessem acessar o Auxílio Emergencial, criando grande recessão que precarizou ainda mais a vida nesse território.
A ideia é potencializar a construção de estratégias de comunicação da população trabalhadora de marisqueiras e pescadoras no Cabo de Santo Agostinho no tema dos impactos ambientais e sociais decorrentes do derramamento do óleo e da pandemia de Covid-19.

Primeiro programa já está no ar

Na edição de estreia, que foi ao ar no dia 21 de abril, às 7h55, na Rádio comunitária Calhetas, e teve como temática “Mulheres fazendo comunicação nos territórios”. Além de Camila Mendes, da Escola de Ativismo, contou ainda com as presenças de Fran Silva, comunicativista e defensora dos direitos humanos, Suelany Ribeiro, feminista e ativista dos direitos humanos, do coletivo Torça Tururu, e Manina Aguiar, do Centro de Mulheres do Cabo. Foi um pouco mais de uma hora de um papo animado sobre comunicação ativista e os desafios enfrentados no atual contexto brasileiro. Estão previstos ainda mais quatro edições do programa nas próximas semanas.

Assista online aqui o primeiro programa, que foi ao ar no dia 21 de abril.

Como uma senha mudou minha vida

Como uma senha mudou minha vida

Os seguintes eventos ocorreram entre ☹ e ☺

Como ela pôde fazer uma coisa dessas comigo?” dizia uma voz na minha cabeça. O tempo todo. Todo dia.
 
Voltando a 2011, quando tudo tinha degradê e os ícones do iOS estavam na moda, eu estava afundado em uma forte depressão causada pelo meu divórcio. Felizmente, acredito que fui esperto o suficiente (e tive pessoas incríveis ao meu redor) para encontrar formas de voltar para a superfície.
 
Um dia, entro no escritório e começo meu dia diante da tela do computador. Tudo ia bem, até que vi essa mensagem:

Sua senha expirou.
Clique em ‘Mudar senha’ para mudar sua senha.

Começo a respirar de forma pesada. Encaro a seta do mouse.  Leio a mensagem idiota na minha mente com uma voz de avô rabugento: A senha expirou.
 
No meu local de trabalho, o servidor está configurado para pedir a milhares de empregados ao redor do planeta que mudem suas senhas. A cada 30 dias.

Isso que é irritante: O servidor nos obriga a usar, pelo menos, uma letra MAIÚSCULA,  um caractere alfabético minúsculo, um símbolo e um número. Ah, e a coisa toda não pode ter menos de 8 caracteres. Além disso, também não posso usar nenhuma das senhas que usei nos últimos 3 meses.

Eu estava furioso naquela manhã. Terça, 9:40 da manhã. – Fazia tanto calor que meu corpo já estava todo suado, mesmo tendo acabado de chegar no trabalho. Eu estava atrasado. Ainda estava usando meu capacete. Acho que esqueci de tomar café da manhã. Minha boca estava com gosto de cigarro. Eu precisava terminar coisas antes da reunião das 10h, e o que tinha diante de mim era uma enorme perda de tempo.

Lá estava ele… o campo em branco com o cursor pulsando, esperando que eu digitasse uma senha que teria que redigitar pelos próximos 30 dias. Várias vezes durante o dia.

Deixando a frustração de lado, me lembrei de uma dica do meu antigo chefe, Rasmus. De alguma forma, ele construía suas senhas combinando listas de coisas que ele precisava fazer, então pensei em usar uma versão melhorada desse método.

Vou usar uma senha para mudar minha vida.

Era óbvio que, naquela época, com meu humor e estilo de vida, eu não conseguia me concentrar em resolver as questões da minha vida. Obviamente eu tinha claros indícios do que precisava fazer – ou precisava alcançar – para retomar o controle da minha vida, mas muitas vezes não prestamos atenção a essas pistas.

Minha senha, então, se tornou um indicador. Ela me lembrava que eu não deveria me fazer de vítima diante de minha recente separação, e que sou forte o suficiente para fazer algo a respeito.

Minha senha passou a ser: “Perdoe@3la

Durante minha reunião, fiquei pensando no que eu havia acabado de fazer. Um sorriso bobo se desenhou no meu rosto.

No resto da semana, precisei digitar essa senha várias vezes por dia. Toda vez que a tela do meu computador bloqueava. Toda vez que a foto dela aparecia no protetor de tela. Toda vez que eu voltava do almoço sozinho.

Na minha cabeça, eu repetia o mantra de que eu não havia apenas digitado uma senha. Na minha cabeça, eu estava lembrando a mim mesmo de que deveria “Perdoá-la”.

Essa simples ação mudou a forma como eu passei a encarar minha ex-mulher. O lembrete constante de que eu deveria perdoá-la me levou a aceitar a forma como as coisas aconteceram no fim do casamento, e a abraçar uma nova maneira de lidar com a depressão que me afogava.

Nos dias seguintes, meu humor melhorou drasticamente. Ao fim da segunda semana, percebi que a senha tinha se tornado menos poderosa, e começado a perder seu efeito. Uma rápida lembrança do ‘mantra’ me ajudou. Eu pensava comigo mesmo que eu a perdoava sempre que digitava a senha, todas as vezes. O efeito de cura voltou quase imediatamente.

Um mês depois, o querido servidor do trabalho me pediu novamente para renovar a senha. Pensei qual seria a próxima coisa que eu deveria fazer.

Criei a seguinte senha: P4redefumar@paras3mpre 

E adivinhe o que aconteceu? Eu não estou brincando. Parei de fumar da noite para o dia.

Tenho várias testemunhas que não acreditavam como eu tinha conseguido. Eu já havia tentado livros, cigarros eletrônicos, adesivos, etc. Nada tinha funcionado, até usar esse truque.

Foi uma senha dolorosa de digitar durante o mês, mas me ajudou a gritar comigo mentalmente enquanto digitava a afirmação. Isso me motivou a seguir um objetivo mensal.

Um mês mais depois, minha senha se tornou Economiz3paraviajar@tailandia

Adivinhe onde eu estava 3 meses depois?
Tailândia.
Com minhas economias.
Obrigado, senha.

Vendo como esses lembretes me ajudavam a materializar meus objetivos, segui motivado e empolgado. Mas confesso uma coisa: É difícil decidir a próxima meta. Às vezes, é difícil identificar o que precisamos mudar, ou qual rumo devemos tomar.

Certifique-se de que seus objetivos são realistas, e evite ser sonhar alto demais ao escrevê-los. É importante construir uma métrica em torno do seu objetivo, de modo que você possa medir o sucesso ao longo do caminho. Por exemplo, se você está na caça por um trabalho melhor, não use coisas como Sej@oNumero1! ao invés disso use Arrase@LinkedIn! E use as novas conexões, grupos e o número de currículos enviados como uma métrica para validar seus esforços rumo a um novo emprego. Ser o número um é ótimo, mas ser capaz de mensurar onde você está e onde você está indo é importante, especialmente quando há um grande espaço entre esses dois pontos.

Mas então, por que esse truque funciona? Basicamente, uma senha permite que você acesse um espaço seu no mundo digital. Ou seja, permite que você desbloquei o computador, mande um e-mail para alguém. Essa sensação de pequenas realizações, ou essa ideia de que “meu mantra me ajuda a realizar as coisas”  pode construir uma dinâmica que o motiva a se manter focado em realizar seus objetivos mensais. É um pequeno hábito que tem um poder transformador.

Funcionou para mim. Tenho certeza de que funcionará para você.

Foi assim que aprendi que eu posso realmente mudar minha vida, se eu seguir os passos corretamente. Continuei fazendo isso repetidamente mês após mês, com ótimos resultados.

Aqui está uma lista resumida das minhas senhas nos últimos 2 anos. Para você ter uma ideia de como minha vida mudou graças a esse método:

  • Perdoe@3la ← Para minha ex-mulher, que começou tudo isso. 
  • P4redefumar@paras3mpre ← Funcionou. 
  • Economiz3paraviajar@tailandia ← Funcionou. 
  • Coma2vezes@dia ← Nunca funcionou, ainda gordo. 
  • Durma@antesdas12 ← Funcionou. 
  • Chameela@sair ← Funcionou. Me apaixonei de novo. 
  • Sembeber@2meses ← Funcionou, me sinto ótimo! 
  • Morar@junt4s ← Funcionou. 
  • Adote1@gato! ← Funcionou. Temos um gato lindo. 
  • Facetim3mae@domingos ← Funcionou. Falo com minha mãe toda semana. 

E a do mês passado:

  • Enc0mizepara@alianca ← Sim. A vida vai mudar de novo, em breve.

Ainda espero ansiosamente o início de cada mês, quando posso mudar minha senha para algo que me motive a focar em alguma coisa que quero fazer.

Este método tem funcionado para mim de forma consistente, pelos últimos 2 anos, e já o compartilhei com amigos próximos e parentes. Não acho que tenha proporcionado uma mudança drástica em meus pequenos hábitos, mas teve um grande impacto na minha vida. Por isso pensei em compartilhar com todos vocês.
 
Faça uma tentativa! Crie senhas como se fossem metas, e com a mentalidade e a atitude corretas você irá mudar a sua vida!
 
Lembre-se: para maior segurança, tente criar senhas mais complexas. Adicione símbolos ou números, construa senhas longas, e embaralhe um pouco o início ou o fim da frase. S3guranca_em_Pr1meiro_lugar!
 
Passe a dica para quem possa precisar.

PS: Ela disse sim!

Liberta Elas – o afeto que traz coragem na luta feminista e abolicionista penal

Por Dora, a ativista, e Cisbi

Liberta Elas é uma coletiva com diversidade de perfis e formações que atua dentro dos presídios femininos da Região Metropolitana do Recife, Pernambuco, levando atenção, cuidado e troca para as mulheres em situação de cárcere. Um processo ativista de solidariedade e cumplicidade na temática do abolicionismo penal e o direito à dignidade humana das mulheres, esse é o Liberta Elas em síntese.

