Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
O que pensam as juventudes sobre a crise do clima?
Por Luiza Ferreira – 05/02/2024
As juventudes, que pouco contribuíram para a crise climática, serão as mais afetadas por ela, ao mesmo tempo em que são colocadas num lugar de “salvadoras”. Como elas se sentem diante de tudo isso?

Crédito: Marcio Isensee e Sá via O Eco
Thalia Oliveira, uma ativista climática e socioambiental paraense, teve que entender muito cedo o que era o racismo ambiental. “Desde os 14 anos tive que buscar entender o contexto no qual eu estava inserida nessa enorme escala de desigualdade que tanto falamos, vivendo em um território cercado por garimpo ilegal, desigualdade social, falta de acesso às coisas mais básicas como água e saneamento básico”. Diante desse cenário, o fazer ativista – participar de organizações, coletivos, conselhos, ir para as ruas, se mobilizar – surge como uma necessidade vital.
Ela hoje é Coordenadora do GT Político da Articulação pelo Conselho Nacional de Juventudes pela Ação Climática e Meio Ambiente (Conjuclima) e pensa que ”fazer parte desse conselho é ir um passo mais longe no desejo que temos de mudar o cenário atual do Brasil, é uma forma organizada de trazer esse debate para o território nacional de forma urgente”.
Segundo dados do Atlas das Juventudes, a juventude representa hoje ¼ da população brasileira. São quase 50 milhões de pessoas com idade entre 15 e 29 anos. A maioria é ainda constituída por jovens negros: 61% pardos, 10% pretos, 38% brancos, 0,5% amarelos e 0,4% indígenas, como revelam dados do IBGE (2020).
E essa parcela da população têm se esforçado para ser ouvida. Em 2022, jovens ativistas entregaram a Carta das Juventudes pelo Clima ao presidente Lula em novembro de 2022, pontuando que a “exclusão das Juventudes da gestão governamental impacta em como elas estarão representadas, nas políticas públicas que serão implementadas, na cidadania, na participação social e no próprio direito à existência”.
“O público jovem, considerado como uma das parcelas da população mais afetadas pela pobreza, desigualdade, desemprego e mudanças climáticas, já sofre com estes impactos em seu presente. Essa realidade se agrava ainda mais quando consideramos recortes de gênero, cor e território, evidenciando o racismo ambiental e estrutural vigentes”, disseram.
Em abril de 2023, o Em Movimento, em parceria com o Engajamundo e outras organizações lançaram a pesquisa Juventudes, Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (JUMA), realizada em 2022, que avalia que 90% dos jovens brasileiros se importam com a pauta do meio ambiente.
Outro dado relevante da pesquisa: 8 em cada 10 jovens concordam que as mudanças climáticas estão afetando a sua qualidade de vida, identificando que vivemos uma crise do clima. Quando observaram os jovens inseridos em contextos de periferia ou favelas, 7 em cada 10 revelaram a crença na relação da pauta do meio ambiente com o território onde vivem.
Mesmo com o alto índice de reconhecimento das problemáticas das mudanças climáticas, os articuladores do Conselho Nacional de Juventudes pela Ação Climática e Meio Ambiente chamam atenção para algo em particular:
“O que a pesquisa mostrou é que, quando pensam em mudanças climáticas, muitos desses jovens associam com conceitos como o derretimento de geleiras, que está totalmente desvinculado do que é a realidade brasileira. Conceitos como racismo ambiental, justiça climática e Agenda 2030 são pouco conhecidos e não chegam para a maioria dessa população jovem”, comentam.
Para Frances Andrade, ativista socioambiental do Alto Sertão Sergipano e atual Diretor Executivo da Associação de Jovens Engajamundo, as juventudes têm um papel fundamental na solução dos problemas atuais. Ele também fez parte, ao lado de outros jovens, da idealização do Conselho de Juventudes pelo Clima.
“É importante não romantizar esse espaço e essa luta [o Conselho]. É incrível conhecer jovens ativistas das mais diversas regiões e territórios. Mas estamos aqui reunidos em prol de algo que diretamente afeta nossa existência e bem estar no planeta, ou seja, não é um motivo de alegria”, diz Frances.
Na visão do socioambientalista, o ativismo climático é uma luta necessária e ao mesmo tempo desgastante para as juventudes brasileiras, que convivem com uma realidade e uma projeção de futuro nada agradável. Para muitos recortes de juventudes negras, periféricas, LGBTQIAP+, mulheres e de comunidades tradicionais e originárias, o sofrimento é cotidiano em seus territórios já afetados pela crise climática, além de terem seus direitos constantemente violados.
“Aos poucos estamos moldando o mundo do nosso jeitinho, para que futuramente e no nosso presente, a realidade seja apenas desfrutar de um planeta sadio e sem crise climática acelerada pela ação humana”, acrescenta.
Ele acredita fortemente no entendimento da luta ativista enquanto uma luta coletiva, e quando perguntado sobre o que espera para o futuro dessas juventudes, ele traduz um desejo de muitos:
“Eu espero que os jovens sejam apenas jovens, obviamente politizados e engajados em suas causas. Mas simplesmente, exercendo seu direito de ser jovem sem precisar lutar por sua existência. Porém, enquanto isso, estaremos aqui lutando para que isso aconteça”, finaliza.
O movimento climático europeu está quebrado e estagnado: apontamentos e saídas
Por Nicolò Wojewoda * – 26/01/2024
Adaptamos um texto sobre a crise do movimento climático europeu para nos ajudar a pensar em semelhanças e diferenças diante dos nossos próprios impasses e desafios

Na Espanha, a Alianza Contra la Pobreza Energética e a Enmedio empinaram pipas com rostos de pessoas afetadas pela pobreza energética sobre uma usina termelétrica em 11 de junho de 2023, exibindo suas reivindicações nas caudas das pipas. l Foto: Alianza Contra la Pobreza Energética
Para pessoas como eu, que estão entre as menos afetadas pela crescente crise climática e ocupam a posição privilegiada de serem remuneradas para encontrar uma maneira de abordá-la, há momentos que evidenciam a realidade e a urgência do aumento das temperaturas globais médias. Agosto de 2023 foi um desses momentos e um gatilho para uma profunda reflexão.
Eu scrollei por inúmeras contas de redes sociais italianas, vendo muitos vídeos e imagens chocantes de tempestades em Veneto (atingidas por pedras de granizo do tamanho de maçãs), tornados em Milão, incêndios florestais varrendo todo o mapa da Sicília, e ouvi histórias dos meus pais na minha cidade natal em Úmbria, que estavam enfrentando temperaturas de 40 graus Celsius à sombra.
Diante de tudo isso, perguntas surgiram: “O que estou fazendo a respeito disso? Estou fazendo o suficiente? Deveria estar fazendo algo diferente?” Em seguida, eu entrei no modo profissional e pensei de maneira semelhante: “Como nossa equipe ou organização deve responder a isso? Devemos manter nosso caminho atual ou fazer algo diferente? Sabíamos que impactos como esses estariam chegando, então o que isso está mudando, se é que está mudando, a abordagem do nosso trabalho?”

A Cruz Vermelha na Grécia ajudando nos esforços de evacuação durante um incêndio florestal na ilha de Rodes em julho de 2023. l Foto: Facebook/Cruz Vermelha Helênica
Nos últimos dez anos, liderei o trabalho da 350.org na Europa e tenho dedicado grande parte dos meus pensamentos e esforços a como construir um movimento mais forte. Refletindo sobre esse período, meus questionamentos se expandiram ainda mais. Comecei a me questionar se nós, enquanto movimento climático – cidadãos preocupados, ONGs, grupos de base, o que você chamaria de sociedade civil – estamos fazendo o suficiente neste momento aqui na Europa.
Eu não tenho dúvidas que os governos, em sua maioria, não estão fazendo nem perto do que é necessário, mas estamos exercendo pressão suficiente sobre eles? Estamos levando essa realidade e urgência até as suas portas? Estamos envolvendo pessoas o suficiente para agir e intensificar essa pressão, modificando os sistemas, cultura, políticas, recursos financeiros e outras partes do quebra-cabeça que precisam ser alteradas para fazer uma diferença significativa no maior problema do nosso tempo? Mas, mais importante, estamos fazendo isso de maneira menos ou mais eficaz do que antes, e onde há espaço para melhorias?
Estava tudo bem, até deixar de estar
Nos últimos dez anos, aproximadamente, desde os preparativos para o Acordo de Paris até hoje, o movimento climático obteve grandes avanços ao colocar a crise climática no radar do público em geral. Na última pesquisa do Eurobarometer, “93 por cento dos cidadãos da União Europeia veem as mudanças climáticas como um problema sério”.
O movimento também alcançou progressos significativos ao vincular as emissões de combustíveis fósseis à crise climática. Muitas pessoas agora compreendem que agir em relação ao clima significa fazer a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. Isso é uma grande conquista: para além da nossa “bolha” no movimento, as pessoas reconhecem que temos um problema, entendem o que o está causando e, de maneira geral, sabem como resolvê-lo.
Em 2019, marcou-se o pico mais recente no impulso do movimento. Mobilizações impactantes lideradas pelo Fridays for Future e Extinction Rebellion moldaram a política europeia nas eleições de maio para um novo Parlamento Europeu. Em setembro daquele ano, aproveitamos essa onda crescente de preocupação pública, e a 350.org ajudou a coordenar a maior mobilização climática da história, com 7,6 milhões de pessoas nas ruas ao redor do mundo.

A Greve Global pelo Clima em Londres em Março de 2019. l Foto: Flickr/Garry Knight
Foi então que a energia diminuiu. A pandemia de COVID tomou o centro das atenções em 2020 e dificultou a capacidade do movimento de existir e promover mudanças, especialmente no que diz respeito a reuniões presenciais e participação em ações coletivas públicas. Em 2021, a 350.org ofereceu um espaço para reunir forças e aproveitar a oportunidade de reconstruir nossas economias, por meio de seu Encontro Global para uma Recuperação Justa.
À medida que o movimento estava recuperando o seu impulso novamente no início de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia e outra crise global se desdobrou. A interrupção significativa no fornecimento de gás nos ofereceu uma oportunidade para repensar as fontes de energia da Europa. No entanto, os governos, fortemente pressionados pelos interesses dos combustíveis fósseis, nos conduziram na direção oposta impulsionando a extração de gás e a infraestrutura de produção.
A crise energética, apesar do aumento descontrolado do custo de vida, não enfraqueceu a pressão pública para a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. O problema é que a base de apoio público a fim de impulsionar a mudança na escala necessária não se ampliou e não evoluiu de um apoio passivo para ação ativa.
Analisar os bastidores do movimento climático, compreendendo seus atores e relações, pode ajudar a explicar o porquê.
Nos bastidores: um movimento fraturado
Quando as pessoas fora do movimento pensam sobre o movimento climático nos dias de hoje, elas veem, na maioria das vezes, diferentes grupos que compartilham em grande parte uma abordagem semelhante — Letzte Generation (Última Geração) e Just Stop Oil (JSO – Apenas Parem com o Petróleo).

