* A conversa contou também com a presença de Israel José da S. Filho, morador e fundador do Somos Todos Muribeca.
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.
MURIBECA
No início de 1982, a política habitacional tirou parcelas da população da região central do Recife para alocá-las nas periferias da cidade. Foi quando o Banco Nacional de Habitação (BNH) construiu os prédios de Muribeca, um distrito do município de Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana do Recife. Os prédios, à época 70, totalizavam 2.240 unidades habitacionais e uma população residente de quase 9 mil pessoas. Após muita luta, veio a infraestrutura urbana de água, afastamento de esgoto, iluminação pública e transporte público.
O ano de 1991, devido à divulgação da possibilidade de se transformar Muribeca em ZEIS [Zona Especial de Interesse Social], foi um marco do crescimento da comunidade. Apareceram novas casas e comércios em construção desordenada (por assim dizer) do ponto de vista do planejamento urbano. Tanto a parte interna quanto a externa do conjunto habitacional Muribeca (espaços entre prédios, espaços destinados à circulação, estacionamento, etc…) foram ocupadas por imóveis. O comércio pujante atendia praticamente todas as necessidades dos moradores.
Por volta de 2003, após laudos apontando risco de colapso e sob a pressão de muitos protestos, a justiça decretou a desocupação de todos os prédios em troca de auxílio-moradia, que gerou êxodo da comunidade, exceto das famílias em posse irregular. Por volta de 2005, a Caixa Econômica Federal, tendo assumindo o antigo BNH, assume também a responsabilidade pelos imóveis, agora conhecidos como prédios-caixão. A demolição exigia um raio de área livre de 12 metros que, no caso de Muribeca, encontra-se toda ocupada por edificações diversas. Em 2015 a juíza manda demolir e todas as casas neste raio de 12 metros dos prédios são desocupadas com força policial.
Desconfiados do processo, das brechas e da jogada política contra o povo, alguns moradores começaram a se movimentar e estudar os processos e as artimanhas por trás deles. Tais moradores criam a associação Somos Todos Muribeca. Desde então, a luta por moradia digna, por justiça, por habitar um pedaço de chão onde uma história de vida se edifica tem sido a tônica do nosso grupo.
DESCONSTRUÇÃO [LULA]
Um exemplo de transformação está no contexto da desconstrução. Antes de enveredar para esses caminhos do ativismo, do senso comum de comunidade, eu tinha uma visão apenas de família. Aquilo que eu poderia fazer de bom, fazia para a minha família: minha mãe, meu irmão, minhas primas, etc. Se é da minha família, então eu vou ajudar. E, aqui no Somos Todos Muribeca, pude perceber que esse caminho pode vir a ser até nocivo, porque você acaba fazendo apenas pelos seus e o resto que se exploda.
O Somos Todos Muribeca transformou a minha visão a respeito daquilo que eu posso fazer: antigamente era mais limitado, mas hoje eu vejo a situação de forma mais ampla. E mudei muito também durante esses anos de relação com a região de Muribeca. Antes, minha percepção estava mais situada, era de mim, da minha rua para a comunidade. Mas isso vem mudando porque fui percebendo o entorno muito mais pela ótica da comunidade, pela ótica das igrejas, dos colégios, do lazer, do comércio, das necessidades de uma comunidade em si. Até então eu não fazia ideia do quanto é importante ter comércio aqui, um comércio local que movimenta a economia, que faz circular um dinheiro aqui mesmo em Muribeca. Não precisávamos sair para acessar o comércio, pois tínhamos tudo aqui. Eu não percebia o quanto é importante termos aqui tudo que nos era necessário. Até casa lotérica tinha em Muribeca.
