Nilce de Souza Magalhães, a Nicinha, foi uma mulher atuante na luta dos atingidos e atingidas por barragens. Assassinada em 2016, era uma figura importante do movimento. “Nicinha a foi uma pescadora que lutou pela justiça e proteção de territórios na Amazônia, foi escolhida para representar trilha sobre segurança, vigilantismo e direitos humanos”, explica a pesquisadora.
A outra trilha vem com a representação de Sarita da Sete, mulher travesti porto velhense que viveu um momento de sua vida em situação de rua. “Sua história nos desafia a refletir sobre as vidas trans marginalizadas e ela foi escolhida para representar a trilha de tecnologia, comunicação e diversidade”, diz Karoline.“Essas figuras reforçam a importância de usar a tecnologia como uma ferramenta de resistência e de conectar à proteção digital à preservação das culturas e das identidades amazônicas, onde essas histórias não só são lembradas, mas re imaginadas de forma positiva”, conclui.
Em outra paisagem, a CriptoCuia decidiu trazer elementos da Cultura Popular paraense para a construção de trilhas, reunindo em sua programação a trilha do Carimbó debatendo temas como Conectividade Significativa, Comunicação e Tecnologias Ancestrais. Propõe, assim, pensar o Carimbó como mais do que um ritmo: é uma dança, uma identidade essencial da cultura paraense e amazônica. Com suas variações e sotaques, essa manifestação cultural é carregada das vivências de mestres e mestras, guardiões do saber transmitido pela oralidade, aliando-se assim a debates importantes quanto ao uso democrático da rede e o acesso equânime para todes.
Já a trilha da Guitarrada fala sobre Governança da Internet, Direitos Humanos e Cuidados Integrais. A guitarrada é uma prática musical que tem origem no Estado do Pará e está ligada ao surgimento da lambada nos anos de 1970, em uma mistura de ritmos criou uma fusão de criptografias musicais fazendo pensar sobre os debates de criptografia e segurança em rede. Suas músicas ecoam práticas criativas e sustentáveis em meio às baixadas e palafitas da Amazônia e lembram da urgência de proteger essa expressão em tempos de crise climática e cultural.
E por fim, a trilha do Tecnobrega para debater sobre Colonialismo de Dados, Racismo Digital e Inovação, cada um trazendo especificidades que retratam as realidades de elementos culturais e seus debates dentro da tecnologia. O Tecnobrega é um ritmo eletrônico autêntico do Pará que utiliza a tecnologia como uma ferramenta essencial, produzindo e se popularizando fora das grandes gravadoras e ganhando força entre a juventude das periferias de Belém. Com o movimento das aparelhagens paraenses, os DJs e produtores dessa cena exploram o que há de mais moderno em tecnologia – de softwares e hardwares avançados – criando mixagens que misturam ritmos e expressam o imaginário popular amazônico.
Essa reflexão é fundamental para pensar ao cenário onde a conectividade e o acesso a internet se instauram, até que propositalmente como no Norte, dentre as desigualdades em relação a outras regiões do país os espaços construídos nas criptofestas nortistas tornam-se lugar de re-existência para essas identidades que confluem na proposta de se reunir, pensar, colaborar e “fazer algo”, tal como as criptoparties se propõem mundialmente, “esses eventos funcionam como laboratórios de aprendizado coletivo, ensinando ferramentas digitais que vão além do uso cotidiano de redes sociais e aplicativos de mensagens — espaços controlados por grandes corporações que priorizam lucros sobre a privacidade e segurança das pessoas.” Conta Allan Gomes, jornalista e coordenador do Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA).
Allan ainda conta que utilizar a Cultura Popular nesse contexto é essencial, pois ela conecta as comunidades a partir de símbolos, narrativas e práticas que já lhes são familiares, tornando o debate sobre tecnologia e direitos digitais mais acessível e engajado. Isso pode se manifestar por meio de expressões artísticas locais, como música, dança e artes visuais, que traduzem conceitos complexos para práticas culturais vividas no dia a dia. Ao criar essa ponte entre tradição e inovação, reforça-se a ideia de que a tecnologia é para todos, rompendo com a exclusividade de saberes técnicos.
Dentro desses códigos de uma identidade plural do território paraense, o espaço da CriptoCuia tem se construído dentro do anseio do protagonismo de identidades anteriormente excluídas ou ignoradas nesses debates. “Quando a gente olha para as programações e visualiza temáticas sobre saberes ancestrais, racismo algoritmo, assim como contar a narrativas do próprio território, a partir do território, é pensar que a gente pode ter esse espaço de protagonismo, não só um espaço de sermos as pessoas convidadas para falar sobre as nossas histórias e sim as pessoas que produzem essas histórias, tornando-se um espaço muito afirmativo.” Conta Vic Argôlo, pesquisadora e curadora da CriptoCuia Belém.
Ela ainda conta que falta de conectividade é proposital para que as pessoas que vivem na região Norte não acessem recursos, oportunidades e espaços em contraponto às demais regiões do país. Ela também aponta que essa precariedade nada acidental é sobre controle, exploração e extrativismo intelectual. “As informações e dados sobre a Amazônia circulam em rede em tempos de Big Tech’s e satélites rodando os céus da Amazônia, mas para além disso, é importante refletir também de que forma o Norte consegue se inserir nesse espaço e disputar.” completa Vic.
Para ela, a construção de espaços como os da CriptoCuia e da CryptoBera para pessoas nortistas também denota um ambiente de acolhimento e segurança. “É um espaço feito para pessoas como nós, para que nos sintamos à vontade e acolhidos… trazendo as perspectivas e atravessamentos das nossas particularidades, que são regionais e são territoriais, assim como são atravessadas por nossos corpos também”, conclui Vic.