Um bloqueio do Letzte Generation em Berlim em junho de 2022 l Foto: Wikimedia/Stefan Müller
Grupos do tipo JSO realizam um trabalho importante. Eles conseguiram manter as questões climáticas nas manchetes nos últimos anos, com uma constante sequência de ações de desobediência. Eles forneceram uma possibilidade de atuação para pessoas que desejam agir de acordo com a escala da crise em que nos encontramos. Eles também consolidaram um formato e uma marca de maneira que é replicável, de fácil acesso e prontamente identificável.
No entanto, um movimento climático com organizações como a JSO como sua única ponta visível não se expande efetivamente além de sua base. É um movimento que se expõe a batalhas constantes contra o establishment político e midiático que não somos capazes de vencer. Isso permite que políticos e comentaristas frequentemente escolham a dedo as ações da JSO como representativas do movimento como um todo, retratando-os como hippies extremistas, ingênuos e contrários aos interesses dos trabalhadores.
Uma mensagem mais enfática de “precisamos abandonar os combustíveis fósseis” é mais necessária do que nunca. Ao mesmo tempo, ela traz retornos decrescentes em termos de eficácia na construção do apoio público e na motivação das pessoas para agir. Uma tática de desobediência civil é tão fundamental quanto sempre foi, mas está sujeita à banalização quando sua utilização mais difundida não está conectada a uma estratégia mais ampla de levante popular (de autoria não reivindicada). Seu uso isolado corre o risco de prejudicar mais do que ajudar as comunidades que ela diz apoiar.
Na parte menos visível do espectro, encontramos outros grupos de base dentro do movimento por justiça climática. Grande parte deles está em uma posição defensiva, tendo que lutar contra toda a nova infraestrutura de combustíveis fósseis. No entanto, há também pouca energia, capacidade ou visão para a coordenação europeia entre eles, com a possível exceção de uma coordenação anti gás cada vez mais eficaz, e uma cooperação internacional em torno da campanha StopEACOP.
Os poucos projetos que tentam gerar algum tipo de convergência do movimento europeu (por exemplo, by2020weriseup, End Fossil ou Climate Justice Action) não têm obtido sucesso – com visibilidade e impacto limitados além dos círculos do movimento. A coordenação europeia é mais necessária do que nunca, e, ao mesmo tempo, não me recordo de um período na última década em que grupos em toda a Europa estivessem mais isolados uns dos outros.
O Fridays for Future não recuperou o impulso que tinha em 2019. Embora tenha participado de uma intervenção estratégica crucial junto a ONGs e outros grupos de base para interromper os fluxos financeiros para combustíveis fósseis e tenha construído alianças importantes na Alemanha com sindicatos de transporte sob a bandeira da campanha #WirFahrenZusammen (Nós Viajamos Juntos). Enquanto isso, na França, Les Soulèvements de la Terre, ou Earth Uprising, e Dernière Rénovation conseguiram incorporar muita energia do movimento e realizar mobilizações em massa disruptivas com apoio público. Mas, além da onda internacional de apoio contra a reação das autoridades francesas que os rotularam como “eco-terroristas”, essas são histórias de sucesso que não conseguiram ultrapassar as fronteiras nacionais.
Quanto a outros grupos no movimento, mesmo quando realizamos trabalhos que superam os desafios mais amplos que nosso movimento enfrenta no momento, o impacto é em pequena escala e não consegue adquirir o tipo de ressonância nacional ou internacional que grupos do tipo JSO conseguem – e incluo nisso a 350 em si, que certamente tem espaço para melhorias consideráveis.
Sendo sincero: eu aplaudo cada pessoa, grupo ou rede no movimento mais amplo que parte para a ação. Não cabe a mim dizer se suas táticas ou estratégias estão certas ou erradas, esse tipo de avaliação, e quaisquer ajustes que se sigam, só podem ocorrer por meio de autorreflexão e profunda deliberação, e não em artigos de opinião. A decisão da Extinction Rebellion do Reino Unido em 2023 de mudar significativamente sua abordagem, priorizando “relações sobre bloqueios de estradas”, é um excelente exemplo dessa autorreflexão sendo feita publicamente (e mudanças adicionais podem ocorrer, após deliberações recentes).
Eu acredito firmemente no princípio da “diversidade de táticas”, em sua conotação não violenta. Minha abordagem é mais do tipo “sim, e…” do que um julgamento raso dizendo a qualquer grupo específico o que fazer ou não fazer. Mas o equilíbrio de esforços, a forma como se conectam entre si e interagem, seus papéis diferentes em um ecossistema de movimento coeso, e como esse ecossistema como um todo redesenha as suas fronteiras — é aí que há uma oportunidade para a mudança.
Em outras palavras, o trabalho árduo e significativo de todos não está sendo integrado de maneira eficiente em um esforço mais amplo, e a realidade política na qual estamos realizando esse trabalho torna isso ainda mais desafiador.
A repressão da direita ao ativismo climático
É uma verdade consagrada no movimento climático que um dos maiores obstáculos para a ação climática e o progresso em direção a uma vida mais justa e sustentável em nosso planeta são os governos de direita e de extrema-direita. Sabemos por quê: em alguns casos, eles estão repletos de negacionistas declarados das mudanças climáticas, amplificando e apoiando a campanha de desinformação de décadas conduzida pela indústria de combustíveis fósseis. Eles têm tentado convencer o público de que está tudo bem e que não há motivo para interromper a expansão contínua e o consumo de combustíveis fósseis.
Em outros casos, adotam as vestes mais sutis dos procrastinadores climáticos – professando a importância de abordar a crise climática em sua retórica, mas na realidade defendendo uma abordagem mais “pragmática”. Na Europa, frequentemente os vemos usando a crise do gás como desculpa para apoiar a expansão da infraestrutura de gás fóssil.
Grupos do tipo JSO são vistos como um pretexto fácil para reprimir o movimento como um todo — especialmente as comunidades mais marginalizadas, onde a repressão atinge com mais intensidade.
Igualmente preocupante, à medida que governos de direita e extrema-direita assumiram o poder ao redor da Europa, surge outro padrão emergente em sua abordagem — a mais significativa repressão ao ativismo climático que já testemunhamos. Sentimos isso através do aumento da vigilância e prisões preventivas, sentenças mais severas e o uso de retórica perigosa que intensifica a divisão pública e estimula comportamentos hostis contra ativistas climáticos. Observamos isso de maneira mais evidente nas restrições cada vez mais significativas ao direito de protestar.
Isso nos afeta a todos, quer estejamos marchando pela ação climática ou por qualquer outra causa progressista. E coloca o maior fardo sobre as pessoas corajosas das comunidades marginalizadas que lideram a luta por justiça social e econômica — desde o projeto de lei policial mais recente no Reino Unido até operações policiais na Alemanha, França e além. Grupos do tipo JSO são geralmente os primeiros alvos. Eles são vistos como um pretexto fácil para reprimir o movimento (e outros movimentos progressistas) como um todo — especialmente seus grupos mais marginalizados, onde a repressão atinge com mais intensidade.
Então, de uma perspectiva externa, quando o movimento climático está competindo por atenção e apoio no espaço público, enfrenta três desafios:
- As ameaças pessoais e os riscos de tomar ações mais intensas estão mais altos do que nunca.
- Durante um período de crises sobrepostas, o movimento precisa lidar com a demanda por estabilidade, segurança e continuidade apresentada pelas forças políticas no poder. (Eles argumentam que “este não é o momento para mudar radicalmente como obtemos nossa energia e impulsionamos nossas economias.”)
- As forças parlamentares progressistas que poderiam ser veículos para uma alternativa radical estão enfraquecidas, com partidos de centro-esquerda se transformando cada vez mais em versões mais aceitáveis dos partidos de direita e, portanto, incapazes e relutantes em resistir a essas mudanças de cenário.
Como o nosso movimento responde a esses desafios?
Repensando o movimento climático
Movimentos liderados por aqueles que são mais afetados pelo problema são os mais fortes. Isso eu sei e acredito ser verdadeiro — até mesmo uma breve análise dos últimos séculos da história humana nos mostra isso. Nas últimas décadas, nosso movimento aqui na Europa tem passado por uma mudança fundamental e contínua para reconhecer que as comunidades na linha de frente no Sul Global são os líderes dessa luta. Essas comunidades fizeram o mínimo para causar a crise, mas estão sofrendo o máximo e estão respondendo a ela com poder e criatividade.
Historicamente na Europa, nossas preocupações com o clima têm sido em grande parte teóricas, ao contrário de serem o resultado de experiências vividas. E isso tem sido expresso principalmente por uma demografia branca, de classe média, urbana, de ambientalistas — certamente no que se refere à visibilidade, estratégia e financiamento. As partes do movimento que refletem e expressam as visões de uma base mais diversa e que buscam uma abordagem interseccional, baseada em uma experiência vivida de injustiça, ainda não fazem parte do mainstream. Eles ainda são marginalizados no que diz respeito a quais vozes são ouvidas, quem detém poder e recursos, e quem define a direção mais ampla do movimento.
Recentemente, no entanto, testemunhamos outra mudança fundamental e contínua. Os impactos climáticos, na Europa, estão se manifestando mais próximos e impactantes do que nunca. Agricultores e pescadores lidam com impactos nas colheitas e na pecuária. E pessoas em todos os lugares — especialmente aquelas mais vulneráveis devido à idade, saúde, condições de vida e econômicas — estão vendo suas vidas e meios de subsistência sendo destruídos por ondas de calor e inundações. Trabalhadores no setor dos combustíveis fósseis observam ansiosos e esperam enquanto seus horizontes de carreira são dramaticamente encurtados — sem apoio das gigantes do petróleo e gás que os empregam e continuam a obter lucros recordes.

Ativistas marcham diante do Parlamento em Londres com faixas da Energia para Todos em junho de 2023. l Foto: Twitter/Fuel Poverty Action
A base, ou pelo menos a base em potencial, de todos aqueles que consideramos como os mais afetados pela crise climática, tem estado em mudança. Em agosto de 2023, as linhas de frente do movimento climático estão em Vanuatu, onde planos estão em andamento para realocar dezenas de comunidades para terras mais seguras. E, em uma escala muito menor, elas também estão nos incêndios florestais que assolam a Sicília, nas regiões da França onde temperaturas congelantes sem precedentes estão destruindo extensas áreas de vinhedos, e nas casas de aposentados em Manchester que não conseguem pagar para manter o aquecimento ligado durante o inverno.
Essas são as novas linhas de frente da crise climática em nosso continente, e não acredito que nosso movimento tenha totalmente internalizado essa mudança fundamental em seus limites. Pessoas de cor, aquelas com renda mais baixa e outras comunidades marginalizadas são as que sofrem esses impactos primeiro e de maneira mais intensa.
Isso não é uma denúncia, é um convite para um movimento diferente.
Isso significa que uma das perguntas estratégicas mais importantes que precisamos nos fazer agora é: Como podemos nos conectar e organizar com essas linhas de frente, amplificar suas vozes, fortalecer seu poder e expandir a concepção de quem está na ponta visível de nosso movimento?
Para que nosso movimento tenha sucesso, precisamos ampliar nosso escopo garantindo que comunidades dessas linhas de frente tenham o espaço e os recursos para liderar, criar estratégias e sejam os principais representantes de nossa visão coletiva. Precisamos de um compromisso renovado com campanhas que ofereçam uma visão alternativa concreta, radical, mas alcançável para nossa economia baseada em combustíveis fósseis. Uma que trate da nossa transição de combustíveis fósseis para energias renováveis, e também da questão do acesso e da viabilidade financeira da energia. Uma visão e um caminho em direção a comunidades resilientes, que se adaptem de maneira mais eficaz à devastação cada vez maior que as temperaturas crescentes causarão em nosso continente e em outras regiões.
E sejamos honestos, essa abordagem requer mais do que apenas o movimento liderando sua própria transformação. Exige que financiadores e ONGs bem estruturadas assumam a responsabilidade por seu poder — e decisões tomadas com esse poder — que moldaram nosso movimento. Eles devem direcionar recursos para grupos e redes que personifiquem essa mudança, estabeleçam conexões entre diferentes questões, realizem uma articulação profunda com as comunidades de linha de frente e estejam conectados por uma estratégia abrangente do movimento, capaz de atingir uma grande escala. Dessa forma, na próxima vez que as empresas de energia anunciarem lucros trimestrais recordes, não serão apenas os grupos climáticos habituais que irão protestar com indignação, mas sim uma ampla revolta com a participação de pessoas que têm mais a perder e a ganhar com o funcionamento do nosso sistema de energia.
O que é necessário para recuperar o impulso e a força vai além de uma nova injeção de energia e determinação diante dos desastres climáticos que se desdobram e nos desanimam. Em vez disso, é preciso uma reconsideração verdadeira de quem compõe o movimento climático, quais são as questões que ele aborda, como ele abraça essas novas linhas de frente e de que maneira suas diferentes partes se relacionam entre si. Isso não é uma denúncia, é um convite — para um movimento diferente.
Uma configuração de movimento que nos dá uma chance decente de ter sucesso deve se parecer com isso:
- Uma ampla aliança não vinculada de organizações setoriais que regularmente e visivelmente perturbam a vida pública, exigindo uma mudança radical de ritmo e direção na abordagem do governo à crise energética e climática. Isso seria uma mistura de sindicatos de trabalhadores e outras organizações de membros da sociedade civil. Imagine o Women’s Institute no Reino Unido, a AVIS na Itália, o Deutscher Alpenverein na Alemanha, o sindicato de serviços públicos FNV Overheid na Holanda e até mesmo os membros do clube de futebol Barcelona. O ponto é: Um pequeno número de líderes de grandes organizações com membros alinhados em torno de uma estratégia de movimento voltada para o público resultaria em grandes manifestações de pressão pública não atribuíveis a qualquer organização ou líder “causador de problemas” específico.
- Um grupo coordenação flexível, para garantir coerência com cronogramas, narrativa e símbolos do movimento para ações devidamente integradas e disruptivas. Isso poderia incluir pessoas-chave nessas organizações, juntamente com pessoas e grupos que atuam na interseção de vários espaços no movimento — por exemplo, entre ONGs, grupos de base, sociedade civil e financiadores. Esse grupo deve trazer uma análise global para a luta e ter as conexões globais para vincular os esforços dos movimentos europeus a outras atividades em movimentos em outros lugares, incluindo ações concretas de solidariedade contra empresas europeias e financiamento que perpetua a destruição causada por combustíveis fósseis no exterior. Alguns grupos em níveis nacionais tentaram (e estão tentando, como o Ende Gelände na Alemanha em seu mais recente conceito arrojado) algo semelhante. Outros aliados do movimento, como os Gastivistas, têm realizado trabalhos inovadores na conexão e educação de grupos que trabalham nas áreas de custo de vida, energia e crises climáticas em toda a região. A 350.org desempenhou um papel de convocação ou liderança em espaços regionais e globais semelhantes no passado, e poderíamos fazê-lo novamente.
- Uma escola europeia de desobediência climática, talvez com a JSO ou grupos similares usando a sua expertise em organizar treinamentos em massa para membros de organizações e outras pessoas do público em geral.
- Espaço digital para acolhimento e integração, que forneça um “kit básico” para pessoas dispostas a se envolver e agir. Em seguida, os convidaria a se conectar aos grupos indicados no movimento que possam ser os mais adequados para suas habilidades, interesses e localização geográfica. Algo desenvolvido com a experiência do Green New Deal Rising no Reino Unido (cujas chamadas de boas-vindas e processo geral de integração são alguns dos mais eficazes que já vi no movimento).
- Frentes organizadas e fortes conexões de confiança entre elas e ONGs. Grupos na Europa já se organizaram ao longo das novas fronteiras do movimento que tenho descrito. Grupos como Alianza Contra la Pobreza Energética na Espanha, que surgiu da organização de inquilinos e está trabalhando na interseção de questões de energia e moradia. Ou grupos no Sul Global, como os Pacific Climate Warriors, cujo papel de liderança influenciou um apelo governamental em toda a região do Pacífico para energia renovável com a comunidade no centro das decisões.
- Uma operação profunda e devidamente financiada de organização e desenvolvimento de lideranças, que realize o trabalho minucioso e complexo de construir relacionamentos com as novas comunidades na linha de frente. Um grupo de organizadores que alinhem visões, realizam trabalhos de educação política e apoiam o desenvolvimento de lideranças dentro dessas comunidades para se tornarem líderes no movimento como um todo. Um esforço que se conecte com as frentes organizadas e ajude a deslocar o centro de gravidade do movimento em direção a elas. Isso trará esses esforços de organização local para uma rede ou, pelo menos, fornecerá conexões e apoio.
- Um núcleo de organizações de pesquisa/política/defesa de interesses que levam as demandas do movimento para os espaços políticos, garantindo que, apesar de adotarmos uma diversidade de táticas e abordagens, nossa atuação interna e externa esteja conectada, alinhada e coordenada.
Este esboço é menos um plano detalhado e mais um mapa a ser explorado. Demandará nossa capacidade coletiva de nos distanciar do momento atual, de nossas próprias áreas de foco, e olhar para o quadro geral para reavaliar a jornada que estamos trilhando.
O movimento climático do passado não terá sucesso contra os desafios atuais
Precisaremos refletir sobre o peso relativo das diferentes partes do nosso sistema. Por exemplo, será necessário um equilíbrio de táticas diferente ao longo do movimento? Em diferentes fases do ano? Também devemos considerar as partes onde precisamos construir e celebrar pontos fortes em comparação com aqueles onde precisamos abordar criticamente as fraquezas. Teremos que reimaginar nossa identidade coletiva, passando de “ativistas” para uma nova linguagem que descreva a base mais ampla de pessoas aqui na Europa com interesses muito pessoais que dependem do sucesso do movimento.
Por meio de suas relações e estrutura, precisaremos tornar nosso movimento mais resiliente e adaptável às próximas crises. Simplesmente não podemos arcar com retrocessos toda vez que um novo evento catastrófico de saúde ou geopolítico assuma o centro do palco.
As fases do movimento climático dos anos anteriores não são os movimentos que terão sucesso na luta hoje. Não será apenas o movimento climático de “manter abaixo de 1,5 graus”, nem apenas o movimento climático de “manter os combustíveis fósseis no chão”, e também não apenas aquele que nos ajudou a vencer contra as usinas de carvão ou alcançar proibições ao fracking (fraturamento hidráulico).
Precisamos ser tudo isso e também construir um movimento climático que se conecte à pobreza energética, aos impactos climáticos, à dignidade das vidas migrantes e das pessoas trans. Um movimento que tome medidas na Europa em reconhecimento e reparação da dívida histórica e das feridas que infligimos ao Sul Global, e das feridas que estamos causando às nossas comunidades geograficamente mais próximas. Esse movimento climático é muito mais diverso e interseccional, enraizado no cotidiano das pessoas, cheio de esperança e visão, com novas fronteiras e pessoas da linha de frente que o lideram.
É nossa responsabilidade e dever construí-lo.
Texto escrito por Nicolò Wojewoda, que vive na Irlanda e é o Diretor Regional para a Europa na 350.org. Ele passou mais de 10 anos liderando e apoiando campanhas impulsionadas pelas pessoas, e construindo um movimento de justiça climática mais forte e equitativo.
Afroturismo e como conhecer as histórias que a história não conta
Por Guilherme Soares Dias, do Guia Negro – 11/01/2024
Fundador do Guia Negro, Guilherme Soares Dias escreve sobre “afronta, afeto e futuro nas viagens” e o “caminho de volta e o passo à frente para um povo inteiro se reconectar e conhecer a si mesmo”.