Formado no segundo semestre de 2018, inicialmente atuavam através de oficinas de afeto, que contavam com a distribuição de kits de higiene. A partir de 2019, com maior aporte financeiro, articularam um número maior de ações, como oficinas de grafite (com Pixegirls), de trança, de turbantes (com Negra Dany), rodas de escuta sobre família e maternidade, oficinas jurídicas em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU) e o Grupo Robeyoncé da Faculdade de Direito do Recife.

Na Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima realizaram oficinas de autocuidado (com Resenhas de Maria), um clube de leitura e de convite ao exercício da expressão. Para isso selecionaram textos que dialogassem com a realidade das mulheres e trabalham com elas a interpretação dos textos. A leitura é uma atividade importante para a ressocialização e está reconhecida pela Lei de Remição de Pena, à qual se vincula a Recomendação de nº 44 do Conselho Nacional de Justiça.

Acompanhe nosso papo com Juliana Trevas, uma das integrantes do Liberta Elas.

Dora: Queria que tu falasse do Liberta Elas, queria que você apresentasse o coletivo pra todo mundo.

Juliana: Pronto, tudo surgiu em uma reunião de amigas que tinham acabado de voltar do Fórum Social Mundial em Salvador, [naquela época] tinham executado a Mariele [Franco] também. Essas mulheres que se conheciam tinham uma luta, uma militância contra o cárcere de alguma maneira: eu pesquisando, outra já tinha feito uma intervenção dentro do cárcere, e a gente se juntou e pensamos em uma ação. Queríamos uma ação direta. A gente pensou em uma ação e nela conseguimos fazer 4 dias de oficinas dentro do Bom Pastor [unidade prisional na cidade de Recife]. O último dia seria uma grande arrecadação que a gente entregaria para essas mulheres que estavam no cárcere. A gente descobriu que muitas não recebiam visitas, então lançamos uma campanha online pelo Facebook e aconteceram coisas incríveis. Quando a gente fez essa semana, saímos e pensamos “e agora? O que a gente vai fazer?” Porque a gente tinha vivido algo muito forte, levou até um tempo para falar. As coisas que eu me lembro: o grande espanto das mulheres, perguntando se a gente era um grupo religioso, também era a admiração delas de olhar para as mulheres negras, com todo o estilo e a beleza da negritude exterior e o próprio conteúdo das oficinas. Cintia, uma maravilhosa, veio dar oficina, é doutora no autocuidado da mulher negra, teve essa oficina. Teve roda de escuta com as mães, teve cinema, biodança… Essas mulheres participaram e no final convidamos 15 amigas nossas. Além da gente, chamamos mais 15 para fazer essa doação. Levamos um tempo para processar, o que eu chamo de uma boa repercussão, no sentido de que a gente viu o impacto delas ao perceber a gente lá. A gente começou a pensar em formar um coletivo. Hoje o coletivo é formado por sete mulheres: eu, Nathielly, Clarissa, Fernanda, Amanda, Thaisi Bauer e Anicely. A gente continuou e conseguiu uma grana de um edital do SOS Corpo (Instituto Feminista para a Democracia). Esse [grupo] é um farol do feminismo aqui. Elas fizeram um edital de 4 mil reais e reverteu tudo para fazer as ações no ano de 2019, aí a gente podia remunerar as oficineiras e a gente também se ligou de chamar pessoas que eram parceiras – “parceria” é a palavra que sempre foi presente na nossa atuação. Quando acabou, a gente continuou, mas as oficineiras tinham que seguir porque como que a gente ia chamar? E mesmo assim teve gente que ainda embarcou, fez de graça – não que o dinheiro que a gente desse fosse muito – era um agradecimento. Daí chegou no formato do que é o Liberta hoje. A gente começou a ter três oficinas fixas e vimos que era o que podiamos fazer, que é a roda de escuta das mães (que aconteceu no Bom Pastor), o Clube do Livro (que aconteceu na Colônia Penal Feminina Abreu Lima) e a oficina de Introdução ao Direito Penal (também no Bom Pastor). O Liberta Elas hoje tá indo no cárcere, aí veio a pandemia. a gente teve que fazer essa transformação, que foi fazer essa campanha de kits de higiene. Expandimos para 15 empresas porque a gente ficou desesperada porque sabia que acabou o contato né? As famílias não iam. A família é que suporta, emocionalmente, materialmente e o negócio ia ficar pior. Estamos na nossa 5ª entrega agora. Vão ser 250 kits. Já entregamos no Presídio Bom Pastor e também na CPFAL (Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima). E a gente quer chegar até [a cidade do interior] Buíque.

Cisbi: Como é que está a atuação atualmente com o COVID, como vocês tentam manter contato? É só a entrega dos kits ou tem troca de cartas, minimamente algum contato de longe, à distância? Como está sendo a recepção desses lugares frente à atuação de vocês?

Juliana: Pois é, no percurso de 2019, algumas pessoas do Liberta Elas começaram a fazer articulação política. A gente se juntou com as Juntas [codeputadas estaduais em Pernambuco, do PSOL] e formou um GT [Grupo de Trabalho], que a gente chama de “Grupo de trabalho Desencarcera Pernambuco” e chamou todo mundo que a gente já conhecia, tanto da militância quanto das instituições pra ter “músculo”, para atuar. Teve aqui em Pernambuco o Projeto de Lei (PL) da tornozeleira eletrônica e o GT se posicionou. A gente mobilizou e teve uma audiência pública chamada pelos criadores do Projeto de Lei e participamos, mobilizou pra cima do presídio, levou pra dentro do cárcere essa questão da PL… O grupo foi crescendo, e com isso quero dizer que a gente foi tendo acesso também por essa união e força do GT, também de atuação. A nossa relação é você andar e pisar numa navalha o tempo todo. Um exemplo: no Dia das Crianças a gente fez a maior arrecadação! Tanto brinquedo que a gente pensava que ia botar em um Ford Ka, só que era tanta coisa que tivemos que pedir emprestado uma Kombi! E na véspera, a diretora do presídio começou a implicar pra gente não ir. Essas coisas de micropoderes são constantes e a nós meio que fomos indo na estratégia. Hoje conseguimos entregar os kits, eu acredito, por conta do nosso trabalho, a repercussão do GT, os movimentos que trabalham aqui em Pernambuco contra a prisão… Então a gente tem esse acesso. Infelizmente, atualmente não temos acesso nenhum lá. Mas o que foi que aconteceu – como a gente ia muito no cárcere – algumas mulheres frequentavam tanto que elas nos procuraram quando saíram e estamos agora ajudando algumas do lado de cá, e também na arrecadação de kits pro lado de lá. Mas não temos contato nenhum, só com as que conseguiram sair por progressão de regime, por conta do Covid.

A nossa relação é você andar e pisar numa navalha o tempo todo. Um exemplo: no Dia das Crianças a gente fez a maior arrecadação! Tanto brinquedo que a gente pensava que ia botar em um Ford Ka, só que era tanta coisa que tivemos que pedir emprestado uma Kombi! E na véspera, a diretora do presídio começou a implicar pra gente não ir. Essas coisas de micropoderes são constantes e a nós meio que fomos indo na estratégia.

Juliana Trevas, coletiva Liberta Elas

O Projeto de Lei (PL) “da tornozeleira eletrônica” é o PL 439/2019 que estabelece o pagamento mensal de R$250,00 pelo uso da tornozeleira eletrônica para presos e presas respondendo em liberdade ou em progressão de regime. Uma mobilização coletiva da sociedade civil vem fazendo pressão e o governador de Pernambuco, Paulo Câmara, vetou. Mas ele voltou para a Assembleia Legislativa do estado. A mobilização contra a PL pode ser acompanhada aqui: https://www.liberdadenaotempreco.meurecife.org.br/

Cisbi: Que incrível saber que tem uma pressão aí, que esse abismo do poder não tá tão grande entre a atuação de vocês e essa instituição. Fui pesquisar um pouquinho de vocês e parece que afeto é uma coisa que vocês priorizam bastante e até pela forma como você fala dá pra sentir isso. Eu queria saber como que você percebe essa potência do afeto no trabalho de vocês enquanto coletivo, junto com as mulheres.

Juliana: Por sempre acabar pegando um lugar sem cerimônia, de coletivos e tudo, a gente queria ir também pelo outro lado, porque a gente acredita que afeto também é política. O direito ao afeto também. Então foi isso: afeto é uma coisa que a gente viu que tinha que ser por essa via, porque já basta a dureza. O que eu achava muito legal é que a gente acabava com uma dinâmica do beijo. A gente acabava, dava um beijo e era engraçado perceber que você dava um beijinho, faz um círculo e vai circulando o beijo pela sua esquerda, depois pela sua direita e você volta dando beijo. Todo mundo é beijado. Então a gente tinha esse cuidado de não deixar solta tanta emoção que vinha, mesmo na oficina de Direito! Uma mulher tava falando de dentro de casa, de coisas comuns como a violência policial – mas violência policial de fuder, não é violência policial de tapa de carnaval, é violência de você não acreditar. Estupro também. A saudade da família (…) Era muita coisa que aflorava nelas e em nós também. A gente levava o lanche também, que pode parecer besteira, mas uma Coca-cola gelada tinha sempre a preocupação de levar, era um momento. “Pô, quem é que não gosta de uma coquinha?”. Toda oficina tinha o lanche e quem ajudava era o Ivan Morais (vereador da cidade do Recife/PSOL), tenho que falar aqui, porque é a verdade, desde o começo sempre dava todos os lanches. Na hora em que dizemos: “e aí, uma denúncia vai rolar” e todas diziam “toca, vá em frente”, porque a gente divide: tem a parte da política, do Direito, comunicação, financeiro… Então vinha uma bomba dessa, nunca teve um “vamo não”, era sempre “bora”. Afeto traz muita coragem também pra gente.

Dora: Me lembrei de Margarida Alves, e da frase “nós tem medo, mas nós não usa”. Não é negar o sentimento, mas essa coisa do poder escolher tá muito ligado a umas dinâmicas de privilégio. Quando a gente se liga e conversa com essas mulheres que tem todas essas camadas de opressão em um espaço declaradamente de exceção de direitos, as paredes materializam isso de “você não é gente”. Tem uma coisa que me parece muito forte no trabalho de vocês que é a questão da autoestima, também o resgate, um pouco, do poder falar, aprender sobre seus direitos e o impacto da pessoa voltar a se ver como sujeita na vida, se preparando não só pra quando sair, mas pra ser sujeita enquanto está lá. Queria que comentasses sobre como essas mulheres se veem como sujeitas políticas nesse espaço.