CABULOSO [MARCELO]
Eu sou um cara que não consegue ficar parado. Sempre fui assim. Então, transformação é uma palavra recorrente para mim. Transformação é uma coisa que faz parte do ser humano porque o ser humano está em processo de transformação. Mas a palavra “transformação” está sempre mudando também. O oposto disso é estar sempre estagnado. Eu acordo com uma ideia em um dia e, no dia seguinte, já estou questionando essa minha ideia. Transformação é estar sempre se questionando: o que eu estou fazendo é legal? o que eu estou fazendo está ajudando apenas a mim? a minha família? a coletividade?
Desde pirralho eu sou “cabuloso” assim: questionador. Eu sempre achei que o sistema nos impõe um caminho que não é necessariamente correto. Acho que a desconstrução citada pelo Lula é por aí. Quando você questiona alguma coisa, você está desconstruindo e reconstruindo algo que você mesmo construiu.
[LULA] Que você mesmo construiu ou que te foi imposta. Que foi colocada para você ao longo de décadas de criação familiar, de escola, de igreja, etc. Dessas coisas que nos cercam enquanto sociedade. Esses padrões.
[MARCELO] Pois é. As igrejas que a gente frequentou, aquilo que você vê na mídia e das redes sociais… Os padrões da moda, sim…. Nós mesmos, inclusive, somos gente que passou por profundas transformações. Veja, por exemplo, as profundas transformações ocorridas nos veículos de informação. Aqui no Somos Todos Muribeca, vimos as transformações das revistas, dos jornais e da televisão, antes veículos quase que exclusivos, para o período das redes sociais por conta da popularização da internet. Questionar as coisas é perceber tais transformações e colocar as verdades em dúvida, é estar na suspeita, é não aceitar que existam verdades absolutas. Na minha opinião – não sei o que pensa o Lula – quem não questiona as coisas está morto. Questionar é um primeiro passo para transformar alguma coisa. Para dar um outro exemplo, não basta adotar as ideias de Paulo Freire; temos que adaptá-las, melhorá-las com a nossa prática. Porque na sua época ele mesmo fez um melhoramento naquilo que ele propôs; e nós, porque estamos vivos, estamos pensando e melhorando as coisas. Cabe a nós melhorar as coisas, transformar as coisas, mas a base são as ideias que Paulo Freire passou.
CONSTRUÇÃO [LULA]
A desconstrução da minha visão, que foi de dentro da minha bolha para a comunidade à minha volta, aconteceu como consequência da desconstrução do entorno. É bom destacar que as transformações aqui em Muribeca nos foram impostas, não foram uma escolha nossa. Isso tudo, desconstrução e construção, é mudança, é transformação. E o que mais importa é replicar a vivência que eu tenho tido nesses anos de Somos Todos Muribeca para que as pessoas compreendam o que é ser ativista. Há que se tomar cuidado, pois a postura questionadora muitas vezes é confundida como agressão, quando não é sobre isso. Precisamos desconstruir uma visão “criminosa” do ativismo, que todo ativista é um filhinho de papai, que é um drogado e não quer nada com a vida. Muita gente tem essa visão ainda, e não é por aí. Quero mostrar que lutar pela sua comunidade é ser ativista, que não apenas o Greenpeace ou o Somos Todos Muribeca são ativismos, mas que a pessoa que limpa a rua, que limpa a canaleta da rua inteira antes das chuvas, na medida em que melhora a comunidade, que melhora a vida das pessoas que moram ali, está fazendo um ativismo também. Neste sentido, todo mundo pode ser ativista.
[MARCELO] Lula falou uma coisa que me tocou. Disse que ele se transformou a partir das mudanças do coletivo, que as mudanças no coletivo afetam o pessoal dele. Quero continuar nesse raciocínio… Quando eu me transformo, e se for uma coisa boa, isso automaticamente transforma o mundo ao meu redor porque vai atingindo outras pessoas. Mas a transformação pode ser para pior. Então, me pergunto: o que é uma transformação boa? É aquela que atinge o coletivo, é aquela que melhora para a maioria. É mais ou menos assim que entendemos essa questão aqui no Somos Todos Muribeca, porque, sendo assim, não é mais sobre o Marcelo, o Lula, Israel… é sobre as mais de vinte mil pessoas que moram aqui.