Crédito: Guia Negro/Reprodução
Quero começar esse texto dizendo que a palavra “não” desse título é definidora para os “sim’s” que a população negra foi construindo como resistência nos últimos 500 anos no Brasil. Tivemos negada a cultura, a língua, a religiosidade, o nosso conhecimento e a partir disso usamos várias estratégias, tecnologias e sistemas para preservar e repactuar tudo o que veio de África junto com nossos antepassados.
O Guia Negro também nasce dos “não’s” transformados em “sim’s”. Quando eu, Guilherme, após um período sabático de um ano (2016) viajando por vários lugares do mundo vou buscar trabalho em San Pedro de Atacama, no Chile, e só ouvi “não” como resposta. Percebi que ali os negros estavam sempre em papel de subalternidade e que o racismo, ainda maior que o brasileiro, não ia me permitir ser contratado.
Inventei, então, um trabalho para mim: roteirizei meu próprio tour dando dicas de lugares e histórias que não eram conhecidas pelo turismo tradicional e comecei a escrever em blogs sobre dicas da região. Empreendi – a partir de uma dor – e vi meu trabalho ser visto como “encantamento de lugares”.
Foi gostoso ver o efeito das histórias que estava contando na reação das pessoas durante os walking tours e fui me especializando em descobrir novas histórias. Mas não ganhei dinheiro como minhas colegas que eram vendedoras em agências de turismo, o que fez com que após seis meses na pequena cidade do Deserto de Atacama, eu quisesse seguir novos rumos (o clima adverso também ajudou).
Voltei a São Paulo com a ideia de continuar trabalhando com conteúdo e tours afroreferenciados. Ouvi muitos “não’s” de editores de grandes veículos sobre as pautas que queria oferecer sobre protagonismo negro. O Guia Negro nasce com a proposta de compartilhar essas dicas de viagens com diversidade e histórias com protagonismo negro para inspirar novos roteiros.

“Nossos passos vêm de longe e a nossa caminhada é longa. Ainda não sei qual é o destino, mas sei que o trajeto tem sido de conexões, trocas, lutas, partilhas e também de muita beleza.”, diz Soares. l Crédito: Arquivo Pessoal
Quando fui provocado a escrever esse texto, pensei o que de novo eu tenho a dizer para além dos materiais já produzidos? Não sei muito a resposta. Mas sei que tem várias contribuições que fizemos (a equipe do Guia Negro e eu) ao longo dos últimos cinco anos e meio e que nem todas chegaram a um número grande de pessoas.
Uma delas é o Manifesto do Guia Negro, redigido em 2021 que lembra que: “Turismo é escolha, é comércio, é consumo, é cultura, é dinheiro que circula, é conhecimento, pode e deve ser diverso também. Há um propósito de fazer com que os negros viajem mais e entendam que ter possibilidade de lazer é para nós também. Por mais pretos viajando, por mais afroturismo, por mais valorização da cultura negra e muitas estradas a serem percorridas por todos nós!”.
De lá para cá foram mais de 600 textos, cerca de 60 entrevistas no Youtube, 5 programas de viagem (fora os não editados), 34 episódios de podcasts, 20 colunas na Folha de S. Paulo, dezenas de entrevistas sobre o tema. Mais do que números o Guia Negro tem provocado uma mudança em como as viagens são pensadas. Parte desse conhecimento tornou-se o livro “Afroturismo, afeto, afronta e futuro”, lançado por mim em dezembro de 2023.
Quando fui provocado a escrever esse texto, pensei o que de novo eu tenho a dizer para além dos materiais já produzidos? Não sei muito a resposta. Mas sei que tem várias contribuições que fizemos (a equipe do Guia Negro e eu) ao longo dos últimos cinco anos e meio e que nem todas chegaram a um número grande de pessoas.
Uma delas é o Manifesto do Guia Negro, redigido em 2021 que lembra que: “Turismo é escolha, é comércio, é consumo, é cultura, é dinheiro que circula, é conhecimento, pode e deve ser diverso também. Há um propósito de fazer com que os negros viajem mais e entendam que ter possibilidade de lazer é para nós também. Por mais pretos viajando, por mais afroturismo, por mais valorização da cultura negra e muitas estradas a serem percorridas por todos nós!”.
Ou o Manifesto do Afroturismo, que o classifica como afeto, afronta e futuro das viagens que diz:
“Um grupo de pessoas negras viajando é revolucionário e, ainda, causa espanto e surpresa, chega a ser até afrontoso numa sociedade em que o racismo estrutural determina que pretos devem ser duas vezes melhores do que brancos para se sobressair e sobreviver (…) Fazer turismo focado em conexão com histórias, cultura e pessoas negras é praticar o afeto. É encontrar pessoas como nós no caminho, é abraço, é conhecer quem produz a comida, as roupas. São trocas singulares que vão pra além da compra e do consumo.

Foto: Guia Negro/Reprodução
São viagens que nunca terminam pelas conexões e histórias que geram. Mais do que lugares provocam a possibilidade de desvendar nós mesmos, resgatar histórias, promover ligações que nem sabíamos que existiam, mas que nos constituem e nos reorganiza.
A diversidade nas viagens é o futuro, o afrofuturismo, que volta para o passado para projetar o futuro, como o símbolo do pássaro sankofa.
Afroturismo é afronta, afeto e futuro nas viagens. O caminho de volta e o passo à frente para um povo inteiro se reconectar e conhecer a si mesmo. É a potência da negritude em movimento.
Também trouxemos relatos de viajantes negros em que eles puderam se ver em um setor que até então era dominado por brancos e que foi pivô de muitos episódios de racismo. Um deles motivou a criação da primeira lei de combate ao racismo no Brasil, a Afonso Arinos.
Em 3 de julho de 1951, o presidente Getúlio Vargas sancionou a lei 1.390/51, do deputado Afonso Arinos, que em nove artigos definia como contravenção penal a discriminação racial em comércios, hotéis e órgãos públicos. O projeto foi motivado por um caso de racismo contra a bailarina negra norte-americana Katherine Dunham, que ao visitar o Brasil foi impedida de se hospedar em um hotel de luxo em São Paulo por conta da sua cor de pele.
A primeira pessoa a utilizar a lei foi a jornalista Glória Maria que foi impedida pelo gerente de um hotel de entrar pela porta da frente do estabelecimento no ano de 1970. “Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção. Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas ele se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”, escreveu ela, no Instagram em 2019.
Mostramos que os casos de racismo no turismo ainda são frequentes e que o setor vinha se furtando em fazer o debate, formação e ações para combatê-lo. Além de denunciar as situações de racismo, passamos a pautar os eventos do setor e também a sermos propositivos dando dicas e elaborando guias negros dos destinos para ajudar viajantes a terem opções mais diversas, além de transformadoras em suas viagens.
Nossos passos vêm de longe e a nossa caminhada é longa. Ainda não sei qual é o destino, mas sei que o trajeto tem sido de conexões, trocas, lutas, partilhas e também de muita beleza. Espero que todas as pessoas possam conhecer mais da história e cultura negra e que tenhamos mais negros e negras viajando e aproveitando a vida. Viva o afroturismo!
Listamos 10 filmes que unem ativismo e cinema
Por Mari Dertoni – 04/01/2024
A pesquisadora Mari Dertoni selecionou dez filmes sobre ativismo que aprofundam temáticas sociais através de imagens sensíveis e radicais
O Cinema é uma arte que muitas vezes esteve ligada à causas sociais e militâncias, aproximando as preocupações de um determinado local ou sociedade, de seu povo, usando da imagem e do som. É através de filmes que muitas vezes acabamos conscientizados de fatos e nos atentamos para questões que passariam despercebidas. A grande mídia: a televisão, o rádio e a internet, tendem a mostrar a superfície de certos assuntos, mas existe um tipo de Cinema que está preocupado em aprofundar questões sociais com recortes mais específicos e relevantes.
Nessa lista trago uma seleção de filmes que, em sua maioria, passa longe do interesse comercial, debruçando seu foco em contar uma história genuína, destacar um ponto de vista ativista, que nos fará questionar a ordem das coisas, ou refletir sobre situações que estão distanciadas de nossos olhos, seja pelo contexto histórico ou geográfico.
No Brasil temos nomes como Jorge Bodanzky, que percorreu a Amazônia, filmando as dificuldades da região, sendo inclusive censurado na década de 70. No mundo, temos lutas das mais diversas perspectivas representadas; como a dos Panteras Negras nos Estados Unidos, os percalços da militância transsexual e a importância de se discutir as questões de gênero hoje na França, entre outros assuntos. Acompanhe as sugestões de filmes e documentários a seguir:
O Território | 2022 | dir. Alex Pritz (Brasil/Canadá /Dinamarca)

“Não vai ter mais nenhum quilômetro demarcado para comunidade indígena ou quilombolas”. Essa é a frase que aparece bem no começo do documentário, saídas da boca do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e que vão dar o tom da dor de um povo que se sente acuado e cada vez mais desapropriado de sua terra nativa. A narrativa se desenvolve a partir do olhar da luta da ambientalista ativista Neidinha Bandeira e de Bitaté, jovem indígena de 18 anos da tribo Uru-Eu-Wau-Wau, que passamos a acompanhar e que nos mostra mais do cotidiano de seu povo.
“O Território” sempre busca o contraponto político, anti-bolsonarista, expondo o dano violento que as medidas rígidas e as falas agressivas de Bolsonaro, que incentivam a exploração irresponsável das terras, provocaram. Fazendo com que a comunidade indígena seja tratada com violência, vista como invasores de suas próprias terras, através da disseminação de fake news e distorção midiática em prol do agronegócio. O documentário mostra como o registro das imagens se torna importante para a preservação ambiental e discute a disputa pelo controle dos territórios indígenas e as consequências do desmatamento descontrolado em um período onde a política brasileira favorecia tais práticas.
O filme está disponível na DISNEY Plus.
Iracema – Uma Transa Amazônica | 1975 | dir. Jorge Bodanzky, Orlando Senna (Brasil)

O longa, que traz nuances documentais, trata de trabalhar de forma narrativa a trajetória do caminhoneiro Tião e a vida da jovem Iracema, que se prostitui para conseguir ganhar a vida em terras amazonenses. “Iracema – Uma Transa Amazônica” é entrecortado por registros do processo de construção da Rodovia Transamazônica, primeira via oficial de acesso de veículos para comércio na Amazônia, facilitando as negociações do agronegócio e a exploração dos recursos naturais da região, inaugurada em setembro de 1972. A rodovia tem 4.000 km de extensão, tornando-se a terceira maior rodovia do Brasil. Percorre a floresta amazônica e os estados brasileiros da Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e Amazonas, desde as proximidades do Saboeiro até a cidade de Lábrea.
No meio das filmagens também foram registradas situações de queimadas, grilagem de terras, miséria, nichos de prostituição e abertura de estradas clandestinas e ilegais para extração de madeira. Esses registros fizeram com que o filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, produzido para a ZDF da Alemanha, fosse censurado por seis anos no Brasil na década de 70. O longa foi premiado e considerado um marco no cinema documental por ser um dos pioneiros em denunciar a questão da devastação da floresta e do modelo equivocado de ocupação.
Os Panteras Negras | 1968 | dir. Agnès Varda (França)

Agnès Varda é uma realizadora francesa, que sempre gostou de trabalhar com documentários e com um tipo de cinema-denúncia, um cinema de luta e representatividade. “Os Panteras Negras” foi filmado durante o verão de 1968, com apenas 2 anos de existência do Partido dos Panteras Negras em Oakland, Califórnia, durante as reuniões organizadas pelo Partido para libertar o então preso político Huey Newton, um de seus líderes, e transformar seu julgamento em um debate público e político. Varda escolhe conduzir seu filme em meio a um dos períodos mais críticos do Partido, ajudando seus ideais a se popularizarem.
Varda faz questão de sublinhar como o partido está à frente de seu tempo, por colocar as mulheres nas linhas de frente, em papéis que não as separam, nem as diminuem perante aos homens, que são treinadas em pé de igualdade com eles e também colocadas em posições de liderança. Através das falas e declarações dos próprios integrantes do Partido, Varda faz seu “cinema verdade”, mostrando os fatos de um ângulo de dentro pra fora, como quem diz “olha só, é isso que está acontecendo”. Passando pelo processo de julgamento de Huey, usando declarações em púlpito, a diretora aproxima cada vez mais o filme do objeto, fazendo da obra um importante documento de registros e denúncias da violência a que os Panteras Negras foram submetidos e que precisam exercer para reagir. Eles certamente conseguiram chamar a atenção dos Estados Unidos.
O documentário está disponível na MUBI Brasil
Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta | 2020 | dir. Andrei Konchalovsky (Rússia)

O longa se passa em uma realidade soviética preocupante, onde os cidadão estão aflitos com o aumento do preço dos alimentos pelo governo e a iminência de uma situação de fome na Rússia comunista em 1962. Com os alimentos básicos acima do poder aquisitivo dos trabalhadores, logo seriam organizadas greves e protestos. Filmado em um preto e branco que intensifica o peso do filme, pelo diretor Andrei Konchalovsky, que já trabalhou em colaboração com Andrei Tarkovski, o filme traz uma fotografia cuidadosa e belos planos onde vamos inicialmente acompanhar pela perspectiva da atuação de Julia Vysotskaya como Lyudmila. Ela é uma soviética stalinista devota e obstinada, executiva do Partido Comunista da União Soviética, que enfrenta duramente a atividade anti-soviética e rejeita qualquer um que expresse oposição aos ideais do Partido, mesmo que seja sua própria filha adolescente e crie um dilema familiar.
O drama histórico mostra as negociações que levaram ao massacre atroz na cidade russa de Novocherkassk, em 2 de Junho de 1962: um massacre contra manifestantes desarmados pelo exército soviético e por funcionários do KGB; que segundo registros oficiais, resultou na morte de 26 pessoas e em mais de 200 detenções. Um retrato dramático e duro da luta dos trabalhadores das fábricas locais da pequena cidade industrial, que resultou em tragédia com as represálias do governo diante das greves.
O filme está disponível no PRIME VÍDEO.
Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro | 1981 | dir. Marta Rodrigues, Jorge Silva (Colômbia)

O filme de Marta Rodrigues e Jorge Silva registra uma comunidade indígena na Colômbia que foi desapropriada de suas terras, mas diante da segurança de um documento que lhes garante as propriedades, decidem lutar pela conquista do que lhes é de direito. É absurdo pensar que a terra nativa que os foram tiradas pelos latifundiários, são depois repassadas a eles parcialmente via registro. Mesmo assim, o ato de querer retomar essas terras não veio de maneira pacífica. Nessa luta os indígenas enfrentaram resistência e represálias, resultando na morte de um de seus líderes mais ativos.
Os registros são em preto e branco, com uma montagem que flerta com o cinema experimental. O tom do filme carrega seriedade, mas também uma ironia e provocação através das imagens, mesclando filmagens documentais de depoimentos e deles em direção às fazendas a serem retomadas, planos demorados dos animais, das brumas que cobrem a mata, dando um teor denso e atmosférico ao filme. Às vezes são usadas imagens aceleradas, como por exemplo, a das enxadas cavando a terra em recuperação, como um marco de uma conquista, quando eles chegam e podem finalmente tratar a terra. É uma realidade hostil e triste, de um povo resiliente e que não está disposto a ceder, mas sim a lutar! Tudo é registrado com uma boa dose de sensibilidade pela direção. Na trilha sonora ouvimos as flautas de bambú, como um sopro sombrio de uma triste realidade contra o apagamento histórico de um povo.
O filme está disponível na MUBI Brasil
Orlando, Minha Biografia Política | 2023 | dir. Paul B. Preciado (França)