Juliana: O nosso trabalho sempre teve essa preocupação de tratar com respeito e ouvir. É claro que levamos conteúdo, por exemplo, na oficina de Direito ia uma defensora, a gente levava conteúdo mas ao mesmo tempo, as oficinas passaram a ser um espaço seguro. Um espaço de acolhimento onde poderiam dizer alguma coisa que sabiam e nós fomos construindo, isso não foi logo de cara, não: elas foram vendo que ia ficar ali entre nós e que não ia ter julgamento. Justamente porque quem é que tá no cárcere ali? Ou as pessoas que trabalham no cárcere – a violência – ou as religiões. [Igreja] Evangélica tá lá direto, tem sala, tem tudo. A gente ficava como as “diferentonas do rolê” e trazia também muito conteúdo diferente. A gente tinha isso, de tentar essa escuta ativa, de querer o lance “direito”, mas também passar carinho, afeto, escutar elas falarem… Acho que foi no começo que eu mais aprendi, logo na primeira ação: a vontade e o desejo daquelas mulheres de falar, de serem ouvidas, de contar a sua história e também não contar se não quiserem. Nós sempre dizíamos que não era obrigatório falar, que não tem remissão (que ajuda a diminuir a pena), mas elas sempre voltavam nessa troca. Tem esse lado do sujeito de direito e esse outro lado do próprio ser, do ser mulher e a gente levava muitos textos voltados a isso. Nosso Clube do Livro é formado por mulheres negras e me lembro dos dois primeiros contos de Conceição Evaristo. Nunca vou me esquecer, porque foi uma potência muito grande, elas querendo terminar o texto “peraí, não vamos falar, não, vamos terminar logo”. Nós queríamos dividir pra ficar debatendo e elas queriam terminar, sabe? Levamos um texto sobre amor da bell hooks, levamos poesia de Amanda que tinha um mote e elas riram que só, a zine era “buceta ingovernável” … e depois toda a tristeza que saiu desse tema também, da vida sexual, do aborto e tudo… Era um

momento que a gente ouvia muito. Me emociona muito quando a gente passava no Bom Pastor, no pavilhão, e sempre tinha alguém que gritava “Liberta Elas”, e aquilo me dava uma força pra voltar, porque não era fácil. E aquelas opressões, fazendo de tudo pra você não entrar, mas quando a gente entrava tinha alguém que gritava “Liberta Elas”, tinha alguém que dizia “aquele povo, olha” e dava força pra gente fazer aquele papel. [A coletiva] ficava de olhar o processo de todo mundo, era muita coisa e a gente não dava conta, quando chegou lá, a galera tratando na maior gentileza, sem nenhuma cobrança.

Dora: Você trouxe essa questão do público de mulheres negras. Queria que falasse um pouco mais sobre o perfil dessas mulheres. Quem são essas mulheres que tão no cárcere? O que elas pensam sobre isso tudo o que tá acontecendo?

Juliana: Vou começar pelo perfil, que é numérico e importante de saber, da mulher que tá no cárcere e que é muito parecido em todo o Brasil – no caso de Pernambuco, 88% das mulheres são negras, 75% tem menos de 30 anos, a maioria são mães solo, frequentaram a educação formal por pouco tempo, geralmente vinham do trabalho informal e a maioria dos crimes que fazem com que elas sejam presas são tráfico de drogas, furto e roubo. Esse é o perfil que se aplica pro Brasil todo, infelizmente. Como estamos lá dentro, a gente confirma tudo isso. Realmente são mulheres negras mesmo, as pessoas brancas ali são as pessoas da autoridade. Um Estado de seletividade racial, a prisão desde os 1500 foi usada nesse sentido e a população negra sempre foi explorada, morta e presa, sem cerimônia. São mulheres com a preocupação imensa com seus filhos – é nítido que são força pra continuar e preocupação eterna, com muita culpa. Na roda de escuta com as mães, meu Deus do céu, faltava coragem pra mim, eu fui em duas, era você ver as grávidas, as mães vulneráveis emocionalmente na prisão, é de lascar. É essa a mulher que tá lá. As mulheres que sempre foram as mais vulnerabilizadas. As mulheres negras, as mulheres sapatonas, bichas, que também se fodem, tem esse recorte… A gente não pode romantizar e nem ser cruel demais, são mulheres. Poderia ser qualquer uma de nós, se a gente estivesse no local social que elas vivem. Essa parte de território é muito importante saber quais são, como o [bairro] Ibura…  Mas são mulheres inteligentíssimas, sagazes, que sacam muito de Direito Penal, mulheres que tem esperança, que querem uma vida, mulheres que não aceitam o lar, que são sobreviventes, que estão sobrevivendo no cárcere.

Cisbi: Queria que você conversasse um pouco mais sobre essa relação entre o gênero e cárcere, como se estabelece. Como é a penalidade a partir disso?

Juliana: Gênero é isso, é uma forma a mais de botarem pra fuder com a mulherada! Gênero é usado contra a mulher no sistema carcerário, parece que é a última fronteira antes da morte da mulher que tá naquele padrão e tá na cabeça de algumas pessoas, acho que é isso. E também a punição vem com tudo na mulher que foge desse estereótipo de “boa mãe”. Na verdade, o processo é todo construído pra deslegitimar toda a mulher, então não importa o que ela diz, que é “boa mãe”, não importa, já tá perdendo nesse jogo. Têm vários estereótipos, “mulher de bandido”, mulher “sei lá o quê”, mas a gente sabe que é uma questão complexa e a punição é certa, não importa o que ela diz: ela tá fazendo isso e tome pena alta. É um sistema pra produzir e demonstrar pras outras mulheres o que acontece se não se “endireitar”, não andar na linha, não seguir um padrão. Se for mulher negra, bicha, masculinizada, se for uma mãe que tá lutando, não tem muito não [como escapar]! É um padrão: as mulheres negras tão aí, clientela do Direito Penal há muito séculos, não tem como você não ver gênero, raça e sexualidade e outras coisas no cárcere, como mulheres mais velhas. Não é atoa que a Ordem Religiosa Católica das Irmãs do Bom Pastor foi uma grande empresa transnacional na América Latina toda, de vez em quando eu recebo que tem Bom Pastor no Chile, na Bolívia, é uma empresa que vinha expandindo suas filiais em cada país. Então veio a religião, a escravidão também, serviu de muito modelo para o cárcere. Então as prisões são construídas pra homens – não tem creche a maioria, apenas 33% e o berçário é um lugar que separam as mulheres. Quantas e quantas vezes a gente teve que brigar para que as mulheres que estavam no berçário do Bom Pastor irem para a atividade coletiva? Então é uma segregação que visa a separação, cada uma vai adicionando mais nuances nessa operação de opressão.

 

Gênero é usado contra a mulher no sistema carcerário, parece que é a última fronteira antes da morte da mulher que tá naquele padrão e tá na cabeça de algumas pessoas, acho que é isso. (…) É um sistema pra produzir e demonstrar pras outras mulheres o que acontece se não se “endireitar”, não andar na linha, não seguir um padrão. (…) Não é atoa que a Ordem Religiosa Católica das Irmãs do Bom Pastor foi uma grande empresa transnacional na América Latina toda, de vez em quando eu recebo que tem Bom Pastor no Chile, na Bolívia, é uma empresa que vinha expandindo suas filiais em cada país.

Juliana Trevas, coletiva Liberta Elas

Dora: Queria saber o que você percebe dentro do presidio de dinâmicas políticas. O que você percebe de jogos políticos? Tem pessoas filiadas? Essas mulheres, eu sei que sobreviver já é o bastante, mas como é a política na vida dessas mulheres?

Juliana: Pois é, a gente tentava puxar. Teve um Clube do Livro que fizemos sobre o Projeto de Lei, a gente explicou tudinho e foi a revolta: “o quê?!”, quando elas se ligaram que quem pagaria a tornozeleira era a família, foi indignação. A gente até saiu, “então escreva no cartaz pra levarmos pra audiência” e não foi nada nem pensado! Vimos que elas estavam tão [indignadas] que queríamos levar o que elas escrevessem. Então tem informação: falavam de Bolsonaro, religião, tinha aquela Clarissa [Tércio] deputada estadual, porque tinha programa de rádio – eram coisas populares… Aquele espaço era pra trazer coisas do privado e a política a gente falava de uma forma ou de outra.  Lá é uma política diferente, é uma política do medo, uma jogando contra a outra. É muita coisa que o sistema usa pra separar essas mulheres: dividir em pavilhões, dividir em crimes… Questões raciais, também. Política vinha mais nesse esquema tradicional, pontual em algumas coisas, mas o local era pra falar da vida. Embora a gente tentasse o tempo todo fazer conexões, nós tentamos muito estar sempre partindo do particular pro mais geral.

Dora: Nossa conversa vem girando em torno da questão “quem é que tem direito ao afeto”. Quem é que tem direito ao cuidado afinal? A violação de direitos atende a todos/as, desde que você não seja uma pessoa rica e com sobrenome X ou Y, então tem muito estado de negação de direitos. Queria que tu comentasses um pouco a questão desse cuidado como esse elemento de mudança.