COMUNIDADE [LULA]
Quero tornar as pessoas um pouco mais receptivas à coletividade. O senso de cidadania, de cuidado, de pertencimento à comunidade, identificação com a comunidade. Fazer com que as pessoas entendam que Muribeca é tua, é nossa, que a gente tem que cuidar dela. E que esse sentimento se replique para outras comunidades. Mas o que eu quero, partindo para o campo individual, é criar os meus filhos aqui como eu fui criado. Eu amo esse lugar, amo essa comunidade. Essa é minha casa. E a nossa luta principal é manter essa comunidade viva. Então não podemos esperar apenas a ação dos poderes públicos. Nós buscamos estabelecer parcerias com a Escola de Ativismo, com o Centro Popular de Direitos Humanos, com o Meu Recife, entre outros grupos que nos auxiliam.
O poder público só entende Muribeca pelo viés jurídico. Já são 13 anos nesse trabalho. Nos dez anos iniciais, nenhuma parceria externa chegou aqui. Fomos entendendo que nossa luta inclui o jurídico, mas vai além dele. Nossa luta é política, entendendo a política em sentido ampliado. Não aquela politicagem de fulano de tal que é amigo de um vereador e que pode quebrar um galho. Não é isso. Penso numa política que nos organize enquanto comunidade para chegar nos objetivos que traçamos – que são, basicamente, melhorar a vida. Então, quero mudar a visão das pessoas, trabalhar para ampliar a visão das pessoas a respeito do que é comunidade e do que é ativismo.
Eu quero mesmo é transformar um final trágico em um final feliz, justo e menos danoso. O que ocorrer aqui em Muribeca pode ocorrer em outras comunidades Brasil afora. Só aqui em Pernambuco, a Caixa Econômica Federal tem problemas com algo em torno de quase 6 mil prédios do tipo caixão, iguais aos aqui de Muribeca.
[MARCELO] Lula foi muito feliz nas colocações dele. Eu acrescentaria a importância de questionar. É importante que as pessoas comecem a questionar tudo e todos. Nesses últimos dez anos neste processo de Muribeca, muitas coisas deixaram de ser questionadas. Estou falando desde o morador do apartamento e o morador da casa até o pastor da igreja, o comerciante… além de não questionar, achavam que só a justiça resolveria o problema. Na verdade, não é assim, porque a justiça não entende as questões do povo. Ela não consegue entender a problemática, ela não consegue fazer a parte humana da coisa. A partir do momento em que o Somos Todos Muribeca começou a questionar “por que vai demolir sem dizer o motivo?”, “por que falar em demolição sem falar de indenização?”… não podemos baixar a cabeça e bater palma para o Judiciário e o Ministério Público. Essas instituições merecem nosso respeito, mas não devemos nos curvar a elas, temos que questionar.
PEDAGOGIA DA PERGUNTA [MARCELO]
Exatamente. A gente precisa questionar e se questionar o tempo todo. É incrível como que 15 mil, 20 mil pessoas que aqui viviam, como deixaram nas mãos de dez pessoas tomar conta de todo um destino. Não estou dizendo que elas fizeram pouco ou fizeram errado, não é isso. Elas fizeram com o que tinham às mãos naquela época. Me pergunto como deixamos nas mãos de tão pouca gente, é pouco representativo isso. Ao mesmo tempo, não fosse essas poucas pessoas, talvez a situação fosse ainda pior, não podemos saber.
Há uma cultura no Brasil – pelo menos aqui em Muribeca nós sentimos muito isso – que é deixar nas mãos de outras pessoas, delegar para alguns poucos as decisões dos destinos de toda uma coletividade. E o Somos Todos Muribeca não está aqui para isso, muito pelo contrário, nós queremos é mudar isso, queremos transformar essa realidade.