O filme é uma releitura do romance histórico “Orlando: Uma Biografia” de Virginia Woolf publicado originalmente em 1928, onde ela abria discussões sobre gênero de forma pioneira e que hoje, são cada vez mais pertinentes. No livro, Orlando, que é um ser imortal, acorda de repente num corpo de mulher, Woolf trabalha as ambiguidades do feminino e do masculino através dessa experiência. Paul Preciado é um realizador trans, filósofo e escritor, e neste, que é seu primeiro longa-metragem, cuida do tema com um olhar especialmente voltado para a questão transexual.
O longa conduz em tom teatral os “Orlandos de Virginia” trazidos para a atualidade, mostrando uma realidade trans em um mundo cis. Os personagens estão cercados por limitações frustrantes na busca por duas identidades, num embate doloroso por um reconhecimento de gênero versus sexo, tão difícil de entrar na cabeça (principalmente) da sociedade heteronormativa. Há certo experimentalismo em sua forma, ora como um documentário, coletando os depoimentos com um pouco mais de formalismo; ora encenado como esquetes de teatro, bastante lúdico e criativo, usando a junção desses dois artifícios para dar personalidade a sua obra. A inclusão da trilha sonora age quase como um fator ilustrativo das camadas de urgência mais pesadas no longa, em meio às cenas somos surpreendidos com o impacto nada silencioso da música no filme.
O filme foi exibido no Festival Varilux de Cinema Francês e premiado no 25º Festival do Rio
Feministas: O que elas estavam pensando? | 2018 | dir. Johanna Demetrakas

O filme mostra a luta de e a história de mulheres a partir do conteúdo fotográfico do livro “Emergence”, publicado pela atriz e fotógrafa americana Cynthia MacAdams nos anos 70. A obra contém retratos em preto e branco de mulheres que fizeram parte do movimento feminista nos EUA e reúne personalidades da arte e cultura, como poetisas, atrizes, artistas plásticas e escritoras que batalharam por seus direitos como mulher, por mais liberdade e voz na sociedade. O longa mostra como estão essas mulheres 40 anos depois da data das fotos.
O documentário não apresenta grandes inovações em formato, ele segue o padrão linear com depoimentos. Alguns nomes famosos fazem parte da obra, como Jane Fonda, Lily Tomlin e Michelle Phillips. Além delas, tantas outras mulheres anônimas estão presentes compartilhando suas histórias de vida e luta por direitos na maternidade, trabalho, sexualidade e casamento. Uma luta que representa a fase da chamada “segunda onda do feminismo”, nas décadas de 60 e 70. Há uma rápida citação ao movimento sufragista, que fez parte da primeira onda do feminismo, que lutou pelo direito ao voto. O longa busca fazer também um contraste geracional, ao colocar mulheres mais jovens para também darem seus relatos, usando pessoas que não estão presentes no “Emergence”, mas que vão oferecer um novo olhar e perspectiva sobre o tema.
O documentário está disponível na NETFLIX Brasil
A Hora dos Fornos: Notas e testemunhos sobre o neocolonialismo, a violência e a libertação (La Hora de los Hornos) | 1968 | Octavio Getino, Fernando Solanas (Argentina)

“A Hora dos Fornos” é um documentário dirigido por Octavio Getino e Fernando Solanas, lançado em 1968 e foi concebido como uma obra de denúncia social e política na Argentina. Dividido em três partes e com a duração de 4 horas e meia, o filme é uma análise crítica da sociedade argentina e das injustiças sociais, políticas e econômicas que ocorreram na época. O trabalho foi concebido como um ato militante, como um pretexto para dialogar, abrir a discussão, fugindo completamente de um formato convencional de documentário. O filme foi feito sob um contexto de repressão política da Argentina, de maneira independente e, obviamente, ilegal.
A primeira parte, “Notas para um Filme Sobre o Poder”, aborda a exploração econômica e social da Argentina, destacando a estrutura de poder que beneficia uma minoria privilegiada em detrimento da maioria desfavorecida. A segunda parte, “Atos para a Libertação”, concentra-se na resistência e na luta popular, destacando os movimentos sociais, greves e ações de resistência em busca de mudanças sociais e políticas. A terceira, “Violência e Libertação”, mostra a truculência da política e a repressão estatal contra aqueles que desafiavam o status quo. Examina o papel da violência na busca pela liberdade e justiça.
O documentário está disponível no YouTube, com legendas em espanhol.
Deus tem AIDS | 2021 | dir. Gustavo Vinagre, Fábio Leal

O documentário mostra de modo sensível, através de depoimentos de diversas pessoas soropositivas, aspectos de como é viver nos dias de hoje sendo portador do vírus HIV. Trazendo o prisma de uma sociedade que ainda enxerga isso com pavor, repulsa e preconceito. A obra é dirigida por Fabio Leal, que é ator e realizador queer e Gustavo Vinagre, diretor e roteirista do Rio de Janeiro.
Esclarecer como a realidade de 40 anos atrás, onde a morte era uma questão diretamente ligada ao vírus, hoje é diferente para quem convive com a doença, de fato vivendo com mais qualidade e por muito mais tempo, graças aos avanços da medicina. Esse tópico parece ser uma das missões do filme. Com título forte e mais polêmico do que a própria obra, Deus tem AIDS não chega a chocar o espectador — exceto nas performances finais, bastante viscerais, mas faz seu papel de nos alertar da urgência do assunto para as pessoas envolvidas. A abordagem foca mais na vida do que na morte, informa e esclarece, passa perspectivas importantes sobre um assunto rejeitado e negligenciado até hoje.
O documentário está disponível na MUBI Brasil
A Greve (Strike) | 1925 | Sergei Eisenstein (Rússia)

Em “A Greve”, Eisenstein usa técnicas de montagem revolucionárias para criar tensão e adrenalina, mostrando a brutalidade da repressão policial e o poder da solidariedade entre os trabalhadores russos. O filme culmina em um confronto violento entre os grevistas e as forças de segurança do governo. O massacre imposto por soldados contra a população, é comparado, por exemplo, com a morte de bovinos. Isso se dá através de um estilo de montagem pensado pelo diretor, que faz alusões à ideias que não estão exatamente encenadas, mas expostas ao intercalar imagens distintas na tela.
O longa é conhecido por sua fotografia inovadora e pela representação poderosa da luta dos trabalhadores contra a opressão, tornando-se um marco no cinema soviético e na história do cinema mundial. Completamente mudo e em preto e branco, o filme foi financiado pelo governo soviético como parte de um esforço para promover a ideologia comunista. Esse patrocínio foi crucial para que Eisenstein expressasse suas visões artísticas e ideológicas dentro do contexto da propaganda política e social do regime soviético da época.
O filme está disponível no YouTube com texto em inglês
–
Mari Dertoni tem bacharelado em jornalismo, é crítica e pesquisadora de cinema. Publica suas criticas em: https://coletivocritico.com e https://criticos.com.br/ e no https://boxd.it/zXwh
Link de uma lista com 21 filmes sobre ativismo no letterboxd https://boxd.it/qjL8a
Vagas para Comunicação e Mobilização na Escola de Ativismo
Quem buscamos?
A Escola de Ativismo busca pessoas da Amazônia Legal para nossa equipe de Comunicação e Mobilização. Procuramos por pessoas com experiência de atuação em movimentos sociais, coletivos ou organizações de Direitos Humanos e socioambientais.
As vagas são destinadas preferencialmente para pessoas indígenas ou quilombolas da região amazônica. Gênero, sexualidade e raça também são critérios de escolha.
Responsabilidades de cada uma das vagas:
Vaga 1: Produção de conteúdos de comunicação para a Escola de Ativismo, seja de matérias e artigos para o site, até cards, textos e outros tipos de publicações para as redes sociais. Auxílio no planejamento e realização das tarefas de Comunicação da Escola de ativismo.
Vaga 2: Construção e implementação de planos de comunicação e mobilização, assim como coordenação de grupos ativistas. Capacidade de articular, construir e gerir redes. Produção de textos, informes e campanhas para a Escola de Ativismo. Auxílio no planejamento e realização das tarefas de Comunicação da Escola de ativismo.
Habilidades desejadas para ambas as vagas:
- Ser ativista ou possuir histórico de atuação em movimento social, coletivos, ONGs e defesa de causas
- Experiência de atuação e habilidades em produção de conteúdo e bom entendimento da lógica e funcionamento de Comunicação e Campanha.
- Boa escrita de texto
- Boa habilidade para contar histórias, storytelling e criar narrativas envolventes e emocionantes adequadas para diferentes públicos-alvo
- Boa comunicação e articulação interpessoal online e offline
- Organização, criatividade, dinamismo, iniciativa e comprometimento com prazos e entregas
- Alinhamento com as pautas pertinentes ao fazer ativista como um todo e seu universo
- Afinidade com a agenda de clima, enfrentamento ao racismo ambiental, defesa de povos tradicionais, cuidados digitais e/ou direitos humanos.
Habilidades específicas de cada vagas:
Vaga 1
- Graduação em qualquer área
- Pelo menos três anos de experiência comprovada, seja em trabalhos fixos ou em atuação com redes e movimentos.
- Capacidade de produzir reportagens e outros tipos de textos de comunicação.
- Bom entendimento da lógica de funcionamento das redes sociais, com capacidade de síntese e adaptação para conteúdos para essas redes.
- Desejável conhecimento de wordpress
- Habilidades desejáveis em edição de vídeos, som e imagens via aplicativos, programas ou sites online
- Habilidades desejáveis em edição de fotos, construção de artes e formatação de layouts pré-produzidos para as redes sociais.
Vaga 2
- Graduação em qualquer área
- Pelo menos oito anos de experiência comprovada, seja em trabalhos fixos ou em atuação com redes e movimentos.
- Experiência com gestão de grupos e comunidades. Pode ser dentro do seu coletivo, organização ou movimento.
- Experiência na construção e implementação de campanhas e outros tipos de ações de mobilização.
- Desejável conhecimento e articulação no campo ativista da Amazônia.
Demais informações
Forma de trabalho: remoto, então exige boa conexão com a Internet. É essencial disponibilidade para viagens a trabalho. Os contratos são de prestadores de serviço, através de emissão de Nota Fiscal.
O processo seletivo será realizado em etapas, sendo a primeira a seleção por meio de currículo/carta de apresentação.
A Escola de Ativismo poderá oferecer uma vaga diferente para a pessoa inscrita, caso acredite que ela se enquadre mais em outro lugar.
As remunerações variam de acordo com a experiência profissional de cada pessoa.
Prazo para envio de candidaturas: 21 de janeiro de 2024
Data prevista de início do trabalho: Vaga 1: Março de 2024; Vaga 2: 24 de fevereiro de 2024
INSCRIÇÕES ENCERRADAS
Sobre a Escola de Ativismo
A Escola de Ativismo é um coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Como ativistas lidam com as angústias e ansiedades de viver a crise do clima
Por Bárbara Poerner – 20/12/2023
Medo do futuro, apagamento de modos de vida tradicionais e sensação de impotência fazem parte da ansiedade climática; experiência soma-se às outras opressões do Sul Global

Marcha do Eco pelo Clima em novembro de 2023 em Porto Alegre l Foto: Andrea Graiz/Eco Pelo Clima
Chuva forte é um sinônimo de medo para Renata Padilha. “Para mim, sempre significou que era a minha casa, minha rua e minha comunidade que ficaria uma semana sem água e luz”, relembra ela, que cresceu em uma região periférica de Porto Alegre.
Desde que começou no ativismo socioambiental, a internacionalista e fundadora do movimento Eco Pelo Clima tem momentos de ansiedade climática. O sentimento é, compartilhado por muitas pessoas: uma pesquisa da revista científica The Lancet, realizada em 2021, revelou que 59% dos dez mil entrevistados declararam estar muito ou extremamente preocupados e 84% estavam pelo menos moderadamente preocupados com as mudanças climáticas. A mostra entrevistou jovens, de 16 a 25 anos, em dez países (Austrália, Brasil, Finlândia, França, Índia, Nigéria, Filipinas, Portugal, Reino Unido e Estados Unidos).
“Não existe estar bem, dormir ou comer bem se o nosso território está em perigo”.
Ainda na pesquisa, mais de 50% relataram sentir emoções de tristeza, ansiedade, raiva, impotência e culpa, e, no recorte brasileiro, 85% dos participantes responderam que o futuro parece muito assustador. O Brasil foi o país com maior número de entrevistados que declarou sentir-se traído em relação às respostas dos governos sobre o problema.
Tudo isso, para Luene Karipuna, “gera medo porque é algo que não afeta somente a mim, mas ao meu povo, ao meu território”. Ela, que é ativista e comunicadora indígena, defende que os modos de vida das populações tradicionais são afetados com a crise climática, já que geram desequilíbrios ambientais, sociais e culturais. E é desse deslocamento das formas de viver que se ampliam os sentimentos de angústia, incerteza e perda de identidade.
Como exemplo, ela cita o que está acontecendo em sua Terra Indígena (TI), que fica em Oiapoque (AM). “Há dois anos nós não conseguimos plantar mandioca por conta das mudanças do clima. E desde então a gente não consegue mais comer a farinha feita por nós, que é a nossa base alimentar”. Luene ainda argumenta que é impossível dissociar a ansiedade climática da vivência territorial porque “não existe estar bem, dormir ou comer bem se o nosso território está em perigo”.
Passado e futuro
Daniela Vianna soma mais de duas décadas trabalhando com meio ambiente. A jornalista, que estuda comunicação climática e pós-doutoranda no IEA-USP e bolsista do USPSusten (SGA-USP), conta que sempre foi movida por esperança. Contudo, “nesse ano, principalmente, com o que a gente está vendo, essa esperança foi misturada com revolta, porque estamos falando disso há 20 anos, há mais de 30 anos os cientistas estão alertando que isso aconteceria”, desabafa.
Em novembro, quando regiões do Brasil atingiram níveis de calor extremo, Daniela percebeu que estava sofrendo na pele algo que enfrenta há tanto tempo. “A sensação de que nada do que eu tinha feito havia adiantado, algo como, ‘estou há 20 anos trabalhando com isso e não consegui reverter nada'”.
Ela acredita que a “ansiedade climática também envolve o fato de que, mesmo conscientes do problema, não termos autonomia ou não termos a capacidade da tomada de decisão”, já que líderes globais têm agido de forma insuficiente para frear as emissões de gases de efeito estufa que causam o aquecimento global.
Mãe de um menino de nove anos, a jornalista lamenta ao pensar que os adultos do futuro terão, se o planeta ultrapassar 1.5ºC, condições de vida piores do que as atuais. “Dá dor no coração saber que ele [meu filho] não vai ter a mesma qualidade de ar, a mesma qualidade de água e a mesma condição de temperatura que eu tive quando eu tinha a idade dele”, diz.
Mesmo assim, Daniela continua mantendo a esperança – algo que o filósofo Antônio Gramsci chamou de “otimismo da vontade” – e busca espaços comunitários para equilibrar o ativismo. Ela faz parte do Famílias Pelo Clima, um desdobramento do Fridays For Future Brasil (Jovens Pelo Clima), movimento global que formou-se em meados de 2018 encabeçado por Greta Thunberg.