Juliana: As nossas ações eram todas cuidadas, já começa daí. Queríamos que as poucas horas que tínhamos fossem boas, então tinha planejamento, um cuidado de pensar e refletir. Tinha o cuidado de pensar, “pô, seria massa uma oficina de pipoca” e pensar os textos, o lanche… Da pessoa que ia sempre se preocupar com o transporte pra chegar em Abreu e Lima. Isso estava entre nós e era o que queríamos passar, destoar desse lugar que é só violência. A gente falava: “tenham cuidado entre vocês, isso é feito pra separar”, quando tinha alguma desavença. Uma falar muito e não deixar a outra falar, a gente sempre puxando pra que elas se ouvissem… o respeito quando cada uma falava também, então acho que o cuidado foi isso. O caso de Sara [Rodrigues] pra gente do Liberta Elas, assim como pra todas as mulheres, foi muito dolorido, porque a gente a conhecia. Ela tava entre as 15 que estavam na primeira ação de 2018, ficamos muito aperreadas e tentando dar suporte às outras que já estavam. É triste, mas o caso dela não é incomum: operações em flagrante. Entraram na casa dela sem mandado, mesmo com todos os argumentos legais pra estar fora – emprego fixo, era réu primária, mãe – e mesmo assim ela ficou um tempo e só saiu pela mobilização que houve, sem dúvidas. Mas muitas ficam. Agora mesmo tem mulheres grávidas – cerca de 11 – no sistema penal, tem bebê dentro do cárcere, é inacreditável que isso continue [no sistema judiciário de Pernambuco]! A total falta de cuidado. É falta de reconhecimento da outra pessoa como ser humano. Então é isso: fazemos as coisas com muito carinho, não em ver a outra pessoa como menor e que precisa de você, mas como uma troca, escuta, um diálogo. A gente debatia, aprendia e vibrava juntas. De tomar uma Coca-cola gelada até a dinâmica do beijo, é isso.

Dora: Trazendo pra um lado mais formal desse processo que é essa grande reação moralista contra esse ativismo pelo desencarceramento. Queria que comentasses porque para algumas pessoas eu acho que ainda é novo [o tema]. É forte o estigma do “ah, você é ativista dos direitos humanos, se fosse com a sua família…” você já deve ter ouvido isso demais “quero ver se você ia defender assim”. Aí queria que comentasses um pouco, como é estar nessa luta por esse tipo de ativismo nesse contexto que a gente tá vivendo hoje no Brasil? 

Juliana: É assustador. Eu sou abolicionista, foi uma construção/desconstrução e é um tema que é elitista né? Você precisa se debruçar, não acho difícil de ser percebido, mas é difícil para todos nós, porque vivemos numa sociedade onde a lógica punitivista está nas nossas relações pessoais. A direita é punitivista, mas a esquerda também é. Os movimentos sociais são, relações de amizade… A gente aprendeu isso né? De cobrar e punir, crime e castigo, desde o colégio, tá tudo entrelaçado nesse sistema capitalista de dominação. É muito difícil falar nisso, porque a violência é isso: te traz alguma segurança saber que alguém tá sendo punido – que não seja você. É uma sensação de falsa paz. Mas é uma coisa que tá posta aí, né? O encarceramento em massa não é uma coisa só do Brasil: é do sistema capitalista. Está mais presente do que a gente imagina, em nós, em ser abolicionista, ser anti proibicionista, é você lidar com as suas próprias correntes internas, suas próprias maneiras de punir ao outro e a si mesma. Ser abolicionista penal é isso: é você sonhar e se propor a pensar uma outra forma de organização social, porque acreditamos que a prisão nasceu nessa tentativa de ressocialização, mas nós vimos que não ressocializa em nada e que piora em tudo – dá muito lucro! Muitíssimo lucro! A própria proibição das drogas, o sistema penal, tudo isso dá lucro pra algumas pessoas e é interessante pra elas que permaneça assim. Temos que encarar o tráfico de drogas como uma indústria capitalista e a proibição faz as pessoas se sujeitarem a um trabalho informal que dá muito lucro pra pessoas que estão nos grandes escalões. Ser abolicionista é se atentar como a prisão é a união de tantas opressões e você realmente desvelar e ver a sociedade como ela é – porque é um monstro. Eu digo que é um grande monstro e ele tem muitos tentáculos no Executivo, no Legislativo, no Judiciário e também entre nós. Mas está aí crescendo né? Nunca se falou tanto em fundo pra polícia, muita coisa tá acontecendo que tá fazendo todo mundo repensar esse sistema aí que de justo não tem nada.

Dora: Queria que tu comentasses um pouco sobre o que é ser ativista mulher nesse momento e fazer um paralelo, porque somos ativistas, somos três mulheres brancas e estamos falando de um outro ponto de vista e como naquele ambiente do Bom Pastor você se vê, se você vê espelhos lá dentro.

Juliana: Não, não vejo meu corpo lá dentro. Mas também fui muito acolhida por essas mulheres que estão lá. Eu aprendi muito e senti muito carinho. Senti que minha luta, mesmo sendo mulher branca, com privilégios, na universidade, é importante também. Então esse é o segredo: a luta é na coletividade. É difícil? Muito! Nós somos muito complexas, mas é cada uma chegando com a sua arma: no Liberta Elas, cada uma tem a sua grandeza, o seu “superpoder” (não queria dizer isso, mas é isso), sua peça que vai encaixar. É troca, é escuta, é realmente você estar pela outra e entender o seu lugar… O tempo todo essa movimentação e isso é ser ativista: é você estar em movimento. O ativista é isso: a gente erra pra caralho, mas estamos tentando, estamos em movimento e é muito fácil criticar quem não está. Então, com certeza, meu corpo branco classe média com alta escolaridade fala muita merda e fez muita coisa errada, mas é isso. Estamos aqui pra continuar a luta, porque não tem tempo de ficar punindo a nós, não.  Tem que tentar se ouvir, se conectar e seguir, porque é muito difícil isso que estamos vivendo. Então é isso, eu amo ser mulher, eu amo ser ativista, eu sou ativista porque eu acredito na nossa potência, porque tem muita lágrima, muita dor, muito sangue, muito luto, mas também tem muita energia, muita mão, muito beijo trocado, muita mão apertada, muita instigação, vamos pra cima, vamo simbora.

Dora: Queria dizer que depois disso tudo, tem algo que faltou, ou alguma pergunta que você quer lançar pras pessoas?

Juliana: Queria dizer que o Liberta não sou só eu – eu sou a mais falante – a gente é coletiva mesmo, tudo decidido, e é essa potência mesmo que eu acho. Eu sempre acreditei que o caminho é coletivo. Mas nos últimos tempos, vejo isso de forma mais palpável e que nossa saída é se unir, sem precisar ser igual, mas que temos que estar fortes, ouvir e falar também, que é importante, e seguir também se perdoando, a nós mesmas e aos outros também. Ser menos punitivista mesmo. E não estou dizendo isso pra ser gratiluz, mas é isso: por uma sociedade menos punitivista e isso não quer dizer que a gente não seja firme.

3/4 DE AULA

Por Luciana Ferreira e Ivan Rubens Dário Jr

Se você se animar nesta leitura, faça-a como viajante. Não estamos falando daquele/a viajante que compra um pacote de turismo. Estamos nos referindo a um/a viajante movido/a por uma curiosidade, por um desejo de encontrar pessoas, lugares, culturas, movido/a por um desejo de encontros e, neste movimento, procura, busca, encontra-se mesmo que aos poucos, fragmentos, pedaços, porções. Movido/a, enfim, por este desejo de encontros.

É neste movimento que estamos pensando antes com o corpo que com a cabeça. Por isso, atentos/as ao mundo que nos rodeia, nos convoca o olhar e escutar as pessoas, pois o mundo é povoado de pessoas que não são exatamente assim como você e eu. O mundo é povoado por pessoas outras. Neste movimento de vida que passa por ver, ouvir, encontrar, agir, estudar, sentir e pensar, escrevemos este texto. 

Vivemos uma situação de dores, perdas, tantas dificuldades que as palavras faltam, fogem, nos escapam. Este momento é complexo:

1) o pior presidente de todos os tempos governa o Brasil;

2) um vírus letal está no mundo. 

Coincidência desastrosa que arrasta brasileiros e brasileiras para a morte. A cada dia os números de infecções e mortes aumenta. Publicamos este texto no final de abril de 2021. Completamos um ano de isolamento e vivemos a chamada segunda onda da pandemia. Estranho… saímos da primeira? 

Em condições normais os meses de abril colocam em muitas escolas todo um trabalho de preparação para o feriado de Páscoa. Crianças alvoroçadas com ovos, trabalhos com este tema, a expectativa para mais um feriado e o merecido descanso com o feriado. Mas neste ano foi diferente: o sentido de ressurreição, as cerimônias – missas, cultos, almoço pascal com ares de encontro festivo, a partilha dos ovos, grande parte disso foi substituído pelo isolamento social. “Fique em Casa” deu o tom deste final da quaresma. Toda a lógica da ressurreição, do renascimento, da nova vida possível numa mesma vida foi substituída pelo isolamento social. Cuidar de si e cuidar do outro nunca foi tão necessário para seguirmos (enquanto humanos) no mundo e com o mundo.

Entramos no segundo ano de isolamento, encontros em espaços fechados estão proibidos. Mas aula é encontro!!! 

Que tempo é esse? 

Como está isso? 

Como lidar com essa contradição? 

A educação escolar está ameaçada de paralisia?

Como professores, estudantes, famílias estão lidando com esta situação?

Fechadas/os desde o final de fevereiro/2020, encontramos Brasil afora muitas realidades, a pandemia evidencia a cada dia a desigualdade social, econômica. E agora está ainda mais evidente a desigualdade digital. É constitutivo da escola acolher as diferenças mas, sem encontrar as diferenças, sem vê-las, sem senti-las, resta ignorá-las? Estude quem conseguir é a revelação de um lamentável salve-se quem puder. São muitas as revelações. Quem está atento viu (e vê) de um tudo: aulas por canais de televisão; Aulas pela internet via plataformas pagas, não pagas; Aulas por materiais impressos distribuídos a cada estudante; Aulas dadas pelos pais; Aulas dadas pelos irmãos mais velhos; Aulas mediatizadas pelas telas, pelo celular; Falta de Aulas por falta de telas; Abandono de aulas, algo que aumentou muito.

Um estudo publicado em janeiro de 2021 pela Unicef aponta que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020 no Brasil. Outros 4.125.429 afirmaram frequentar a escola sem acessar atividades escolares. Até mesmo famílias que conseguem manter uma rotina de estudos com as crianças e possuem internet em casa estão enfrentando dificuldades em manter esse modelo de estudos onde a interação se dá pelas telas. E como nosso interesse com este texto é pensar a aula, perguntamos: 

Isso é aula? 

