Aconteceu no dia 19 de agosto de 2022, o lançamento do livro Narrativas do Interior. Aconteceu em forma da laive. Laive é um neologismo desses tempos da jovem internete. Essa tal de internete que chegou chegando. Por mais incrível que possa parecer, sobretudo para os mais jovens, o mundo já existia (e até funcionava) antes da internete. Ela, a internete, chegou, aproximou e afastou, acelerou. Mexe e remexe, sacode, balança. Lança. Assim realizamos a laive de lançamento, uma lançalaive: lançamento em modo laive. Lançamento e entrelaçamento de narrativas e interiores.
Tal acontecimento exigiu grande preparação. Para tudo dar certinho, afinal era muita gente envolvida, muita história, narrativas e interiores. Um jovem quilombola se experimentando escritor das narrativas colhidas desde menino numa terra encantada: o território quilombola do Vão Grande.
Desconhecido
Des_conhecido
Des conhecido
Se_conhecendo
Conhecendo
Conhe_sendo
Sendo conhecido
Devagar vamos conhecendo esta terra e seu povo em ações de fazer(-se) comunidade, de “produção do comum” no dizer dos dotô, “que era tudo comum” no palavreado do quilombo. Aqui no território acompanhamos de perto a preparação da laive. A laive lança o livro, lança para o mundo um livro. Um livro que lança para o mundo as narrativas e, com as narrativas, narradores e narradoras, gente que conta causos, gente que faz coisas, gente que cria objetos e, ao criar objetos, cria gentes e modos de vida. Gente que luta, luta pela terra, gente que labuta, labuta pela vida.
Gente que faz viola de cocho, gente que toca viola de cocho.
Gente que faz ganzá, gente que toca ganzá.
Gente que dança e que reza, gente que preza seus santos e santas, gente de fé.
Gente que tece, gente que fia, gente que cria.
Gente que vive da terra, que cuida da terra, gente que traz gente para esta terra.
Gente que tira remédio das plantas
Gente que canta.
Gente que segura o céu, gente que segura na mão uma vida inteira:
e viva a parteira!!!
viva
viva
Gente que luta pelo rio
no calor e no frio
o rio onde o jaú quara na beira
luta de uma vida inteira
Rio livre, vivo e sem fronteira
Jauquara, o rio emoção. Apesar do frio.
Frio.
Certamente o dia mais frio do ano aqui neste mato grosso e trêmulo de frio.
Bom mesmo foi ribuçar na festa de aniversário do João Batista que aconteceu na casa do pai-véio Chico. Para este povo quilombola, o verbo ribuçar significa “ficar bem quentinho debaixo de roupa quente ou de cobertores”. Pensei em ribuçar na fogueira ali no barraquinho do terreno, mas não posso usar este verbo. Então ficamos ali aproveitando o calor da fogueira mesmo e brincando com as pequenas Luiza e Maria. Ribuçar veio depois, debaixo dos cobertores do Programa Aconchego. Ahâã?
No dia e na hora marcados, estávamos lá. Tudo preparado, computador ligado e a internete funcionando. Caminhando do jeitinho que gostaríamos exceto pelo vento anunciado pela chuva do dia anterior e do frio mais forte do ano.
Rio do frio
Frio, muito frio neste Mato Grosso.
Por mais incrível que possa parecer, passamos frio no estado do Mato Grosso.
Até o último momento, Lindalva passava o café para receber parentes. Um livro que narra os interiores. Mas que interiores?
Os parente tudo chegando: Ditos, Tonhos, Clemente, Júnio, Nenê…
Uma laive que lança interiores merece que os interiores estejam na laive. E estavam ali posicionados no plano da câmera. Ali no interior do buraquinho (da câmera), os interiores narrados nas Narrativas.
Estavam ali: Dito 1000, Dito 400, Dito Baiano, Dito Vitor, Antônio, Claudenilson, Larissa, Ivo, Clemente, Francisco, Zacarias, Lindalva, Junior, Pedro, Mila e mais alguéns que talvez me escapem às memórias. Gente muito interessada, gente muito atenta aos acontecimentos do livro e da laive. Talvez um inédito inaugura aquele momento meio mágico, meio místico, meio mítico. Estávamos ali, pouca gente acostumada com laive, talvez apenas eu, Mariana Lacerda e Pedro Paulo porque certamente Pedro Silva, o escritor inaugural inaugurando uma lançalaive e se inaugurando nela. Posicionamos o lepitopi sobre a mesa de forma que o vento não prejudicasse a tela. Diante dela, Pedro Paulo, que assina Pedro Silva como reforço no esforço do nome carregamento das tradições e narrativas de interiores. Do lado direito, Lindalva, sua mãe. Do lado esquerdo, pai-véio Chico, seu avô.
De nossa parte, tudo começou em 2019, mais precisamente em 28 de abril como canta Dito Ilino, o Dito Ilino (Dito Baiano)
RENASCEU ENTRE AS COLINAS / SUAS ÁGUAS SEM IGUAL / CORTANDO SERRA E MONTANHA / COM DESTINO AO PANTANAL / TRAZENDO ESPERANÇA E VIDA / PARA MUITOS CORAÇÕES / SEU EXISTIR É UMA HERANÇA PRA FUTURAS GERAÇÕES
RIO JAUQUARA, RIO JAUQUARA / FAÇO AQUI MINHA HOMENAGEM PRA ESSAS ÁGUAS QUE NÃO PÁRA / RIO JAUQUARA, RIO JAUQUARA / SUAS ÁGUAS COR DE ANIL / DEIXO AQUI MINHA HOMENAGEM: 28 DE ABRIL. DEIXO AQUI MINHA HOMENAGEM: 28 DE ABRIL.
Muitos olhares atentos à tela e ao buraquinho de vrido que fica em cima dela, que os sabido chama de câmera. Dois olhares atentos aos muitos olhares: enquanto a laive rolava, Mariana, “nossa dotora devogada”, dedicada, observa as expressões, olhares e percebe lágrimas. Lágrimas contidas ou corridas. E percebe gente se fazendo rio, gente vertendo, vertedoura de fortes emoções em forma de lágrimas que, pingando, alimentam a terra e o lençol freático. Gente do território quilombola, gente território de passagem de afetos alegres que metabolizam a água do rio Jauquara em corpos afetivos e, na forma de lágrima, devolvem para o rio a água limpíssima, água emocionada:
“estou muito orgulhoso de tudo isso. Obrigado pra você que agora considero filho meu também, obrigado por ajudar esse meu neto a escrever esse livro que fala de nossa gente, de nossa terra, de nossa tradição. Hoje eu me sinto com o dever cumprido. Eu que nunca pensei em chegar tão longe nessa vida…”, disse o seu Francisco.
A dotôra adevogada vê no olhar do seu Francisco muita emoção, respeito, carinho. Acho que pouca gente viu isso porque enxergar exige sensibilidade. Estava ali, tudo ali naquele rosto marcado pelo tempo, marcado pela vida. Seu Francisco, o pai-véio, fez versos para este momento especial. Sua canção diz assim:
OLHA MEU PEDRO PAULO / ESSES VERSO É PRA VOCÊ / MAS É VERDADE
COM TODAS INTELIGÊNCIA, ENTÃO / EU QUERO É TE AGRADECER / MAS É VERDADE / MAS EU QUE NASCI PRA PADECER / NESSE MUNDO DE MEU DEUS / MÃE, MAS NÃO HÁ DE SER NADA, NÃO.