Mais de 40 milhões de meninas e meninos brasileiros já estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental l Foto: Agência Brasil/Arquivo
Sobreposição de opressões
“Não dá pra desconectar ansiedade climática de justiça climática e de desigualdade”, defende Daniela, ao reforçar que a questão precisa ser ponderada também sob as lentes do Sul global.
Isso porque as mudanças climáticas atingem de formas diferentes as populações. Os mais socialmente marginalizados, como mulheres, crianças e pessoas não-brancas, são estatisticamente os mais afetados. “Estamos falando que algumas pessoas têm mais privilégio e mais condições de lidar com isso”, defende Kinda Silva van Gastel, da organização Engajamundo.
Enquanto jovem ativista, Kinda diz que a angústia de pensar no futuro do planeta soma-se a outras preocupações. “Não estamos só lidando com mudanças climáticas, mas também com todo o processo de vir ao mundo, se entender, pensar o que a gente gosta, o que a gente quer fazer na vida. Como juventude preta, periférica, indígena, temos desafios que são para hoje”, diz, referindo-se a aos problemas de ordem estrutural que os brasileiros enfrentam, como a fome, o racismo, a falta de acesso à moradia, à educação e à cultura.
Em sua avaliação, mesmo que a sua geração expresse preocupações com a saúde mental, isso não é o suficiente quando abordamos essas opressões. “Tem vezes que você pode ir pra uma terapia e pode ficar meses, anos, tentando lidar com um problema que não tem resolução individual, porque o problema é estrutural”.
Por isso, Kinda ainda acredita que “não precisamos da ansiedade para agir. Eu me sentiria muito melhor se eu não tivesse que lidar com a ansiedade”.
Ativismo e comunidade
Uma das estratégias para Renata lidar com a ansiedade climática é buscar apoio e acolhimento nos movimentos dos quais faz parte. Quando questionada sobre o que a faz continuar no ativismo, a resposta é simples: “Eu não quero a extinção da humanidade no planeta”, diz ela. “O que me faz seguir é tentar fazer com que as pessoas que vão continuar aqui não sofram tanto quanto elas irão sofrer se a gente não fizer alguma coisa.”
Atualmente, mais de 40 milhões de meninas e meninos brasileiros já estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental, o que compromete a garantia de seus direitos fundamentais no futuro, conforme apontou o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em um relatório recente.
Essa instabilidade de direitos “impacta em todos os planos, porque se meu povo não está seguro, se meu povo não está comendo bem, eu não consigo pensar em futuro, porque é impossível pensar em futuro se a gente não consegue frear as mudanças climáticas”, compartilha Luene. “A gente fica se perguntando qual mundo deixaremos para a comunidade, para a geração futura.”
Entretanto, sua força para seguir como ativista também vem do seu território. “Eu acredito muito na força do movimento, na luta”, pontua.
Entender a ansiedade climática como uma questão coletiva é fundamental para atravessá-la, afirma Kinda. A jovem pontua a necessidade de entender seus próprios limites de engajamento socioambiental, mas finaliza: “é como uma carga coletiva, uma coisa que estamos carregando juntos; quanto mais pessoas partilhando, mais leve ficará para todo mundo e vamos conseguir, enfim, carregar por mais tempo e mais longe.”
3 ideias-chave essenciais para construir um movimento forte e solidário contra a opressão na Palestina
Por Rae Abileah and Nadine Bloch* – 30/11/2023
Algumas estratégias e táticas comprovadas para orientar ações eficazes pelo fim da ocupação ilegal e o imediato cessar-fogo na Palestina

Crédito: Reprodução
Se você está lendo isso, é provável que os seus olhos estejam exaustos de scrollar interminavelmente pelas notícias ruins ou de derramar lágrimas pelas incontáveis vítimas no pesadelo atual. A gente entende. Te convidamos humildemente a respirar fundo e pausar um pouco. Para qualquer leitor que precise desse lembrete: quando as emoções estão à flor da pele, é especialmente importante cuidar muito bem do seu corpo, espírito e uns dos outros. Nossa equipe no Beautiful Trouble tem um compromisso com a reflexão e oferece um conjunto de ferramentas para a resiliência comunitária.
Como uma rede internacional de artistas, ativistas e formadores que criaram uma caixa de ferramentas documentando as principais estratégias e táticas que inspiraram séculos de vitórias conduzidas pelo povo, oferecemos essas três percepções que podem proporcionar estabilidade neste momento de desequilíbrio, e podem guiar ações eficazes e significativas.
1. A importância do enquadramento
Da mesma forma que o enquadramento ao redor de uma foto, um enquadre conceitual destaca eventos e fatos específicos, tornando outros elementos invisíveis. Inserir um enquadramento efetivo na sua mensagem pode fazer a diferença entre ganhar ou perder.
Atualmente, grande parte dos veículos de mídia ocidentais conta uma história curta e terrivelmente incompleta: que o Hamas coordenou ataques surpresa contra Israel, resultando na morte de mais de 1.300 pessoas e no sequestro de reféns, e que Israel está se defendendo ao bombardear a Faixa de Gaza e coordenar uma invasão terrestre brutal. Mais de 16.000 palestinos [eram 3 mil quando esse texto foi escrito] já foram mortos, incluindo milhares de crianças. A mídia convencional nos diz que é uma situação horrível, absurda, sem aviso prévio. Para uma compreensão mais aprofundada, é preciso afastar a câmera para ver a imagem completa eo contexto histórico mais amplo.
Por mais de 75 anos, o povo palestino tem resistido à ocupação, desumanização, limpeza étnica, deslocamento forçado, aprisionamento, negação de direitos humanos básicos e outras injustiças cometidas pelo estado de Israel. Esses danos foram classificados, por observadores confiáveis, como crimes de apartheid, relembrando o brutal domínio da minoria branca sobre os sul-africanos negros (veja o relatório da Anistia Internacional).
Três anos atrás, a ONU considerou “inabitável” a área de 40km chamada de Gaza, um dos lugares mais densamente povoados da Terra, devido ao bloqueio ilegal por terra e mar imposto por Israel. Mais de dois milhões de pessoas, metade das quais são crianças, vivem em Gaza. Desde 10 de outubro, os residentes de Gaza foram privados de água, eletricidade e alimentos pelo exército israelense. Isso configura um crime de guerra, endossado pelo estado de Israel e tolerado pelos Estados Unidos e seus aliados.
A terrível realidade de hoje não começou em 1948 com a criação do estado de Israel, evento também conhecido como a Nakba (grande catástrofe), que deslocou milhares de palestinos. Ela se baseia em uma herança do colonialismo que dividiu o Oriente Médio, assim como em uma história de opressão antissemita violenta na Europa, desde Pogroms até o Holocausto. Israel foi fundado, em parte, com base na necessidade de um refúgio para o povo judeu. Muitos judeus agora se veem em um dilema duplo, desejando tanto a segurança de seu povo quanto se opondo à contínua segregação e opressão dos palestinos.
No entanto, esse enquadramento da questão leva a um impasse. A única maneira de alcançar uma paz genuína, duradoura e justa — como os palestinos insistem com todo o direito, e muitas vozes judias têm afirmado — é abordar as causas fundamentais da luta palestina, encerrando a opressão de Israel sobre o povo palestino. Os palestinos merecem estar seguros; os judeus merecem estar seguros; no entanto, a segurança não pode, e não virá, à custa dos direitos humanos dos palestinos.
Conforme ampliamos nosso campo de visão, notamos que a luta palestina está conectada às lutas históricas dos povos indígenas e oprimidos em todo o mundo, resistindo ao colonialismo. A suposta “terra sem povo para um povo sem terra” foi estabelecida em terras roubadas, habitadas por gerações de povos árabes. A luta pela libertação coletiva tornou-se interseccional, ligada aos movimentos impulsionados pelo povo ao redor do mundo que clamam por descolonização e justiça.
Podemos também perceber como, em uma área menor que o estado de Sergipe, a segurança dos palestinos e israelenses está interligada. Como escreve o autor judeu-americano Peter Beinart: “Este é um argumento que Martin Luther King tentou comunicar à América branca seguidamente quando houve tumultos em cidades americanas ao longo dos anos 60. (…) Em última análise, não há outra maneira senão reconhecer a interconexão moral, o que significa que você tem que reconhecer que a segurança, dignidade e liberdade de uma família [israelense] dependem de você se importar com a segurança, dignidade e liberdade dos palestinos e vice-versa.”
Outra abordagem pode nos mostrar os legados intergeracionais de trauma que estão em jogo. A neurociência explica que quando estamos em uma resposta traumática hiperativada, tornamo-nos incapazes de pensar a partir do córtex pré-frontal, nosso cérebro lógico. Entramos em modo de luta/fuga/congelamento/apego, independentemente do que nossas mentes racionais nos dizem sobre as circunstâncias. Até que ponto a intimidação com ataques a Gaza está impregnada de trauma, sendo instrumentalizada como uma vontade de mais violência, que causa mais trauma? Para os judeus, que foram perseguidos ao longo dos séculos, essa ferida traumática pode ser profunda, assim como o desejo de “vingança”, frequentemente impregnado de racismo anti-árabe. O slogan das mobilizações em massa lideradas por judeus em Washington, D.C. pedindo um cessar-fogo aborda bem isso: “Minha dor não é sua arma.”
Além disso, o trauma ancestral, somado ao aumento real do antissemitismo, pode fazer com que notícias falsas pareçam terrivelmente reais, como a alegação em 13 de outubro de que o Hamas havia convocado o assassinato de judeus em todo o mundo. (Essa informação falsa levou ao reforço da segurança em sinagogas e ao fechamento de um campus universitário que havia agendado uma manifestação por um cessar-fogo.) A alegação foi comprovadamente falsa e até desacreditada pelo Departamento de Estado dos EUA.
Reservar um espaço para reconhecer o trauma pode nos ajudar a evitar os campos de batalha dos debates com pessoas que não conseguem ouvir os fatos, oferecer um abraço em vez de bombardear com dados, e criar ambientes para lidar com o luto de maneira adequada, para que talvez possamos lamentar juntos e nos reorganizar.
Lembrar de frases como “Luto é verbo” ou “Do luto à luta”” é necessário aqui! Devemos expressar nosso profundo sentimento de luto pelas vidas que foram perdidas, para que possamos trabalhar a partir de uma posição de resolução fundamentada em interromper novos casos de violência.
Ignorar esta etapa — e recusar-se a reconhecer o luto que tantos estão sentindo agora — limita nossa capacidade de curar e alcançar uma paz política justa. Isso também fornece munição adicional para a liderança sionista de direita, assim como para seus apoiadores americanos de direita. A contribuição de Naomi Klein é simples e direta. Ela twittou: “Escolha sempre a criança em vez da arma, não importa de quem é a arma e não importa de quem é a criança.”
Uma das táticas de um regime opressor é obscurecer ou confundir uma questão, fazendo com que pessoas que teriam uma crítica clara e coerente, sintam-se enfraquecidas, não suficientemente informadas para participar ou sintam que, sem um “envolvimento direto”, não podem protestar contra a injustiça. A maioria das pessoas nos Estados Unidos (e ao redor do mundo) que se opuseram à invasão dos EUA no Iraque há 20 anos não conhecia ninguém do Iraque. Ainda assim, sabiam o suficiente para entender que guerras por petróleo e arrogância imperial prejudicariam crianças, matariam soldados de todos os lados, agravariam a crise climática e encheriam os bolsos dos fabricantes de armas às custas da população.
A construção de um enquadre narrativo pode nos ajudar a garantir que “criemos muitos pontos de entrada“, para que novas pessoas possam se juntar ao movimento e se sintam capacitadas a se manifestar. Utilizar a ferramenta do espectro de aliados pode nos ajudar a tornar os nossos públicos mais nítidos e discernir mensagens e ferramentas para envolver melhor aliados passivos e pessoas que eram anteriormente neutras, mas foram ativadas por esta crise.
Para os recém-chegados a esta crise, podemos ajudar a explicar essa história complexa compartilhando ferramentas úteis, como este desenho animado de seis minutos. Enquadramentos curtos e concisos, como esta lista de “5 coisas que você precisa saber sobre o que está acontecendo em Israel e Gaza”, ajudam a simplificar a questão em informações práticas. À medida que são organizadas mobilizações de emergência para se opor ao genocídio em Gaza, podemos lembrar também de criar eventos educativos (como este, destacando vozes palestinas, que ocorreu em 19 de outubro) para aqueles que se perguntam “Como chegamos aqui?”
Um enfoque que extrapole o binário também pode ser útil quando feito intencionalmente. Ou até reformular o binário: Sim, existem dois lados. O lado da vida e o lado da morte. Como escreveu a poetisa palestina Suheir Hammad: “Ou você está a favor da vida, ou está contra ela. Defenda a vida.” No final das contas, como compartilhou recentemente a ativista e autora judaico-americana Anna Baltzer em seu artigo de opinião: “Todas as pessoas merecem viver em segurança e paz. A única maneira de alcançar isso é liberdade e justiça para todos. Na Palestina, isso significa o fim da ocupação colonial e do regime de apartheid de Israel – algo que nenhuma pessoa aceitaria para o seu próprio povo.”