O que é uma aula?

Na tentativa de encontrar uma resposta mesmo que provisória, recorremos a algumas pessoas que, cada um à sua maneira, pensaram a respeito disso e desta maneira nos ajudarão empurrando nosso pensamento a pensar mais. O abecedário do filósofo Gilles Deleuze começa com a palavra AULA. Diz o filósofo:

Para mim uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula cada grupo ou estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos… As pessoas tem que esperar… Obviamente tem alguém meio adormecido, por que ele acorda misteriosamente no momento em que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém, o assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção, é tanto emoção quanto inteligência, sem emoção não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento do centro de interesse que pulam de um lado para o outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura.

Gilles Deleuze

A professora Karen Rechia e o professor Jorge Larrosa, ela brasileira e ele catalão, também pensam a respeito de AULA. Retiramos o seguinte fragmento de texto do livro P de Professor:

a aula constitui o aluno em aluno (e idealmente em estudante) e o professor em professor. Por isso seu limite é (a porta) tão importante. É ao entrar na sala de aula que o aluno se converte em aluno e o professor se converte em professor. O fato de que a aula tenha algo de solene (como corresponde ao espaço público) é muito importante para isso. Sinto esta transformação, já que ao entrar na sala de aula ganho certa gravidade, algo que exige de mim atenção, uma maneira de falar com cuidado (…) A sala de aula é também uma cápsula atencional muito interessante distinta de qualquer outra (…) eu acredito que na sala de aula não se pode estar “como em casa” (…) é preciso fazer com que a sala de aula seja sentida como um espaço separado, distinto, com suas próprias normas e rituais, um espaço exigente.

Trecho do livro "P de Professor"

Vimos acima dois fragmentos de pensamentos a respeito da aula no campo da filosofia e da educação. Veremos a seguir dois fragmentos de aula nas artes. Encontramos no poema denominado Aprendimentos um fragmento do pensamento do poeta mato-grossense Manoel de Barros. Diz o poeta das coisas simples:

(…) Estudara nos livros demais.

Porém aprendia melhor no ver,

no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.

Se admirava de como um grilo sozinho, um pequeno

grilo podia desmontar os silêncios de uma noite!

Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles, esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova

(…) e que a beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela.

O que mais sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.

Manoel de Barros

Engana-se quem acredita que São Paulo tenha sido algum dia o túmulo do samba. Nada disso. Geraldo Filme é um sambista popular nascido em São João da Boa Vista, interior do estado de São Paulo, fundador da escola de samba paulistana Vai-Vai. Talvez você não o conheça pelo nome mas o conheça assim:

Quem nunca viu o samba amanhecer / Vai no Bixiga pra ver / Vai no Bixiga pra ver (…)

Na canção intitulada Garoto de Pobre, seu Geraldo canta assim:

 

Garoto de pobre / Só pode estudar / Em escola de samba / Ou ficar pelas ruas / Jogado ao léu / Implorando a bondade dos homens / Aguardando a justiça do céu / Seu lápis é sua baqueta / Que bate o seu tamborim / Ninguém olha este coitado / Senhor qual será o seu fim?

Na escola de samba da vila / é onde ele vai estudar / Ensaia o ano inteiro / Tem provas no carnaval / Ele desce dos morros / Ele vem das vilas / E chega a cidade / Alegra os turistas / Recebe os aplausos da sociedade / Se criar novos passos / Criar nova ginga / Ou compor um samba / Está aprovado, recebe o garoto / O diploma de bamba

Na escola de samba / Aprende a rir, / Aprende a sofrer, / Aprende a chorar / Mas não sabe ler / Doutor qual o seu destino será?

Geraldo Filme

Depois de encontrar estes pensamentos acerca de AULA e ESCOLA, depois de ler as linhas acima, vamos tecer juntos essas linhas. Gilles Deleuze apresenta que aula é colocar a matéria pensamento em movimento. Larrosa e Karen colocam a atenção no sentido constitutivo de ser estudante e ser professor. Manoel de Barros mostra uma aula com o mundo, com a natureza, em contato e contágio. Geraldo Filme coloca a questão: quem pode estudar? Para ele, garoto de pobre só pode estudar em escola de samba, criar passos e gingas para enfrentar as injustiças que não foram criadas por ele, por um modo de vida que não garante as mesmas oportunidades para todos e todas. Quando o baque é muito pesado, sobreviver primeiro. Apenas um corpo vivo pode aprender a ler, aprender a escrever e etc, etc, etc.

E mesmo diante da filosofia, da educação, da poesia e do samba, apesar desses encontros todos, do pensamento, esses encontros agora estão nas telas. É bem verdade que estamos nos acostumando cada vez mais com as telas. As relações humanas estão cada vez mais mediadas, midiatizadas por telas. As telas invadiram nossas vidas já há algum tempo. As casas possuem uma dezena de aparelhos que nos fazem atravessar o mundo em um clique. TV’s, computadores, celulares, estão nos cômodos como se fossem pessoas. Não raro, assumem o lugar das pessoas: tocam, falam, fazem barulho, emitem ruídos, se fazem presentes, preenchem os espaços, limpam o chão. Fazem inclusive uma coisa que algumas pessoas não fazem: escutar. Isso mesmo, esses aparelhos nos escutam, registram e dão retorno. Você já reparou nos anúncios e nas propagandas que aparecem nas suas redes sociais ou seu email gratuito?

Mas se antes eles conviviam com a gente, com o isolamento social tais aparelhos ganharam centralidade: são fonte de informação, companhia, entretenimento, espaço de festa, estudo, música, exercícios…. enfim, tudo! (ou quase tudo)

Aqui estamos situados: a presença destes aparelhos nas casas e nas vidas. A presença desses aparelhos colocados como parentes e convivendo intimamente conosco. A privação dos encontros como consequência do isolamento social. Mas os encontros são constitutivos do espaço escolar… Escola é lugar de encontro!!! 

Se faz escola estando em casa? Se faz escola quando os encontros estão limitados às telas? Se faz escola pela internet? Que tipo de encontro é esse? 

O que é uma aula?

1/4 de aula

Abril de 2020. Duas casas geminadas, uma grande família. Grande, agitada e barulhenta. Muito entra e sai de gente da casa, colegas, parentes… Tudo silenciado pela pandemia. A casa mudou junto com a mudança na vida, nos ritmos, todo um movimento cessou. Mas naquela manhã algo diferente me atravessou.

6h50, passos arrastam um chinelo. Sobe as escadas e entra lentamente no quarto. Abre a porta, embrulhada em uma coberta, touca na cabeça, caneca de café com leite e um pão nas mãos, despeja tudo isso sobre a mesa, livros e um estojo cheio. Como ela conseguiu carregar tudo isso? Diz: “bom dia” e liga um notebook. A abertura da tela fez entrar no quarto meia dúzia de vozes, meninos reclamando e meninas agitando, falas de insatisfação típicas dos 15 anos de idade: é muito cedo e faz muito frio. Entra também uma voz animada, meio gripada, adulta:

– Bom dia! Bom dia! Vâmo acordar, povo! Quem aí está a fim de dar um mergulho na piscina nesta manhã? Hein?! Muito frio? Então já que ninguém vai mergulhar vou fazer a chamada!

Mas que loucura é essa? Deve estar fazendo uns 5 graus nesta manhã e o cara pergunta quem quer mergulhar na piscina???

Chamada? Um computador quer fazer chamada? Como assim? Seria um sonho desses que acontecem na fronteira do sono e da vigília? Seria um pesadelo? Não adiantou mexer o corpo na cama, não adiantou cobrir a cabeça com o travesseiro… 

Chamada??? Sim porque aula deve ser aula. Aula com ou sem presença, tem chamada. Descobri isso e comecei a pensar neste espaço-tempo demarcado dentro da aula, da escola, somente agora, essa coisa de ter seu nome dito em público, nome e sobrenome. No livro “Em defesa da Escola – uma questão pública”, Jan Masschelein e Maarten Simons (2013) comentam a chamada revela o sentido de anonimato da Escola. Na chamada você não é filho do fulano de tal, neto do beltrano, mesmo carregando um sobrenome. Na escola você é o João, a Maria, o Roberto e ponto. Quando o professor ou a professora chama seu nome você responde: presente! Piadas, apelidos, gracinhas costumam aparecer também. Será que a menina vai dizer PRESENTE sem estar presente?

Não foi preciso. Ela não disse nada, nem os seus colegas. O professor foi ditando os nomes presentes a partir das “janelas abertas” na tela dele. E quem disse que eles estavam presentes?

Nenhuma resposta do tipo:

– Presunto!

– Faltei!

– Tô aqui!

– Faltei mas tô levantando a mão!

Nada de brincadeira. Nenhuma voz exceto a do professor que ensinava inglês e falava sobre os ‘genitive cases’.

Fiquei ali, na cama de algum modo participando da aula, sim porque para participar era preciso apenas estar ali com o computador aberto. Câmera fechada. Microfone fechado. A adolescente ali sentada parecia um corpo sem nada, dedicado ao tédio da aula mediada pelo computador.

Levantei, dei um beijo nela e perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”

E ela: “Tô achando ótimo! Assim não preciso ver a cara desses moleques!”

Para ela o estudo neste momento fica melhor se separado da convivência. Bom, se Gilles Deleuze estiver correto, esse adormecimento do corpo durante uma aula é parte da aula. Espera-se que o conceito despertador ative o corpo e coloque em movimento a matéria pensamento.

Seria essa uma aula?

 

 

2/4 de aula

 

Da cozinha escutei outras vozes. Pensei: Ah, tem mais alguém fazendo aula. Segui os sons, cheguei ao quarto de outra. Bati na porta, abri devagarinho… achei sinceramente que a encontraria deitada na cama, com computador aberto, meio dormindo, meio acordada, livros jogados, cobertas na cabeça. Para nossa surpresa a mais nova estava sentada à mesa, computador e livros abertos. Olhava firmemente para a tela enquanto encostava a sola do pé direito na nuca. A voz que saia da tela era feminina, escuto a palavra “Revolução”.

