Por Bárbara Poerner – 27/10/2023

Em agosto, cidadãos equatorianos votaram contra a continuidade da exploração do combustível fóssil no Parque Yasuní, mas esse resultado é fruto de anos de mobilizações e campanhas

“Pelo Yasuní, nunca cansamos”, diz cartaz de manifestante l Foto: Reprodução

“Você concorda que o governo equatoriano mantenha o petróleo do ITT, conhecido como Bloco 43, indefinidamente no subsolo?”

Essa foi a pergunta que a população do Equador respondeu formalmente no dia 20 de agosto de 2023. Na ocasião, eles foram votar em suas eleições presidenciais e em duas consultas populares – uma delas, a do enunciado. A maioria dos equatorianos disse não à continuidade da exploração de petróleo: foram 58,98% de pessoas que concordaram em manter os fósseis no chão, conforme dados do Conselho Nacional Eleitoral, garantindo ao país o título de primeiro do mundo a banir, por voto popular, a exploração do hidrocarboneto em áreas ambientalmente sensíveis. 

ITT refere-se aos campos petrolíferos de Ishpingo, Tiputini e Tambococha, localizados no Parque Yasuní, que são explorados desde 2016. O parque, criado no ano em que o Equador voltou a ser uma democracia – 1979 -, compõe uma região de aproximadamente um milhão de hectares na Amazônia equatoriana, reconhecida como reserva da biosfera pela Unesco e que abriga centenas de espécies de árvores, plantas e animais, sendo um dos ecossistemas mais biodiversos do planeta. Lá também vivem povos indígenas isolados, chamados de Tagaeri e Taromenane.  

O “não ao petróleo” foi fruto de longas e intensas campanhas, mobilizações e articulações de ativistas, pesquisadores, movimentos sociais, entidades e sociedade civil do Equador. “Era uma campanha que falava sim à vida, sim à manutenção do Yasuní, sim à conservação”, conta Esperanza Martínez, bióloga e fundadora da ONG ambiental Acción Ecológica, com sede em Quito.  

“A mobilização não só foi midiática e nas redes sociais, mas sobretudo nas ruas, com panfletos, alto falantes e em eventos públicos, para deter uma campanha de medo nunca antes vista no Equador, que tentava dizer que se os Yasuní não fossem explorados, ficaríamos sem dinheiro para a saúde, para a educação, ou que a dolarização simplesmente iria cair”, relata.

Uma luta antiga 

No ano de 2008, o Equador aprovou uma Constituição, por meio de um referendo popular, que até hoje é uma das mais avançadas em questões socioambientais. Ela reconheceu os Direitos da Natureza, incorporou o conceito tradicional do “bem viver” e criou mecanismos de participação cidadã, como as consultas populares.  

À época, o governo equatoriano lançou a Iniciativa Yasuní ITT, que pretendia não explorar petróleo no Parque Yasuní desde que os países do Norte Global pagassem uma compensação pelas suas emissões de gases de efeito estufa (GEE), já que a maioria deles são os principais poluidores globais. Segundo Esperanza, esse foi o primeiro estágio das campanhas de preservação do Parque. 

Mas as compensações não chegaram e a meta de arrecadação não foi cumprida. Isso fez com que o governo equatoriano, em 2013, suspendesse formalmente a proposta Yasuní ITT, dando início, em 2016, à exploração de petróleo no Bloco ITT. 

Esperanza relembra que quando o apoio do governo caiu, “o tipo de mobilização mudou e começamos a recolher assinaturas em todo o país para convocar uma consulta popular, que é um mecanismo de participação muito forte e reconhecido constitucionalmente no Equador no artigo 104 da Constituição”. 

Para efetivar o plebiscito, eram necessárias 500 mil assinaturas. Ativistas, movimentos e entidades percorreram todo o país e conseguiram mais do que esse número – em torno de 700 mil. Mesmo assim, o governo foi relutante em reconhecer o processo e por anos recusou-se a conceder a votação. 

Apenas em 2023, após 10 anos e vários processos judiciais, o Tribunal Constitucional aprovou a consulta popular para o caso do Parque Yasuní. Nesta terceira etapa, Esperanza explica que “o tipo de mobilização mudou para uma campanha massiva com o objetivo de ganhar o apoio da sociedade, para votarem por não explorar o Yasuní”. 