Centenas de pessoas se reuniram para uma vigília à luz de velas em São Francisco com grupos palestinos e árabes em 17 de outubro. Crédito: Twitter/JVP
2. Estudar a bela história da resistência não violenta e criativa palestina pode inspirar as nossas ações de solidariedade.
Outra maneira de reformular os contornos deste momento é explorar e celebrar o longo legado do ativismo criativo palestino. Conhecer mais sobre esta resistência — que tantas vezes é deixada de fora das narrativas dominantes — humaniza a luta palestina e aumenta o senso de alteridade. Lembrar da desobediência civil generalizada e dos boicotes em massa durante a Primeira Intifada (1987-1993), pode nos ajudar a entender como chegamos aqui hoje.le
Em resposta à ocupação israelense na Cisjordânia em 1988, os residentes de Beit Sahour decidiram comprar 18 vacas e produzir o seu próprio leite como uma cooperativa, para não precisarem comprar leite israelense. Essas vacas tornaram-se celebridades locais, um símbolo de auto-suficiência e resistência. Elas foram então cruelmente colocadas na lista de mais procurados pelo exército israelense, declaradas “uma ameaça à segurança nacional do Estado de Israel”. Histórias como esta, conhecida como “The Wanted 18” — “As 18 Procuradas” —, ilustram o absurdo da ocupação.
Mais recentemente, a resistência criativa palestina abrangeu as artes, desde o palco até as ruas, de marchas a murais (em frente ao muro da Cisjordânia). A Grande Marcha do Retorno, em 2018, utilizou uma consagrada tática não violenta ao fazer uma ”romaria”. Longas caminhadas e travessias são táticas ativistas que foram praticadas desde a Marcha do Sal de Gandhi até caminhadas transcontinentais pelo desarmamento nuclear. As imagens que circularam pelo mundo de avós abraçando suas oliveiras enquanto eram derrubadas contaram a história sem precisar de palavras, ilustrando a lógica das ações. Prisioneiros detidos sem acusação ou julgamento organizaram greves de fome, incluindo mais de 1.800 prisioneiros em jejum em 2012. Táticas criativas têm contribuído para despertar a atenção global e tornar a ilegalidade da invasão algo compreensível num nível próximo e pessoal..
Crianças em Gaza estabeleceram um recorde mundial do maior número de pipas voando simultaneamente. Elas empinaram 12.350 pipas ao mesmo tempo nas margens do Mar Mediterrâneo em Gaza. “Trouxemos felicidade ao nosso país quebrando o recorde mundial”, disse Nadia el Haddad, de 13 anos, que quebrou o recorde. “[E hoje] sinto que tenho direitos e que sou como qualquer outra pessoa no mundo.”
O uso de tantas pipas ilustra brilhantemente o princípio de que princípios simples podem ter efeitos grandiosos. Organizações como o Jenin Freedom Theater e Alrowwad, um centro de cultura e artes sediado no Campo de Refugiados de Aida, Belém, cujo lema é “Beautiful Resistance” — Bela Resistência —, têm educado as próximas gerações de jovens palestinos na expressão criativa.
Esse ativismo artístico e estratégico tem inspirado inúmeras ações de solidariedade ao redor do mundo, motivando ativistas solidários a viajar para a Palestina para se envolver em acompanhamento, co-resistência e flotilhas, ou “barqueatas”, na tentativa de romper o cerco de Gaza e fornecer ajuda urgentemente necessária. Israelenses — que compreendem que seu destino está vinculado ao bem-estar de seus vizinhos — também se uniram à luta. Desde 1988, Mulheres de Preto realizam vigílias pacíficas para se opor à opressão israelense. Jovens israelenses que se recusam a obedecer ordens de convocação para as Forças Armadas têm cumprido pena na prisão, e veteranos das Forças de Defesa de Israel (IDF) têm denunciado os crimes cometidos enquanto serviam nos Territórios Ocupados. Ativistas israelenses contra a ocupação também se juntaram à desobediência civil para ajudar a proteger bairros palestinos ameaçados de demolição. No último mês, israelenses assinaram uma petição pedindo um cessar-fogo imediato nos ataques a Gaza.
Recorrendo à tática não violenta de acionar mecanismos internacionais, a liderança palestina trabalhou incansavelmente para aprovar medidas da ONU que visam parar a construção de assentamentos israelenses, algo que Israel não acatou. A Resolução 194 da ONU tem como objetivo garantir o direito de retorno dos palestinos, o que também não foi efetivado. Desde 1997, os Estados Unidos vetaram mais de uma dúzia de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que criticavam as ações de Israel na Cisjordânia e Gaza.
E finalmente, há 18 anos, na sequência dos tumultos violentos da Segunda Intifada, a sociedade civil palestina emitiu o chamado internacional não violento para Boicote, Desinvestimento e Sanções, ou BDS, remetendo ao movimento anti-apartheid na África do Sul e à longa tradição de ativismo econômico não violento que ajudou a conquistar vitórias, desde o boicote às uvas de Delano pelos direitos dos trabalhadores rurais até o boicote aos ônibus de Montgomery durante a era dos direitos civis. Campanhas de BDS surgiram em todo o mundo e alcançaram muitas vitórias, desde o Boicote à Veolia até a Campanha “Stolen Beauty” — “Beleza Roubada”. Enquanto isso, campanhas de desinvestimento em universidades, igrejas e grandes fundos de pensão pressionaram instituições respeitáveis a se desvincularem de crimes de guerra.
As principais organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, constataram que “Israel impõe um sistema de opressão e dominação contra os palestinos em todas as áreas sob seu controle: em Israel e nos Territórios Ocupados, e contra os refugiados palestinos, visando beneficiar os israelenses judeus. Isso configura apartheid, proibido pelo direito internacional.”
Pode-se dizer que a resistência palestina à ocupação esgotou a famosa lista de métodos não violentos de Gene Sharp. No entanto, embora essa história tremenda de resistência não violenta tenha sido bem documentada, ela não recebeu ampla cobertura na mídia mainstream e certamente não está em destaque agora. Precisamos enfrentar a magnitude da ocupação contínua e da limpeza étnica que persiste, apesar dessas ações criativas e ousadas. Também devemos compreender a repressão severa à resistência não violenta palestina e as discrepâncias do Ocidente em relação a essa violência.
Como Peter Beinart destacou em sua coluna no New York Times, “Israel, com a ajuda dos Estados Unidos, tem (…) repetidamente minado os palestinos que buscaram encerrar a ocupação de Israel por meio de negociações ou pressão não violenta.” O movimento BDS tem sido particularmente obstaculizado, observou ele, “inclusive por muitos dos mesmos políticos americanos que celebraram o movimento de boicote, desinvestimento e sanções contra a África do Sul do apartheid. (…) Cerca de 35 estados — alguns dos quais retiraram anteriormente fundos estaduais de empresas que faziam negócios na África do Sul do apartheid — aprovaram leis ou emitiram ordens executivas punindo empresas que boicotam Israel.”
Atualmente, observamos a aparente inevitabilidade da resistência armada diante do agravamento severo do cerco a Gaza. À medida que lamentamos a perda de vidas em todos os lados e nos opomos à violência, também devemos reconhecer os fios do racismo que privilegiam a condenação de uma forma de violência sobre outra. A professora e advogada de direitos humanos palestino-americana Noura Erakat escreve sobre como os esforços pacíficos para se opor à ocupação foram silenciados, demonizados e difamados. “A mensagem para os palestinos”, conclui ela, “não é que eles devem resistir de maneira mais pacífica, mas que não podem resistir à ocupação e à agressão israelenses de forma alguma”.
3. Compreender a Doutrina do Choque é o primeiro passo para resistir ao capitalismo de desastre.
O caos que acompanha as guerras, desastres naturais e crises econômicas é seguido por neoliberais corporativos e militares que tentam agressivamente promover a privatização, desregulamentação e cortes nos serviços sociais como parte da “Doutrina do Choque”. Este é um momento crítico para resistir a esses capitalistas de desastres e defender nossos direitos humanos, ambientais e econômicos, bem como nossos recursos. Você se lembra como depois do 11 de setembro o Presidente Bush aproveitou a oportunidade do luto e medo nacional para pedir um ataque total ao Afeganistão? Em breve ainda iria ocorrer a invasão e ocupação do Iraque.
O que é menos lembrado é que antes do 11 de setembro havia um movimento anti-globalização crescente e eficaz nos Estados Unidos. Esse movimento efetivamente paralisou a Rodada de Doha de negociações da Organização Mundial do Comércio na Batalha em Seattle. Ativistas estavam se preparando para fechar o Fundo Monetário Internacional em Washington, D.C., em 12 de setembro, para exigir mudanças sistêmicas anti-pobreza, mas os protestos foram cancelados quando o país mergulhou em luto generalizado e pânico após os ataques de 11 de setembro. Os manifestantes foram atacados como sendo anti patrióticos, já que os Estados Unidos estavam “sob ataque”.
Muitos ativistas da sociedade civil estavam temerosos e seguiram as chamadas do governo e de ONGs para combater terroristas externos. Grande parte dos ativistas que permaneceram nas ruas mudaram seu foco para trabalhos de paz ou contra a guerra em uma tentativa vã de evitar retaliações violentas pelo 11 de setembro. O trabalho anti-globalização nos EUA praticamente parou.
Antes do ataque liderado pelo Hamas a civis em Israel, havia um movimento forte e crescente de oposição ao regime cada vez mais autoritário do primeiro-ministro Netanyahu, resultando em movimentos pró-democracia historicamente grandes dentro de Israel e em indignação pública e governamental ao redor do mundo. Embora Israel nunca tenha sido uma plena democracia participativa dada a ampla privação de direitos e deslocamento massivo de palestinos, esses protestos criaram uma ruptura marcante em um tópico geralmente impenetrável: questionar Israel.
Apenas quatro dias após o Hamas violar a fronteira, Netanyahu conseguiu reunir o apoio necessário no país para formar um governo de união no Knesset (pela primeira vez em meses de tumulto). Israel obteve amplo apoio das principais potências militares do Ocidente. E em apenas uma semana, as cores da bandeira do regime de apartheid estavam iluminando as principais capitais ao redor do mundo. O aumento do apoio ao governo linha-dura de Israel deu sinal verde e legitimou uma verdadeira e horrível escalada na punição coletiva da população civil em Gaza, enquanto os bilionários do complexo militar-industrial mundial enriquecem ainda mais.
Sabemos que se não fizermos nada, a situação piora. Se reconhecermos que temos poder , poderemos ter a força para construir um futuro melhor. Pessoas ao redor do mundo estão protestando com mobilizações em larga escala, resultando em uma ação de choque popular. Esperamos te ver superando a agitação das batalhas no Facebook. Encontraremos você nas ruas, nos corredores do Congresso, em vigílias artísticas lamentando a perda de vidas e em diálogos significativos com sua família, colegas, amigos e líderes locais. Em meio às manchetes horríveis, à cobertura tendenciosa da mídia mainstream e à hipocrisia institucional do ocidente, estamos testemunhando exemplos tocantes de belas badernas brotando ao redor do globo.
Centenas de pessoas se reuniram para uma vigília à luz de velas em São Francisco com grupos palestinos e árabes em 17 de outubro. (Twitter/JVP)
Provavelmente, quando isso for publicado, estará desatualizado. Mas as táticas e princípios mencionados aqui não estarão. Enquanto observamos o presente se desdobrar com pesar, estamos segurando uma gota de esperança por esse mundo melhor que é possível. Nossa esperança vem do poder do Sumud, da persistência firme — fazendo o que podemos hoje para que, como Paulo Freire coloca, amanhã possamos fazer o que não podemos fazer hoje.
Para mais ideias/informações, visite também o conjunto de estratégias de solidariedade à Palestina do Beautiful Trouble.
Escrito por:
Rae Abileah é uma líder religiosa judaica, estrategista de mudança social, autora e editora em prol da libertação coletiva. Ela é treinadora no Beautiful Trouble e co-criadora do ritual artístico global Climate Ribbon. Foi co-diretora da CODEPINK, consultora de estratégia digital para justiça social na ThoughtWorks e atualmente dirige sua própria consultoria, CreateWell, além de facilitar oficinas de design para The Nature Conservancy. Rae é autora contribuinte de livros, incluindo “Beyond Tribal Loyalties: Personal Stories of Jewish Peace Activists.” Rae formou-se no Barnard College da Columbia University e foi ordenada pelo Kohenet Hebrew Priestess Institute.
Nadine Bloch é uma artista ativista, organizadora estratégica não violenta e Diretora de Treinamento do Beautiful Trouble, Nadine Bloch que explora a potente interseção entre arte e poder popular. Encontre mais de seus escritos em “Beautiful Trouble“, “SNAP: An Action Guide to Synergizing Nonviolent Action and Peacebuilding” e “From Airtable to Zoom: An A-to-Z Guide to Digital Tech and Activism 2021.“
Brasil, que concentra 20% dos assassinatos de ambientalistas do mundo, luta para ratificar acordo de Escazú
Por Luiza Ferreira – 30/11/2023
Ativistas brasileiros irão pautar a ratificação do acordo que versa sobre proteção de defensores socioambientais na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 (COP28)

Crédito: Escazu Ahora/Reprodução
Você já ouviu falar do acordo de Escazú? É provável que não. Mas sem dúvida você já se deparou com notícias de ativistas ambientais e lideranças, guerreiros e guerreiras dos povos tradicionais sendo assassinados e ameaçados. Afinal, o Brasil, segundo levantamento de 2022 da Witness, é o país que mais matou ambientalistas na última década. Do total de 1733 mortes no mundo, 342, ou 20%, aconteceram no país. Soma-se a isso a realidade brutal da América Latina, que concentra três quartos dos assassinatos globais.
Mas algo poderia ter sido feito.
O Acordo de Escazú (Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe), assinado em 4 de março de 2018 na cidade de Escazú, na Costa Rica, ainda aguarda aprovação no Congresso Nacional do Brasil. Ele é o primeiro tratado ambiental da América Latina e do Caribe a estabelecer mecanismos concretos de proteção para os defensores ambientais, reconhecendo sua importância crucial na preservação do meio ambiente e na promoção da sustentabilidade.
Seu objetivo principal é fomentar e garantir os direitos fundamentais de acesso à informação, participação pública e justiça em assuntos relacionados ao meio ambiente, e, neste ano, é um dos temas pautados por ativistas latino-americanos na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 (COP28).
Até o momento, o Acordo, que entrou em vigor em 2021, foi assinado por 24 países e ratificado por 15: Antígua e Barbuda, Argentina, Belize, Bolívia, Chile, Equador, Granada, Guiana, México, Nicarágua, Panamá, São Vicente e Granadinas, Saint Kitts e Nevis, Santa Lúcia e Uruguai. No Brasil, o Acordo de Escazú foi assinado em 2018 mas ficou paralisado pela política anti ambientalista do ex-presidente Jair Bolsonaro, e, agora, quase cinco anos depois, a nova gestão enviou o Acordo de Escazú para o Congresso.
Histórico
Desde a Rio+20, conferência realizada no Rio de Janeiro em 2012, países da América Latina e do Caribe debatiam a criação de um acordo regional que se comprometesse com a implementação de um dos princípios da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Eco-92), assinada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento do mesmo ano no Rio de Janeiro.
Diz o príncipio 10:
“A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios”
A negociação do texto perdurou por seis anos e foi secretariada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e em 04 de março de 2018 o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe foi concluído em uma nova conferência da ONU, em Escazú, na Costa Rica. No mesmo ano, o Brasil assinou o acordo, mas até hoje não o ratificou.
Movimento Escazú Brasil
Para a ambientalista Joara Marchezini, coordenadora de Projetos do Instituto Nupef, organização social brasileira de referência na promoção do uso seguro das tecnologias de informação e comunicação e representante eleita para compor as mesas de negociações do acordo, um dos principais obstáculos para a ratificação é a falta de conhecimento sobre o acordo. O idioma também se coloca como um segundo entrave, já que a maioria das informações sobre o tratado atualmente estão em inglês e espanhol.
“A gente acredita que o acordo tem muito potencial para ser aprovado no Congresso, principalmente porque tem elementos positivos não apenas para proteção de defensores, mas também elementos que promovem a transparência ambiental. Esse acordo ainda pode ajudar a implementação de outras leis internacionais, como o próprio acordo de Paris”, diz a ativista.
E a sociedade civil já vem se articulando para amplificar a popularidade do Acordo de Escazú e pressionar por sua ratificação. Um dos movimentos organizados pelos ativistas brasileiros é o Movimento Escazú Brasil, do qual Marchezini faz parte, formalizada em 2023 e que nasceu das organizações envolvidas com o acordo. Também neste ano, o Movimento Escazú Brasil, por meio da Fundação Esquel, foi selecionado para levar um painel para o Pavilhão Brasil na COP28,
Marchezini ressalta que as vozes da sociedade civil têm sido constantemente incorporadas no processo de criação do acordo, resultado de um diálogo entre representantes do poder público, do setor acadêmico e da sociedade civil organizada. Antes mesmo do texto do acordo se consolidar, os ativistas já se organizavam para a inclusão de elementos que viriam a constituir o escopo do texto final.