Ela desvia o olhar da tela, me olha, e sorri! Solta a perna, estica os braços pedindo um abraço. Vou até ela mais curiosa do que saudosa. Quem estaria ali falando e prendendo a atenção da menina de 12 anos daquela maneira? Uma figura com um gorro verde de tricô, óculos, muito jovem. Livros ao fundo. Falava empolgada sobre a diferença de “Revolta e Revolução”. A pequena diz: “esta é minha professora de História, ela é muito linda né?”

Fiquei ali observando… Não parecia exatamente uma professora. Seria o cenário, cheio de livros, um quadro pintado a spray ao fundo? Seria a desenvoltura dela ao falar para a câmera? A mais nova estava envolvida na aula, dando um jeito de manter o corpo ativo, ela que é puro corpo. Me senti alegre porque se ela estivesse na sala de aula da escola, naquele belo prédio antigo abriga uma escola centenária, lhe seria negado o movimento do corpo, pés nas orelhas, alongamentos necessários para quem pratica ginástica artística. Pode ser até que ela pense mais fortemente se mexendo assim! Pode ser…

Perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”

E ela: “Não gosto nem assim, nem do outro jeito, mas aqui do quarto eu posso botar o pé onde eu quiser!”

Suspeitas confirmadas. Jorge Larrosa fala do sentido originário da Escola, seu sentido grego de ‘Scholé’ na perspectiva do ‘tempo livre’. Tempo livre para o estudo, para se afastar do mundo e dedicar-se a compreendê-lo, tempo livre para agir no mundo. Na citação acima, Larrosa e Karen Rechia falam do espaço pedagógico e tempo pedagógico, ambos constituintes da escola e fundamentais para o estudo sobretudo durante a vida escolar. Assim, aula é um espaço tempo onde se estabelecem a figura do professor e a figura do aluno. As carteiras, a sala, a mesa do professor, o quadro, tudo isso é extremamente importante na realização de uma aula, importantes para que a arte de estudar, a arte de observar o mundo e pensa-lo, aconteça.

Então, seria essa uma aula?

Saio do segundo quarto e fecho a porta.

3/4 de aula

 

Ouço vozes, um bocado de vozes, vozes de criança… Sobressai uma voz mais forte, adulta. Bato e abro a porta devagar. Ela está sentada de costas para a porta, atenta à tela. A tela contém mais de 20 cabecinhas frenéticas. Não acredito no que vejo. Chego mais perto. É isso mesmo: ela está professora. Não são mais as meninas, agora estou observando uma mulher se fazendo professora. Ela olha para todas as carinhas na tela, ela fala com todo mundo ao mesmo tempo, fecha microfones de alguns, abre de outros, explica, chama a atenção para si, sorri, vibra, mostra uma dobradura, diz a página. Cansei só de olhar.

Ela não consegue nem me ver ali ao vivo, no quarto dela. E eu também nem consegui perceber que o companheiro estava ali dormindo na cama ao lado. Pensei: não deve ser uma manhã tranquila para ela.

Se uma me mostra a liberação do tédio e a outra me apresenta a liberação do corpo, se fazendo professora a terceira mostra atenção total aos mais de 20 rostinhos na tela como se apenas com os olhos ela pudesse evitar que caiam, que chorem, como se pudesse garantir que entendam, que aprendam, que acompanhem e etc. Ela reivindica a presença, ela leva muito à sério o que está fazendo. Ela está comprometida com a aula.

Manoel de Barros o poeta das ‘Ignorãças’, das Invenções, nos disse em seus ‘Aprendimentos’ que é preciso pegar, cheirar, sentir, provar… que a beleza está exatamente em não saber para que isso serve.

O esforço dela, e de muitas professoras e professores neste momento, é grande. Mas será que por estas telas existe a experiência que sugere o poeta? As telas fazem a mediação, possibilitam um certo tipo de encontro com hora marcada, assim como na Escola, mas certamente não possibilitam a inteireza dos encontros limitando a experiência humana, limitando a produção dos sentidos, dos atravessamentos, dos afetos, das emoções.

Junho de 2020. As mesmas casas geminadas, a mesma grande família. Tudo igualmente silenciado pela mesma pandemia. A casa já mais adaptada às mudanças na vida impostas pelo isolamento social, adaptada aos novos ritmos, desacelerada. Na tela plana do notebook várias crianças vestidas tipicamente, quartos com bandeirinhas, carinhas pintadas e a professora sorrindo. Uma espécie de diversão se revelava nos gestos, figurinos e cenários. No quarto de aula fundamental II, indiferença. Já no quarto de aula ensino médio, cansaço (cochilou na segunda aula). Mas o surpreendente aconteceu na hora do intervalo. A adolescente voltou para a aula fantasiada e assim passou o dia. Além da festa junina online, queremos mesmo contar o que observamos durante a aula de física.

O jovem professor tocando viola caipira, música bonita, doce. Silêncio da tela plana. O quarto sala de aula foi tomado pelo dedilhado do professor. Depois de tocar e cantar lindamente, falou da canção, da escolha por aquela canção, falou do seu gosto por viola caipira e, sobretudo, falou do caipira. O professor criou uma imagem muito interessante do sujeito caipira em sua simplicidade. Caracterizou, em seu discurso, uma subjetividade caipira na valorização das coisas simples da vida, palavras dele. Falou da vida no campo… A estudante adolescente comentava: “que fofo! adoro essa aula”.

Dilatação dos corpos, propriedade físicas, contração e dilatação… o professor apresentou pinturas do prédio da escola, falou dos pintores e dos artistas, falou das imagens e mostrou detalhes. Piso, paredes, blocos de concreto, separações, espaços vagos a serem preenchidos pelos movimentos dos corpos. Corpos duros como concreto, se movimentam. Talvez seja mais fácil concluir que o ferro e o concreto se movimentam quando o professor movimenta o pensamento dos alunos e das alunas. Seria a cabeça mais dura que o concreto? seria o pensamento mais mole que o cimento?

Como será para elas este ano letivo?

Será que isso é aula?

E quem não tem computador, nem internet, quem não sabe usar essas coisas, tem aula?

E para que aula se ninguém sabe o que será do mundo?

O que será delas?

Neste tempo de tantas incertezas, neste tempo onde as molduras foram rompidas assim como um rio que arrebenta os barrancos onde corre a água, neste tempo de incertezas talvez seja mais interessante nos dedicarmos às perguntas.

 

 

Seriam aulas nos 3 quartos? haveria uma aula por inteiro?

 

Talvez sim, talvez não. Estamos pensando-as como tentativas de aula. Muitos/as alunos e alunas desejam estar com os seus e com as suas nessa maravilhosa viagem movida pela curiosidade, que aponta o olhar, que coloca a atenção nas maravilhas do mundo, que provoca a curiosidade e o desejo de vida e de mundo. Muitos/as crianças e adolescentes que abandonam a escola porque, diante da fome e das necessidades da casa, estudar não lhes era possível. “Garoto de Pobre” só pode estudar em Escola de Samba onde o lápis é a baqueta que bate o tamborim. Onde a criação de novos passos, a criação de novas gingas ou composição de novos samba, aprova e certifica: recebe o diploma de bamba!

Queremos pensar a Escola nesta perspectiva apresentada na sabedoria da cultura popular: escola é buscar um sentido, escola é encontrar um sentido, escola é significar o mundo, modifica-lo. Queremos pensar a Escola como tempo suspenso, quase que afastado de uma certa realidade, para pensar sobre ela. E, assim, com ideias renovadas, agir. Escola é experiência com força de arrasto. Assim, as tentativas de escola estão em muitos lugares, de muitos jeitos, nos esforços seja por chamada com ou sem vídeo, com jogos e músicas e criações para que o encontro (mesmo que à distância) aconteça.

Observar os 3/4 de aula foi estranho. Estranho para quem se produz educador na dureza da vida e, ao mesmo tempo, se faz estudante na pesquisa. Lutamos contra as tentativas golpistas de Educação à Distância como pregam algumas correntes. Mas após um ano trancados em casa, nos perguntamos como estaríamos sem estas tentativas de encontro mesmo que mediados por telas?

Se estamos cercados de genocidas, genocídios, vermes e vírus, que a escola seja um espaço de refúgio, um espaço para pensar, um espaço para resistirmos à negação do pensamento. Falamos de uma escola que se materializa em um espaço (hoje vazio de encontros) e num tempo, um tempo livre para que o pensamento possa se colocar à deriva em horizontes de criação. Talvez encontremos o quarto de aula para somar 4/4: a inteireza de uma aula. Afastados da realidade dura e por vezes insuportável, que este espaço-tempo não se deixe capturar neurótica produtividade excessiva imposta pelo mercado.

Façamos hackeamentos, nos distanciando, mesmo que por algumas míseras horas, para encontrar potência: viver é mais que sobreviver.

Façamos hackeamentos para pairar, para voar, para estar acima, para buscar o alto, para alcançar o céu antes que ele quede.

Luciana Ferreira é pedagoga e educadora popular, doutoranda em Educação pela UNESP-Rio Claro e integra o coletivo da Escola de Ativismo.

Ivan Rubens Dário Jr é geógrafo, educador e amigo da Escola de Ativismo. Autor de Pedagogias da Cidade: corpos e movimento.

A chave do tesouro é o tesouro

A chave do tesouro é o tesouro

As senhas fazem parte da nossa vida há muito tempo. São códigos mágicos que abrem uma caverna de tesouros (Abre-te Sésamo!), fazem aparecer ou desaparecer coisas (Abracadabra!) ou, em um contexto mais mundano, protegem nossas bicicletas quando as prendemos no poste. Nos últimos anos, no entanto, as senhas passaram a ser tão presentes nas nossas vidas que não há um dia sequer que não tenhamos que digitá-las, lembrá-las, criá-las ou atualizá-las.

Há quem encare essa montanha de caracteres como um transtorno, uma chatice, um atrapalho, uma pedra no meio do caminho. Realmente, com tanta informação fluindo sobre nós, tantas contas, perfis e aparelhos para gerenciar, não é à toa que as pessoas odeiam as senhas. Tem gente, inclusive, que se nega a colocar mais senhas no mundo: repetem a mesma combinação para tudo ou vivem de clicar no “esqueci a senha” (como nesse stand-up meio tosco, mas representativo, que achei no Youtube, em inglês).