Agora, com a maioria dos equatorianos dizendo sim ao petróleo no chão, o Estado tem um ano para retirar as instalações já realizadas e não poderá iniciar novas áreas de exploração ou relações contratuais no bloco. 

reunião em cooperativa

Esperanza falando na Cúpula da Amazônia, em agosto deste ano. Foto: Naiara Jinkins

“A maldição dos recursos”

Existe a preocupação de como tudo isso é recebido pelos equatorianos, já que o país tem sua história e economia atrelada ao petróleo. A exportação do combustível fóssil bruto é a receita majoritária de exportação do Equador, conforme o Observatório de Complexidade Econômica. Por outro lado, o país é refém da importação devido à falta de industrialização do hidrocarboneto; em 2009, os derivados do petróleo foram 98% das importações de energia equatorianas. 

A realidade mostra como fontes de energia fóssil ainda são uma commodity que engrena o capitalismo global e descortina os efeitos dos séculos de exploração da América Latina. Esperanza chama isso de “a maldição dos recursos”, tese que diz que os países com maior abundância de recursos naturais tendem a ter um crescimento econômico menor. 

“Se você perguntar qual é nossa característica central, muitas pessoas lhe dirão que somos trabalhadores do petróleo. Construiu-se uma identidade de país como a de um país petrolífero e sempre utilizaram o discurso que as novas descobertas de petróleo irão nos tirar da pobreza”, explica Esperanza. 

Isso significa que contrapor o discurso petroleiro não é algo atual, mas sim cumulativo, já que soma as décadas do setor no Equador. A bióloga destaca que o Equador está vivendo seu “julgamento do século”, o que lhes deu muitos argumentos sobre os impactos da atividade petrolífera na Amazônia equatoriana. O caso referenciado por ela é o da Chevron-Texaco, que durante suas atividades no país na década de 1970 contaminou milhões de litros de água e hectares de terra, causando a morte de centenas de pessoas e destruindo parte da biodiversidade local. O caso foi à corte do país, na qual a petroleira perdeu duas vezes, mas até hoje recusa-se a reparar os danos causados, estendendo a briga judicial há décadas. 

O petróleo trouxe para o Equador mazelas impossíveis de esconder: as áreas que apresentam os maiores níveis de câncer são justamente as áreas petrolíferas; as regiões mais empobrecidas, que apresentam os piores indicadores de desenvolvimento humano, são as extrativistas; os diversos vazamentos de petróleo ao longo dos anos causam impactos até hoje; e a queima de combustíveis fósseis só agrava a crise climática. 

Ou seja, Esperanza afirma que “a recepção da mensagem tem isso acumulado e embora haja uma forte reação por parte dos sectores estatais e dos sectores empresariais, já não se acredita nelas”, devido aos altos indícios de corrupção e violência onde encontram-se essas atividades. 

“Já se sabe que a atividade petrolífera causa grandes impactos ambientais, já se sabe que dizer que desta vez haverá rendimento financeiro contradiz a realidade do final de cada década, o que mostra que o país está cada vez mais pobre”, explica. 

“Nossa Amazônia não está à venda”, dizem manifestantes Foto: Jerónimo Zuñiga/Amazon  Frontline

Estratégias de mobilização

De acordo com Esperanza, foram articulados diferentes níveis de mobilização. “Em geral, eles têm se caracterizado por muita presença nas ruas e por tentar atingir a população jovem, que tende a ser mais empática com as questões da biodiversidade e as alterações climáticas”. Contudo, ela reforça que as ações são de caráter nacional e descentralizadas para evidenciar que não há vínculo com campanhas eleitorais. 

O triunfo, para a bióloga, é reconhecer a própria diversidade do Equador e a partir disso criar estratégias. “Somos um Estado Plurinacional, onde existem muitos povos indígenas, com muitas diferenças entre regiões, e por isso é muito difícil estabelecer mensagens únicas. Então, a diversificação de mensagens e a empatia com essa diversidade é como um dos grandes pontos chave”, destaca.

Quanto aos desafios durante a campanha em Yasuní, ela elenca dois. Primeiro, a dificuldade de chegar em diferentes territórios e pulverizar as campanhas por meio de ações que ultrapassam o alcance digital das redes sociais; segundo, a carência de recursos, humanos ou financeiros, para impulsionar as campanhas.

Esperanza acredita que evidenciar os impactos nocivos da indústria petroleira é eficaz, pois sensibiliza as pessoas, “mas fizemos muito melhor chamando a atenção para as maravilhas que perdemos, mostrando a importância da natureza e de manter a biodiversidade”. Segundo ela, a estratégia de ser mais propositivo vem alterando o tom das campanhas no país, migrando de “um ‘não ao petróleo’ para para um ‘sim à vida’, sim à conservação de nossas florestas, sim aos modos de vida dos povos indígenas. Acredito que a afirmação da vida é algo que conquista e mobiliza mais do que apenas críticas”, finaliza. 

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