Crédito: Escazu Ahora/Reprodução
Um exemplo que chama atenção é o fato de que o artigo que menciona os defensores não existia na primeira versão do texto de negociação do Acordo de Escazú. Como revela Joara:
“O artigo de defensores não existia, ele era um um elemento dentro de acesso à justiça, ele era um parágrafo dentro de acesso à justiça, mas até por conta da mobilização do público, por conta das das reuniões, dos eventos paralelos, dos casos, isso foi ganhando corpo e a gente tem o acordo como ele existe atualmente”.
Para Joara, a pressão popular é fundamental, e um dos pontos importantes nesse processo é entender que a aprovação virá a partir da votação dos deputados, que, por sua vez, responderão às suas bases eleitorais. Um dos elementos centrais e característicos do acordo é essa estrutura de participação na qual ele foi construído e vem se desenvolvendo, sendo um dos únicos acordos que contam com a participação do público, seja de forma remota ou presencial.
“Todos aqueles e aquelas que queiram se envolver podem contribuir com sugestões e recomendações para implementação do Acordo de Escazú, a natureza dele é participativa e a gente acredita que a sociedade civil tem esse papel fundamental para garantir a ratificação e quanto mais pessoas souberem e ajudarem nesse processo mais fácil vai ser também a implementação do acordo. Eu acho que esse é um elemento de conhecimento para acionar essas leis, isso é a base”, diz a representante.
Os padrões regionais e a criação de ações conjuntas Sul-Sul
Segundo as Nações Unidas, a Cooperação Sul-Sul é um processo de cooperação técnica, em que países em desenvolvimento no Sul Global buscam atingir objetivos comuns ou individuais através do intercâmbio de experiências, conhecimentos, habilidades e recursos. Uma das características principais do Acordo de Escazú é a sua ênfase em padrões regionais e a criação de ações conjuntas Sul-Sul onde América Latina e Caribe se unem pela primeira vez em prol de um acordo ambiental regional.
E isso ilustra a forte visão de cooperação e fortalecimento das capacidades dos Estados latino-americanos, onde, além de tratar dos problemas ambientais transfronteiriços, eles podem aprender com os problemas em comum que são característicos da região, como a desigualdade social.
“A emergência climática está aí para mostrar o quanto é necessário essa atuação em conjunto. O Acordo de Escazú é uma plataforma que impulsiona a melhor implementação possível de soluções em comum, onde há uma premissa de fortalecimentos da capacidade, um dos princípios previstos dentro do acordo”, diz a ativista.
A história da América Latina é marcada por lutas e resistências dos povos defensores do meio ambiente, e se configura como uma região perigosa para essa população. Por isso, outro elemento fundamental que o acordo traz é o entendimento da necessidade de apoio ao trabalho dos defensores e das defensoras do meio ambiente, para que, mais do que soluções imediatas de reversão de conflitos, como a retirada de defensores ameaçados dos locais onde eles atuam, existam condições concretas de atuação, permanecimento e defesa dessas pessoas na região.
“Se você tira um defensor dessa região, não necessariamente você está solucionando um problema, você pode estar garantindo a vida dele no primeiro momento, isso é válido, é a forma de atuação. Mas você tá dando um sinal pra própria comunidade que fica ali de que é difícil lutar, é difícil proteger o meio ambiente, é difícil resistir”, afirma Joara.
A representante pontua o olhar de coletividade que o tratado propõe, e isso pode ser visto até mesmo na definição dos defensores, que não trata apenas de uma definição individual, mas de pessoas, grupos ou coletivos.
“A gente tem os líderes e as lideranças históricas, e todo o processo de renovação da juventude, mas o acordo olha pra região, olha pro contexto e tenta trazer um olhar de fortalecimento e um olhar de entorno propício, que é o que a gente chama de ambiente adequado para esse trabalho. Sem ameaça, com liberdade de expressão, com liberdade de associação, com todos os direitos garantidos”, comenta a ativista.
O Sul Global está em ascensão, e os debates de fortalecimento regional e garantia de acessos à população dos países da região têm ganhado mais força a cada ano. Mesmo com todo esse potencial, o Sul Global ainda é negligenciado em muitos aspectos pela política internacional. E isso afeta toda a produção de informação e divulgação de conhecimento latino-americana. Por isso, outro ponto importante que o Acordo de Escazú traz é o fortalecimento da produção de informação através da elaboração de relatórios e diagnósticos no Sul Global.
“Muitas vezes a gente não consegue acesso à informação, mas em muitos casos essa informação não existe. A gestão da memória, a gestão documental não é fortalecida”, lembra Joara.
E agora, quais os próximos passos?
Segundo Marchezini, atualmente existem dois processos paralelos que dizem respeito à tramitação do Acordo de Escazú no Congresso Nacional: no primeiro ele passaria por quatro comissões avaliadoras para depois seguir para o plenário, entre elas a Comissão de Relações Exteriores, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a Comissão de Finanças e Tributação e a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, até que o acordo siga para o plenário.
Outro possível rito de tramitação é se houver a aprovação de um regime de urgência, onde o acordo iria direto para análise plenária. Tal pedido já existe, é o requerimento 2108/2023, proposto pelo deputado Zeca Dirceu (PT – PR).
Parlamentares também têm levantado a bandeira do Acordo de Escazú, entre eles as deputadas Duda Salabert (PDT-MG) e Célia Xakriabá (PSOL-MG) e os deputados Nilto Tatto (PT-SP) e Amom Mandel (CIDADANIA-AM).
“Eu acho que tem bastante parlamentar interessado no tema na verdade, ou pelo menos querendo conhecer, querendo se engajar e isso é muito benéfico para o processo, não só para Proteção Ambiental, mas como para questão de transparência, para a questão de emergência climática, para questão de desastres. A gente está torcendo para que ele seja bem recebido dentro do Congresso nessas comissões”, diz Marchezini.
A representante também aponta que com a aprovação, a sociedade civil tem um papel importante na efetivação do acordo: “como qualquer outra lei, ele vai necessitar de monitoramento, de apoio, de divulgação, de promoção de conhecimento, de troca de experiências”. Para ela, o Brasil tem muito a contribuir no plano de ação, e, diante disso, é importante olhar não só para a implementação nacional, mas também para as discussões internacionais.
Segundo a ambientalista, a forma como tem sido construído o Acordo de Escazú é um exemplo de que é possível e preciso existir um diálogo e um consenso entre sociedade e Estado, e que ele possa olhar para a sociedade civil também como um mecanismo repleto de contribuições a oferecer e de que essa relação é produtiva.
“A gente não precisa esperar a ratificação para utilizar aquilo que está escrito no acordo como uma referência para elaboração de leis e para decisões judiciais. Também não precisamos esperar a ratificação para se envolver na construção do plano”, argumenta.
Amazônia Negra: histórias de existências quilombolas e indígenas
Um território, múltiplas histórias: paulista se muda para Rondônia e encontra famílias tradicionais negras de Barbados; acreana atua com ‘ afrobetização’; e paraense luta por regularização fundiária de quilombos.
Por Elvis Marques, em parceria com a Revista Casa Comum*

Jaycelene Maria, Marcela Bonfim e Iraci Santos l Foto: Arquivo pessoal/Reprodução
Antes de ser autora do projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta, Marcela Bonfim, nascida no interior de São Paulo, deu seus primeiros passos em um solo marcado pela exploração da população negra nas plantações de café. Uma realidade escravagista diferente nos tempos atuais, mas que é revivida há gerações. “Venho de uma família que sofreu muita pressão quanto à questão racial. É uma região onde o racismo permanece latente”, conta.
Em 2010, Marcela migrou da região Sudeste rumo a Porto Velho, em Rondônia, em busca do primeiro emprego como economista. “A gente chega cheio de estereótipos, ideias e pretensões em relação à Amazônia”, afirma a fotógrafa e ativista pelas causas negras.
Mas o que Marcela não esperava é que, ao chegar na capital de Rondônia, seria confundida como conterrânea de Rihanna, uma das cantoras mais famosas do mundo. Ao desembarcar em Porto Velho, as pessoas questionaram se Marcela era barbadiana, ou seja, de origem de Barbados, país caribenho onde a artista nasceu.
A explicação é a seguinte: no início do século passado, imigrantes de Barbados – e de outros países do Caribe – contribuíram com a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e, consequentemente, com a criação do país. Colônia britânica até 1966, a ilha do Caribe, assim como o Brasil, sofreu com os períodos de colonização europeia e de escravidão de indígenas e africanos. A sua mistura de povos também não difere da nação brasileira, tendo uma população de maioria negra.
“Ao me perguntarem se eu era barbadiana, me veio uma curiosidade sobre esse povo. Então uma amiga me contou sobre as famílias tradicionais negras de descendência de Barbados que aqui viviam. “Eu levei um susto porque, nos livros de história, ‘família tradicional’ no Brasil eram aquelas que tinham poder desde o início da colonização. Começo, então, a descobrir o quanto de diversidade que existia nesse estado amazônico, algo que até então não passava pela minha cabeça, uma população negra na Amazônia”, contextualiza Marcela.
Registros sobre a Amazônia negra
O fascínio por essa população e por suas origens gerou uma identificação histórica em Marcela, que, em um primeiro momento, decidiu comprar uma câmera fotográfica para fazer imagens dessas pessoas e mostrá-las para a sua família. Os registros em foto e texto eram depositados nas mídias sociais, o que logo começou a gerar um burburinho.
“Chegou ao ponto de eu pensar que isso poderia ser pedagógico também para outras pessoas, e que traria uma força a elas como trouxe a mim. Vim buscar um emprego e acabo reconhecendo a fotografia em mim, entendendo que eu poderia encontrar a minha negritude a partir dessa oralidade, e isso passou a ser uma forma de existir: fotografar, contar histórias e me reconhecer nessa terra”, relembra Marcela.
Suas fotografias mostram rostos, olhos, mãos, danças e religiosidades. São olhares de esperança, que refletem as águas profundas e as frondosas árvores da Floresta Amazônica. De forma poética e ao encontro com a sua própria história, Marcela inaugura o projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta.

Home do site Amazônia Negra l Foto: Reprodução
A ativista conta que as pessoas fotografadas têm recebido muito bem os seus retratos e histórias contadas. O projeto ganhou, também, um público famoso: a atriz Giovanna Ewbank e a filha Titi Gagliasso ficaram encantadas com a exposição “Um defeito de cor”, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, na Bahia.
“Rondônia traz um percurso histórico, como muitas migrações e imigrações, não só dos países do Caribe, mas também do Amazonas, Pará, Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro. São muitas formações negras nessa terra. Eu pensava muito o negro no singular, e hoje eu consigo pluralizar essa ideia de negritude por conta dessa vivência na Amazônia”, enfatiza.
Raio-x > Na região Norte do país, 73,4% da população se declara parda (é o maior percentual do país) e 7,5% se diz preta; > Entre 2012 e 2021, a população que se declarava branca nesta região reduziu em 3,6%; > O Norte concentra o maior número de jovens do país: cerca de 30,7% da população tem menos de 18 anos; > A Amazônia Legal corresponde a 59% do território brasileiro e engloba totalmente oito estados (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) e parte do Maranhão; > 56% da população indígena brasileira vive na Amazônia Legal; > Segundo o Censo de 2022, o Brasil tem 1,3 milhão de pessoas que se identificam como quilombolas. Desse total, quase 427 mil estão nos estados que compõem a Amazônia Legal.
|
Luta quilombola paraense
O Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a maioria dos quilombolas – pessoas remanescentes de quilombos dos tempos da escravidão – da Amazônia Legal está nos estados do Maranhão* (248.661 habitantes) e do Pará (135.033), totalizando 90% da população desse grupo apenas nesses dois estados. Conforme a pesquisa, dos 426,5 mil quilombolas da região, 80,9 mil estão em territórios oficialmente delimitados, o que representa 18,9% do total.
Um desses territórios listados pelo IBGE é a comunidade Santa Rita de Barreira, onde vive Iraci Santos, membro da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, a Malungu, que teve início em 1999 na região de Santarém. Dentre as cerca de 600 comunidades quilombolas existentes em terras paraenses, a organização acompanha pelo menos a metade.
A principal fonte de renda das comunidades quilombolas do Pará é proveniente da agricultura familiar, inclusive de um produto que é ancestral no Brasil, a mandioca, e seus derivados, como a farinha e o polvilho. Os povos tradicionais cultivam, ainda, banana, hortaliças e frutas. Diversos territórios atuam para a subsistência, com a pesca e o extrativismo na Floresta Amazônica.
“Hoje, uma das maiores demandas dos territórios quilombolas no Pará é a regularização fundiária, uma das principais bandeiras de luta da Malungu. E é a falta de regularização que mais traz problemas para os nossos territórios, porque a maioria não está delimitado e titulado. Poucas áreas têm documentação. O governo estadual é o que mais titula terra quilombola, mas a maioria das que são tituladas não são reconhecidas em sua totalidade. Por exemplo, geralmente falta indenizar pessoas, como empresários e fazendeiros, que residem em áreas dentro dos nossos territórios, e essas pessoas causam muitos problemas ao nosso povo”, contextualiza Iraci.