Mas há também quem veja beleza nessa relação diária com a memória e as palavras. Há quem procure, nesse emaranhado de códigos cotidianos, uma chave para transformar a própria vida. É o caso de Momo Estrella, que escreveu um texto contando como usou as senhas para superar o fim de um relacionamento e retomar o controle sobre sua vida.  A ideia de Estrella era a de que, se precisamos digitar todos os dias a mesma sequência de caracteres, então que ela seja suficientemente potente para gerar algum movimento na vida. Então, em vez de palavras-passe (password), ele passou a construir mantras, como, por exemplo, esse aqui:

P4redefumar@paras3mpre

Em 2014, a The New York Times Magazine publicou um especial chamado “A vida secreta das senhas” (texto e vídeos em inglês). Intrigado sobre como as pessoas constroem suas senhas, cheias de personalidades e de vidas secretas, o jornalista investigativo Ian Urbina se lançou no desafio de buscar as histórias por trás desses códigos. E o que ele descobriu foi que, para muitas pessoas, as senhas são mais do que uma chatice diária, são como “fragmentos de nossa vida interior” – mantras motivacionais, xingamentos pro chefe, declarações de amor, piadas internas, cicatrizes emocionais. As histórias coletadas na reportagem mostram que as senhas são como uma “tatuagem em uma parte privada do corpo, elas tendem a ser íntimas, compactas e expressivas”.

Ainda que especialistas em segurança digital (cof, cof) aconselhem que devemos criar senhas aleatórias, sem referências à nossa vida e, de certa forma, descartáveis, é interessante como as pessoas tendem a organizar símbolos em linguagem e buscam dar significado a elas.

Organizando direitinho acredito ser possível construir senhas fortes, bem cuidadas, e que tenham significado para nós, sendo fáceis de lembrar, mas difíceis de serem descobertas. Para mim, inclusive, esta parece ser uma prática mais potente, mais próxima da noção de bem-estar do que do árido território da segurança digital. E com um grande potencial de transformar a nossa relação com as senhas e com os cuidados digitais. Esse conto, escrito por Jacqlyn Phillips, por exemplo, é uma grande inspiração. Nele, a personagem principal cria senhas como se fossem histórias. Cada senha criada é uma frase da história. Cada história tem um significado para a personagem e marca um momento da sua vida. Um exemplo de história/senhas criada pela personagem é a seguinte:

a burguesia não usa buffets

eles são experts em comida

eles consideram buffets repugnantes

aperitivos, por exemplo, nem são servidos

então a burguesia vai à tchecoslováquia

Seja como for – pedaços de memória, amuletos, lembretes, poemas ou só um monte de caracteres -, as senhas são como códigos mágicos que guardam (ou podem conter nelas mesmas) muito sobre nós. São, ao mesmo tempo, a chave para o tesouro e o tesouro. Por isso, elas precisam de cuidados – tanto na hora de criá-las quanto na hora de guardá-las. Aqui vão algumas dicas para criar e cuidar das suas senhas/tesouros:

→ Crie frases-senhas, em vez de palavras-senhas. Quanto mais curta for a sua senha, mais fácil e mais rápido ela poderá ser decifrada. Crie senhas com 6 ou mais palavras. Podem ser palavras aleatórias ou que faça sentido somente para você. Mas cuidado com frases óbvias, letras de música ou frases em que a sequência seja fácil de adivinhar.

→ Não crie senhas com dados pessoais como datas de aniversário, endereço, nome de parentes ou de bichos de estimação. Esse tipo de informação pode ser facilmente obtida através de vazamento de dados, de uma análise atenta de suas redes sociais ou de pesquisas sobre você na Internet.

→ Crie senhas misturando palavras em línguas diferentes, dialetos, gírias. Robôs usados para quebrar senhas usam dicionários, por isso, quanto maior a diversidade de línguas e o uso de palavras não dicionarizadas, mais difícil será a tarefa de decifrar sua senha. Use a criatividade, invente palavras, misture inglês, português, Iorubá, Pajubá, linguas indígenas.

→ Use senhas diferentes para cada serviço. Se alguém descobrir a sua senha, seja por engenharia social, phishing ou vazamento de banco de dados, ela poderá acessar diversas contas suas de uma só vez, e causar um belo estrago na sua vida. Siliga!

→ Troque suas senhas com regularidade. Acredite, vazamentos de bancos de dados acontecem o tempo inteiro, mesmo em serviços populares, deixando senhas e contas expostas. Trocar de senha a cada 6 meses pode ser uma boa, ou sempre que desconfiar que a senha foi comprometida.

→ Guarde suas senhas com carinho. Não deixe suas senhas em documentos na nuvem (Google Drive, Dropbox…), em arquivos sem criptografia no seu computador, ou em e-mails. Também não é uma boa prática anotar a senha em um post-it e deixá-lo perto do computador!

→ Use um gerenciador de senhas! Ora, se você vai criar senhas complexas, longas, e vai ter uma senha para cada serviço, vai ser impossível memorizar todas elas. Por isso é importante utilizar um gerenciador de senhas, como o KeepassXC. Com ele, é possível guardar e organizar logins e senhas de forma criptografada, e você só precisará lembrar de uma senha, a que abre o gerenciador. O KeepassXC também vêm equipado com um gerador de senhas, que cria senhas aleatórias, misturando diferentes tipos de caracteres.

Consciência Negra é todo dia!

A gente não nasce negro, a gente se torna negro.

É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora.

Lélia Gonzalez

O dia da Consciência Negra é marcadamente um momento para realizarmos reflexões coletivas fundamentais sobre o  enfrentamento constante do racismo em todos os âmbitos sociais, sobre a luta contra a opressão, desigualdades raciais e para enaltecer e reconhecer a cultura afrobrasileira, bem como os processos de luta e resistência do movimento negro.

Compreendemos que os silêncios e apagamentos históricos são muitos e que o genocídio-etnocídio nunca parou. Nunca houve trégua para os povos pretos e afroindígenas do Brasil. Então, para que ocorra uma real transformação social, nosso ativismo necessita ser antirracista, honesto e responsável para com a vida e história de tantas/os companheiras/os de luta. Compreendemos que para a construção de um país melhor e mais junto será fundamental compreender e combater o racismo e todas as desigualdades geradas a partir dele.

Para provocar uma reflexão hoje, partilhamos a canção “Marielle – Quem matou? Quem mandou matar?” de Gessica Beda, com a produção do clipe realizadas pelo grupo Força Tururu, coletivo paulistense, contemplado pelo Edital Periferias do Recife da Escola de Ativismo.

A música traz conexões e é um manifesto de uma mulher preta e periférica sobre um dos casos de assassinato e violência policial que vitimou a vereadora Marielle Franco, um trauma para todo o grupo progressista político do país. E traz a pergunta fundamental, que segue firme e forte, sem uma tomada de decisão e resolução do judiciário brasileiro: quem mandou matar Marielle Franco?

: O Coletivo Força Tururu existe há 12 anos e atua em Recife e RMR, com formações em comunicação popular, resistindo contra a violência policial e sendo importante canal para as demandas da comunidade e de acolhimento. Viva Tururu!

E assim como ocorreu com Marielle, vidas negras tem sido sistematicamente atacadas e violadas, seja pela janela do sofrimento psíquico e violências extremamente sofisticadas e cruéis. Assim o foi com o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, que teve sua vida cruelmente retirada por seguranças brancos no Carrefour, em Porto Alegre na véspera do dia da Consciência Negra.  A necropolítica em seu pleno funcionamento deixou um país perplexo, mas não surpreso. Temos Claudias, Albertos e Migueis todos os dias e isso não é normal. Isso doi e revolta. Não temos piedade de vidraças, temos solidariedade com a vida de coompanheiras/os.

Com tecnologias de resistência sofisticadas o povo preto do Brasil resiste, mas isso não pode ser suficiente. É preciso que a sociedade realmente se levante pela luta antirracista, com firmeza e compromisso com políticas públicas efetivas e isso perpassa todos os graus da luta por emancipação e justiça social. Como bem afirmou Djamila Ribeiro, em entrevista ao Roda Viva, no último dia 9:

“como meu babalorixá diz, que a felicidade é uma obrigação ancestral, que apesar de tudo é importante que a gente sonhe, Candomblé trabalha mas ele também é festa, que a gente também se permita esses momentos, que a gente entenda que nós temos direito à felicidade. Entender que nós temos direito à felicidade é um movimento fundamentalmente anticolonial porque numa sociedade que nos odeia, a gente ser feliz, é praticamente uma afronta.”

Em um dia como hoje afirmamos que todos os dias devem ser de celebração, reconhecimento e fortalecimento da luta dos povos pretos do Brasil. Hoje celebramos Géssica Beda, Força Tururu, Érika Hilton, Dani Portela, Carol Dartora, Djamila Ribeiro, Blogueiras Negras, Sueli Carneiro,  em nome de tantos/as que vieram antes e virão depois, porque é fundamental ser feliz para poder nos dar suporte e 2020 vem levando os limites para outros patamares de provação. Porque o caminho para a libertação se faz todos os dias com organização,  fortalecimento e reconhecimento da trajetória das/os ativistas pretas/os que nos inspiram e que lutaremos para honrar não só hoje, mas sempre.


MARINA PRESENTE!

A dor de perder uma companheira não se mede. Ainda mais quando na verdade ela foi covardemente tirada da gente. A única coisa que a gente sabe é que dói. Demais.

Foi um grande choque pra nós, da Escola de Ativismo, receber a notícia de que amanhecemos sem você hoje, Marina. Desejamos amor e um caminho de cura para a imensa dor da sua família, do seu companheiro, amigas, amigos e todas as pessoas que tiveram o grande presente de te conhecer, amiga.

A gente grita: Marina Harkot presente!

E grita desejando que assim ela possa voltar pra gente, pra nos agraciar com a leveza do seu ser, com a sua presença, com a sua generosidade, com a sua inteligência e um desejo feroz de mudar o mundo – e tudo isso pedalando!