A liderança quilombola afirma, ainda, que, além da regularização fundiária, as comunidades pleiteiam diversas políticas públicas nas áreas de educação, saúde e saneamento básico. “Muitas vezes, para essas políticas chegarem, nós precisamos ter a documentação das terras, então uma coisa trava a outra. São essas as principais demandas das populações que acompanhamos no estado”, explica.
São necessidades básicas reivindicadas pelas comunidades descendentes de pessoas escravizadas no Brasil que, quando não atendidas, fazem vítimas. “Os processos de regularização são muito demorados, e são eles que mais causam conflitos dentro do estado do Pará. A gente se preocupa muito, porque várias de nossas lideranças já tombaram [morreram] em decorrência desses conflitos”, aponta Iraci.
> Saiba mais: no portal da Fundação Palmares é possível acompanhar o andamento dos processos de regularização de áreas quilombolas de responsabilidade do governo federal.
>> A nível estadual, a responsabilidade pela regularização fundiária é do Instituto de Terras do Pará (Iterpa).
O ser amazônida negra
Jaycelene Maria da Silva Brasil, ou Jayce Brasil, é uma socióloga acreana formada pela Universidade Federal do Acre (UFAC), pós-graduada em gestão estratégica de políticas públicas pela Universidade de Campinas (Unicamp) e militante de direitos humanos formada pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular do Acre, o CDDHEP.
Em depoimento enviado à Revista Casa Comum, Jaycelene conta que atuou como professora de sociologia no ensino público em 2015 e 2019, e que, atualmente, trabalha com educação popular e é entusiasta dos processos de ‘afrobetização’, nos quais procura demarcar, em suas falas, a importância da valorização do “ser amazônida” na Amazônia acreana que ainda não se percebe negra. Confira a seguir:
“Eu me descobri uma pessoa de pele preta com consciência política há cerca de 20 anos. Nasci uma pessoa que, aos olhos de parte da sociedade e para mim, naquele momento, eu era morena. E a partir de uma bolsa que ganhei da Conectas, organização de direitos humanos, começo a politicamente ler e a fazer formação para mergulhar no tema da promoção da igualdade racial. Esse período de letramento racial é uma caminhada, às vezes solitária, dolorosa.
Atualmente, trabalho com projetos de ‘afrobetização’ em escolas e instituições, porque acho muito importante pautar a importância das Leis 10.639 e 11.645. Sou entusiasta dessas formações que abordam o que é ser uma pessoa preta, da desumanização que acontece conosco por conta do racismo, e a escola é uma importante porta de entrada. E a gente vê que as pessoas amazônidas têm muita dificuldade em se verem pretas, porque, no imaginário social, não há pessoas pretas nesse território, apenas indígenas.
Vejo que esse último Censo do IBGE traz um crescimento da população preta do Acre e de outros estados, e isso mostra o resultado do trabalho de movimentos negros e de políticas públicas iniciadas em 2003.
No Acre, precisamos fortalecer esse trabalho ainda mais. Não temos mais uma Secretaria Municipal de Igualdade Racial há quase quatro anos em Rio Branco; dentro do governo estadual, não temos um departamento que pulverize com seriedade e qualidade essas políticas públicas; não temos um acompanhamento contínuo das leis que citei acima, o que quebra o processo de fortalecimento de política pública.
Temos pequenos grupos atuando sobre ser negro na Amazônia e a partir dessas políticas públicas. E eu me considero uma dessas pessoas. Penso que quando a gente entende o que é ser negro, a gente cria forças, lembra da trajetória de quem veio antes e pauta o nosso trabalho com esperança, apesar de ser uma luta longa e árdua.”
Reconhecimento Facial: o inimigo agora é rosto
Por Luiza F. Martins – 30/11/2023
Conheça os sombrios impactos do reconhecimento facial, as complexidades desse sistema intrusivo e suas implicações para as liberdades civis

O filme Coded Bias investiga o viés racista no algoritmo de reconhecimento de face l Crédito: Reprodução/Netflix
No dia 24 de setembro, a TV Globo divulgou imagens onde pessoas recrutadas pelo tráfico aparecem fazendo treinamento militar no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em meio a espaços públicos da comunidade como escolas e creches. Em resposta, o governador Cláudio Castro iniciou uma megaoperação na favela da Maré, zona norte do Rio, sem prazo definido para acabar e em parceria com a Força Nacional. Um dos principais objetivos da operação, além de bloqueios de entrada pela Força Nacional por tempo indeterminado, é o uso de drone e a instalação de câmeras de reconhecimento facial em toda a comunidade.
Você provavelmente já ouviu falar de reconhecimento facial, já que essa tecnologia tem se tornado cada dia mais comum no dia a dia das pessoas ao redor mundo e mais recentemente aqui no Brasil. Mas você sabe de fato o que isso representa e por que ela tem sido largamente utilizada na segurança pública?
Quem nos ajuda a entender o que são essas tecnologias e para que elas são usadas é Horrara Moreira, educadora popular, pesquisadora, advogada e atual coordenadora da campanha Tire meu Rosto da Sua Mira, um dos principais movimentos da sociedade civil pelo banimento das tecnologias de reconhecimento social das forças de segurança pública do Brasil.
“As tecnologias de reconhecimento facial funcionam através de algoritmos. Algoritmos são regras matemáticas para processamento de dados e informações. Mas tem um propósito definido. São criadas por seres humanos. Então esses algoritmos vão identificar pontos no nosso rosto como o espaço entre os olhos, o tamanho do nariz, da boca, do seio face, isso tudo vai ser convertido em número e à essa medida da nossa face é dado o nome de biometria facial”, diz.
Segundo Horrara, existem alguns tipos de aplicações mais usuais para esse tipo de tecnologia: a comparação humano/objeto, que vai definir o que é uma pessoa e o que é um objeto, leitura de emoções, utilizada geralmente em contextos de pesquisa de mercado relacionada a publicidade e propaganda e a satisfação dos usuários, a leitura biométrica para confirmação de dados como visto nos aparelhos telefônicos para acesso à aplicativos e o uso comparativo na segurança pública.
“O reconhecimento facial vai coletar a biometria e com outro banco de dados de referência, ele vai pegar essa biometria e dizer o quanto uma pessoa se parece com alguém naquele banco de dados onde está sendo procurado, e aí mora o perigo: é onde nossos direitos começam a ser violados”, aponta.
A pesquisadora afirma que tecnologias como esta são capazes de nos identificar, nos classificar, classificar o nosso comportamento, e dizer se o que estamos fazendo é algo suspeito ou não. Além disso, elas também são programadas para coletar dados de vigilância e identificar onde estivemos, onde passamos e o que estivemos fazendo, tornando-se capaz de criminalizar nossos corpos e nossas práticas.
Sabemos que os sistemas de reconhecimento facial são alimentados por imagens. E quem alimenta esse banco de imagens? Bem, se você pensou que só o Estado é capaz disso, está apenas na metade do caminho do problema. Essas imagens podem ser cedidas por particulares, empresas, condomínios, entre outros.
“Toda a cidade, todo esse aparato de vigilância vai compor esse sistema de reconhecimento facial em prol da segurança pública. E aí a gente vai sempre questionar: segurança pra quem? Pra que? Quem é o inimigo? De quem que a gente tem que se defender?”, questiona Horrara.
Quais direitos estão sendo violados através do uso reconhecimento facial?
Para Moreira, a nossa liberdade de expressão e associação é facilmente comprometida com o uso da tecnologia. No Brasil, não são raros os casos de criminalização do ativismo e da atividade política de oposição minoritária, como o que aconteceu em Alter do Chão. Até o protesto, enquanto exercício da própria democracia, está sujeito a violações com o uso de sistemas de reconhecimento facial.
“Como que você vai fazer um protesto? Como é que você vai reunir um grupo de pessoas mesmo que seja em praça pública? Se toda a sua atividade política, a sua identidade está exposta ali”, contesta.
Ela ainda aponta a discriminação de gênero e de raça como pontos urgência na discussão, como investiga o pesquisador Tarzício Silva em seu livro que cunha o racismo algorítimico presente em mecanismos como o reconhecimento facial, filtros para selfies, moderação de conteúdo, chatbots, policiamento preditivo, escore de crédito, entre outros.
Um estudo realizado pela Rede de Observatórios de Segurança em 2019 corrobora com o apontamento: 90,5% dos presos por monitoramento facial no Brasil são pessoas negras.
Para além das consequências dos algoritmos que reforçam o preconceito e a discriminação, o próprio mercado se encaminha da aprimoração e da precisão das tecnologias a todo o tempo, inclusive para que “não tenhamos mais argumentos para dizer que essas tecnologias são danosas para diversos grupos de pessoas”. Ainda segundo Moreira, é o aumento dessa precisão que vai expandir o superencarceramento da população jovem, da população negra e periférica no Brasil.
“Uma vez que o seu rosto e sua biometria facial são capturados, eles também podem ser combinados com outros dados e outras informações que o governo já tem sobre você através de outros cadastros: onde você mora, o que você faz, o quanto você ganha, qual é a sua cor, dados de saúde, dados de mobilidade, tudo isso pode ser combinado gerando um painel de controle muito sofisticado que vai ser utilizado pelo estado”, alerta.
Toda a combinação dessas potenciais violações lançam luz sobre a necessidade de banimento das tecnologias de reconhecimento facial.

Sistema de reconhecimento facial na Serrinha l Crédito: Divulgação/Goiás
Histórico tecnoautoristarista brasileiro
No Brasil, o autoritarismo é atemporal, e embora marcado pelo período ditatorial, persegue movimentos sociais muito antes da ditadura militar, utilizando das tecnologias para vigiar e desarticular organizações de esquerda e outros movimentos, bem como para criminalizá-los.
Tecnoautoritarismo é um termo cunhado pelo projeto “Defendendo o Brasil do Tecnoautoritarismo”, do DataPrivacy Brasil, e ilustra esse cenário de ampliação do poder estatal para o fortalecimento das capacidades de vigilância e supervisão da população, muitas vezes à custa da violação de direitos fundamentais. Para Horrara, as tecnologias de reconhecimento facial seguem a mesma lógica, apenas potencializando práticas de governos autoritários.
“Tem uma capacidade, uma habilidade dessas tecnologias que chamam de trekking, que é justamente conseguir traçar um perfil de onde você passou. Uma linha do tempo de onde você esteve, com quem você esteve, o que você disse”, diz.
Por isso mesmo, ativistas de direitos humanos integram os grupos mais vulneráveis às essas tecnologias, suas falhas e seus algoritmos racistas, seja ao realizar protestos, encontros, reuniões “ou até mesmo criticar um governo que tenha a mão uma tecnologia como esta”.
O dossiê antifascista, produzido pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça do governo Bolsonaro, é um exemplo dessa perseguição em curso, e que utilizou das bases de dados que são cruzadas dentro do reconhecimento facial através de osintes, tecnologias que buscam informações de fontes abertas disponíveis na internet, onde pelo menos 579 servidores que se alinhavam ao movimento antifascista e contra o governo à época, tiveram os seus nomes, seus endereços e dados pessoais organizados em um grande dossiê, implementando-se a partir disso uma perseguição à esses servidores, lembra Moreira.
Posteriormente o dossiê foi barrado pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal de que ali se conformava um claro desvio de finalidade da máquina pública para a produção e o compartilhamento de informações pessoais de servidores, afrontando o direito fundamental da livre manifestação de pensamento e de associação.
Reconhecimento facial nas escolas: tecnologia educacional ou boicote à juventude e educadores?
“Eu desafio um professor a dizer no que o reconhecimento facial auxilia na prática pedagógica ou melhora na vida da comunidade escolar”, questiona a educadora.
Em março deste ano, o Internetlab identificou em um relatório pelo menos 15 escolas públicas que utilizam a tecnologia de reconhecimento facial em todo o Brasil. Grande parte das inovações em tecnologia digital aplicadas à segurança surgem aliadas ao discurso da inovação, em respostas aos acontecimentos que são vivenciados em espaços públicos. Recentemente, as escolas brasileiras têm enfrentado uma onda de violência sem igual, com um aumento aterrorizante de ataques armados promovidos contras essas instituições – prática de grupos de extrema-direita que circulam sem muito controle na Internet – e a aplicação do reconhecimento facial se dá nesse contexto. No entanto, “o reconhecimento facial é uma tecnologia que vai ser utilizada posteriormente para fins de identificação”, como alegam argumentos favoráveis à sua aplicação, “o que é possível ser feito através de outros meios”, afirma Moreira.
Outro argumento é a validação da entrada de pessoas dentro das escolas, sendo utilizado inclusive para controle de frequência dos alunos.
“É uma tecnologia extremamente cara, que erra muito e que tem todos esses vieses de coleta de dados que vão estar sob guarda do poder público, sendo usada para controlar frequência. Não existe ainda uma pesquisa sobre a destinação desses dados de crianças e adolescentes ”, diz.
Carecem ainda pesquisas sobre a destinação dos dados de crianças e adolescentes no contexto escolar. Para a pesquisadora, existem muitas perguntas a serem feitas sobre o tratamento de dados nesse cenário, e todas apontam para uma criminalização da juventude.
Para ela, os argumentos que o poder público traz não se sustentam:
“Já tem dados também que mostram que só as públicas implementam, as escolas particulares não entendem isso como uma alternativa boa ou como um ganho pro ambiente escolar”, lança outro alerta.
Enquanto faltam pesquisas, os relatos de perseguição aos professores através da biometria facial é que tendem a se tornar mais comuns com o avanço das tecnologias nas escolas.
“No sul existem relatos de professores que estão sendo vigiados, está sendo feito um controle ideológico daquilo que o professor pode ou não apresentar dentro de sala de aula. Existem louças mágicas, quadros digitais interativos equipados com câmeras de reconhecimento facial, que fazem a leitura das emoções dos alunos a partir do conteúdo que o professor apresenta, e que criam um score de como a criança reage àquilo ali que foi apresentado”, diz.
Para Horrara, a extensão do problema é a perseguição ao professor que ousar ensinar sobre gênero e sexualidade dentro das escolas, inevitável nesse contexto de utilização do reconhecimento facial como uma tecnologia educacional.
Banir de vez o reconhecimento facial é possível?
No mundo inteiro, o movimento contra a utilização de sistemas de reconhecimento facial tem lutado pelo banimento da tecnologia na segurança pública. Nos Estados Unidos, a Câmara Municipal de Minneapolis, no estado norte-americano de Minnesota, epicentro dos protestos contra o racismo no país depois que George Floyd foi assassinado brutalmente por um policial em 2020, baniu por unanimidade o uso de software de reconhecimento facial pela polícia no ano seguinte.
“Existem também relatórios da Inteligência norte-americana, que declarou utilizar o reconhecimento social contra manifestantes do movimento Black Lives Matter”, comenta.
Cinco anos antes, a tecnologia já tinha sido utilizada para rastrear e prender os manifestantes de outro estado norte-americano, que reagiram ao assassinato de Freddie Gray, sob custódia policial.
Para Horrara, é importante destacar não só o banimento da tecnologia como resultado da luta em muitos lugares, mas também como no próprio processo de luta, ela foi utilizada contra ativistas.
“Também em Buenos Aires, na Argentina, a Corte julgou que o sistema era anticonstitucional e a polícia foi obrigada também a destruir todos os bancos de dados dessa vigilância massiva. Então a argumentação do controle da cidade não se sustentou diante das violações que foram identificadas”, diz.
No Brasil a questão é um pouco mais complexa já que a matéria de segurança pública, de acordo com a Constituição Federal, é separada por competências sobre aquilo que pode ser legislado e executado pela União e pelos Estados. A responsabilidade pela segurança pública é dos Estados, consequentemente estão no controle das polícias: “a gente tem vinte e seis estados e o Distrito Federal, esse é o tamanho do nosso desafio”.
“Pra além disso, as tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública também têm sido utilizadas pelas prefeituras, pelas guardas municipais, pelos grandes centros de comando e controle. Aí temos um debate também sobre a técnica legislativa, sobre até onde vai a competência de um ente. E aí, quem vai comprar essa briga?”, questiona.
No último ano, a proteção de dados pessoais se tornou um direito fundamental, previsto pelo artigo 5° da Constituição Federal como um direito de todo cidadão brasileiro.
Para Moreira e outros ativistas defendem firmemente a federalização do debate da proteção de dados a partir de uma visão estratégica de banimento, pois levar a discussão e a regulação para dentro da Câmara dos Deputados e do Senado Federal acende outros alertas.
“A gente tem ali a construção do Senado e da Câmara cada vez mais reacionária, cada vez mais fascista, e cada vez mais complicado pra pautas de direitos humanos avançarem, então não pode ser um tiro no pé do movimento, porque se a gente legaliza os usos, que tipo de argumento a gente vai ter pra combater as prisões? Se está tudo dentro do verniz da legalidade?”, diz.
Há quem acredite que o movimento pelo banimento do reconhecimento facial está radicalizando o debate, mas a ativista rebate:
“Não tem um meio termo, é necessário ser radical, não existe um uso possível ou um uso seguro desta tecnologia. A gente está falando sobre dados pessoais de milhões de pessoas. É um ideal radical à nossa liberdade também, como a abolição da escravatura já foi algo radical e a gente não deixou de optar por ele”, finaliza.