Nossa companheira valorosa desenvolveu com a gente trabalhos, ações diretas, organizou movimentações por esse Brasil todo, presenteando todas e todos com sua presença e amizade, que ela entregava pra gente com aquele sorrisão bonito e franco, do alto do seu ser.

Marina feminista, pesquisadora, brilhante. Marina companheira de vida que colocava o mundo todo e os seus sonhos de cidades mais justas que respeitassem as pessoas ciclistas, principalmente as mulheres, no seu abraço. Marina que recusou um mundo de violência e desigualdade sem jamais deixar de agir por uma outra vida possível. Essa foi a luta da sua vida.

E é essa luta que a gente honra e sente. Esse é o seu legado. Obrigada por tudo, Má.

#MarinaPresente #JustiçaParaMarinaHarkot #Nãofoiacidente

As ruas 5, por Marco Baratto/MST

Apresentamos as mesmas questões para um conjunto de pesquisadores e ativistas sobre um tema inescapável de toda luta social: as ruas.

Confira abaixo a reflexão de Marco Baratto, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, o MST.

Qual o significado da rua para a mobilização e as lutas sociais no Brasil? Esse significado está mudando agora?

Na luta de classes – e para que a gente possa alterar a correlação de forças e avançar nas reais transformações sociais no Brasil ou em qualquer país do mundo –, a luta de massas, a luta de rua, a mobilização popular, é fundamental, é um instrumento poderoso. É algo que pode concretamente não só alterar governos, alterar as estruturas, mas também pode mudar a forma de se pensar política, de se construir política.

Se formos pensar o golpe contra a Dilma (mesmo sendo uma movimentação da classe média, um processo de guinada para o neofascismo e para o conservadorismo no Brasil, que sempre existiu mas se massificou), teve um elemento fundamental quando a classe média conseguiu chegar nos pobres e foi para as ruas. Se a gente buscar no passado a mobilização das Diretas Já, a luta contra a ditadura, as ruas também foram fundamentais pra que se reestruturassem processos políticos e estratégias políticas.

Com certeza, as lutas sociais, as lutas de rua, serão fundamentais para alterar essa correlação de forças,  e nós dos movimentos de esquerda, dos movimentos sociais, dos grupos, temos também que dar uma guinada novamente e tirar o Bolsonaro. Ou mesmo criar uma estratégia pra que o impeachment seja viável. Lembrando que qualquer processo de impeachment também se dá a partir do elemento da mobilização popular, da luta de massas nas ruas. A pressão popular é o estopim inicial para que se pressione os poderes e assim se possa avançar em processos de transformação, seja institucional, mas seja também do ponto de vista da luta popular.

Nós estamos falando isso em uma democracia burguesa como a brasileira. De outras formas, em outras sociedades, você tem condição de criar espaços de revoluções como já ocorreram em países no século XX. Mas ai é outro cenário, é outra forma de luta, é outra linha política.

Por causa da pandemia, as formas de se fazer luta têm que ser mais criativas, mais inteligentes. E o avanço da tecnologia faz com que também se mude um pouco o foco. As ruas vão ser sempre importantes, mas esse cenário atual das redes sociais, dos meios de comunicação, é fundamental na disputa das narrativas. E isso conectado obviamente com questões práticas, concretas.

O exemplo do MST, das ações simbólicas, ou das ações de solidariedade de produção de alimentos, no qual você atua em uma ação prática, para disputar um determinado ideário, da alimentação, da comida, tudo é potencializado quando consegue viralizar nas redes sociais, quando há instrumentos de comunicação que conseguem alcançar as massas. Hoje é uma tarefa nossa: não tem como, vamos ter que nos debruçar em cima dessas formas de se fazer lutas e de disputar consciência na sociedade.

Quais, na sua opinião, são os prós e contras de se ir às ruas hoje?

Hoje, com a pandemia, há movimentos prós e contras. Sempre pensando à esquerda, olhando por nós. É que a direita – os fascistas, os neofascistas, os conservadores – seguindo o discurso do seu presidente, não deixou as ruas. Eles estão indo pras ruas, estão fazendo manifestações.

A sociedade, de alguma forma, também está na rua, porque o trabalhador pobre nunca deixou de estar na rua. O isolamento e a quarentena, na real, não existe na essência. Porque os trabalhadores, no geral, estão na rua. No início, havia uma potencialidade muito grande; a gente vem defendendo o isolamento e a quarentena, e essa é a decisão correta. Porém, o discurso e a condição real dos trabalhadores é de ir ao trabalho. Na mineração, por exemplo, os trabalhadores explorados pela Vale estão trabalhando, nunca tiveram quarentena. Então quem é que fala com eles, quem é que conversa com esses trabalhadores?

A turma da direita, da ultradireita, está indo nesse discurso e esse discurso cola no conjunto de trabalhadores. O fato de termos feito, mesmo que com os cuidados necessários, manifestações de enfrentamento a isso foi importante. Em Brasília, os coletivos da periferia, dos times de futebol, o povo das quebradas, todos foram pra rua e o protagonismo é importante. Nós, os movimentos históricos, mais clássicos, temos que apoiar esse protagonismo e apoiar essa ida, mesmo entendendo que no MST a nossa decisão é manter o nosso povo em isolamento, em quarentena, e não fazer deslocamento de massa nesse período, para não contradizer nosso discurso. Mas, ao mesmo tempo, é importante a gente apoiar e criar uma nova correlação de forças: enfraquecer o governo, enfraquecer os movimentos de direita e, ao mesmo tempo, conversar com os trabalhadores, seja pelas ações simbólicas, seja pelas ações de solidariedade.

O nosso discurso é contrário ao discurso do governo. Enquanto o governo diz que a pandemia não existe, que é uma gripezinha, nós estamos dizendo “não, está matando milhões de pessoas, e não é nós que estamos dizendo, tá todo mundo dizendo, no mundo inteiro”. A gente mantém uma coerência no discurso e, ao mesmo tempo, enfrenta esse discurso de que tem que abrir tudo do governo Bolsonaro. Agora, não quer dizer que a esquerda que está indo pra rua está contradizendo o discurso. Por serem outros coletivos e organizações, estão experimentando esse instrumento de poder se colocar contra os fascistas. Eles são, em essência, coletivos, organizações e grupos autônomos, segmentos com outro tipo de organicidade, que também passam pela superexploração da força de trabalho, e é importante dar essa resposta.

O que pode ser feito fora das ruas neste momento?

É um pouco o que nós do MST estamos construindo, propondo e trabalhando com diversas outras organizações de esquerda e do campo popular ampliado. As ações de rua não são o único instrumento de enfrentamento, porque, a depender de como você se organiza pra ir pra rua, não tem muito efeito.

Vamos pegar um exemplo. Nos últimos anos, a forma de manifestação da esquerda (nós temos discutido isso com a própria esquerda), os instrumentos que são utilizados são instrumentos antigos, velhos, que não dialogam com o conjunto dos trabalhadores. É aquele formato: carro de som, um monte de gente falando, onde ninguém ouve, em centros onde não necessariamente os trabalhadores estão, em dias onde os trabalhadores também não estão. E um distanciamento e uma falta de diálogo, a falta de projeto claro para convencer os trabalhadores, para inserir os trabalhadores, para que os trabalhadores se sintam à vontade.

Já há algum tempo, nós do MST, há cinco ou seis anos, resgatamos da Revolução Russa, do Lênin, o instrumento de agitação e propaganda como uma ferramenta importantíssima de um trabalho de base, de trabalho das ideias, onde o que dá centralidade é a disputa da informação. Além de informar, você [pode] disputar narrativa, criar questões ou trazer questões à tona que no dia a dia os trabalhadores não enxergam e que as manifestações tradicionais também não dão conta – porque fica aquele carro de som, aqueles discursos, e não se apresenta claramente qual é a proposta e se dialoga fora da realidade. Porque a realidade do trabalhador é isso: é emprego, é a violência, é o genocídio da população negra, da juventude, é o transporte que não tem, é o buraco da rua, é a falta de água, são as coisas concretas, reais do dia a dia.

Trabalhar o instrumento da agitação e propaganda dá essa possibilidade, porque se consegue chegar ao povo de forma mais criativa, de forma mais inteligente, para problematizar determinadas situações. Com 10, 15, 20, 40 pessoas, é possível fazer uma atividade dessas, em uma parada de ônibus, em um supermercado, no metrô, nas feiras. Causa um impacto da informação, naquele momento faz as pessoas refletirem sobre determinado tema. Isso a gente chama de agitação e propaganda. São os faixaços, são os carros de som, que são as atividades-relâmpago, mas são também as ações de solidariedade onde você vai doar alimento. Quando você está doando alimento, você está disputando a narrativa, você está conversando com o povo sobre aquilo, você está combatendo o agronegócio, está falando que esse alimento é um alimento saudável, produzido por um camponês, por um agricultor da reforma agrária, que também foi explorado e hoje é um produtor. E está doando alimento para o povo pobre da periferia, e está discutindo racismo, homofobia, LGBTfobia;  enfim são vários elementos importantes que você pode trazer a tona e que as pessoas vivem na pele, no dia a dia.

É importante usar ações simbólicas ou ações rápidas e, ao mesmo tempo, conseguir expandi-las ao máximo pelas nossas formas de comunicação. Nós vamos ter que reaprendera fazer isso, vai ser muito importante no próximo período. Mesmo voltando às ruas, voltando às mobilizações, esse vai ser um instrumento importante. Se nós não começarmos a trabalhar isso, vamos ficar para trás na disputa. O fascismo entendeu isso, só que eles usam das fake news, usam desses elementos que são falsos, que desinformam, e nós precisamos fazer a disputa certa nesse sentido.

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Marco Baratto faz parte da coordenação nacional do MST, pela direção da região do Distrito Federal e entorno. O Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra existe há 35 anos e está organizado em 24 estados. No total, são cerca de 350 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e da organização dos trabalhadores rurais. O MST luta pela Reforma Agrária Popular, pelo direito à terra, pela agroecologia, em defesa do meio ambiente e por uma sociedade mais justa e igualitária.

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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