Martin Luther King descansa na Jamaica em 1967
Descansemos, ativistas.
Estamos escrevendo esse texto bastante cansados. Com satisfação pelos passos dados até esse dezembro de 2022, que marca o fim de um longo expediente de pesadelos iniciado em outubro de 2018.
Lembramos com o título uma frase-meme que ganhou a internet de maneira indiscriminada e na maioria das vezes perversa. Toda vez que alguém questionava politicamente algum conteúdo online era só descer alguns comentários para encontrar:
“Descansa, militante”.
O chiste, usado para desqualificar intervenções muitas vezes de qualidade e outras nem tanto, nos revela algo também. Se há beleza e verdade na frase brechtiana, que aqueles que lutam a vida toda são os/as imprescindíveis, também há um fardo pesado que carregamos.
A luta, essa sim a verdadeira imprescindível e inevitável para milhões de ativistas e militantes desse país, aparece como uma terceira, quarta, quinta ou sexta jornada. Aquilo que acontece após ou durante o trabalho, os afazeres domésticos, a lida com a terra, o cuidado com as crianças, com os mais velhos, os doentes.
Viver num mundo desigual e capitalista cansa demais. Viver com o território atacado exaure. Atravessar, entre trancos e barrancos, uma pandemia no terceiro mundo, diante do esfacelamento do trabalho e dos laços comunitários, cansa. Ganhar uma eleição contra um necrogoverno mobilizando toda sua máquina pela perpetuação cansa. Racismo, machismo, LGBTfobia matam e cansam. Sofrer com o sofrimento do outro como se fosse o seu, tremer de raiva e de impotência, drenam a gente. Trabalhar cansa.
Há, também, uma moral e um elogio do militante/ativista incansável. Quantas vezes não cantamos e ouvimos em jogral, a pergunta e a resposta:
“Cansados?
– Não! Da luta do povo ninguém se cansa”
É verdade, mas também uma verdade que habita o reino das ambiguidades e contradições. Cansamos sim. É importante poder reconhecer. Mas não cansamos também: porque firmamos um compromisso com o futuro e com o mundo melhor.
Mas, para poder chegar nisso, precisamos estar inteiros.
Precisamos estar felizes. Não sempre. Mas nos permitindo às vezes. Precisamos superar uma lógica produtivista a todo custo e uma moral abnegada que desumaniza o ativismo.
E, ao fim e ao cabo, que mundo queremos? Um mundo que seja também alegria e celebração. Um mundo que seja depositário de liberdades e dignidades para a pessoa humana. Que bem-vivamos e bem-sonhamos. Que possamos trabalhar menos. Ou talvez nem trabalhar! Que possamos exercer nossas atividades, isso sim, cada um/a de acordo com suas possibilidades e habilidades. Que possamos socializar os cuidados e as tarefas do viver.
Por isso, nosso desejo de fim de ano é aquele das boas festas. Que possamos parar, olhar tudo que lutamos e contemplar o que temos pela frente. Que consigamos recarregar as energias com as pessoas, animais, matas e mares que amamos. Recuperemos então o tempo que o trabalho e o fascismo nos tolheram. Que seja um dia, que sejam dois, que sejam algumas horas. Que possamos nos curar.
Para fechar, uma última tarefa: a Defesa da alegria, do poeta uruguaio Mario Benedetti
Defender a alegria como uma trincheira…
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria por princípio
defendê-la do pasmo e dos pesadelos
assim dos neutrais e dos neutrões
das infâmias doces
e dos graves diagnósticos
defender a alegria como bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingênuos e também dos canalhas
da retórica e das paragens cardíacas
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e homicidas
do descanso e do cansaço
e da obrigação de estar alegre
defender a alegria como uma certeza
defendê-la do óxido e da ronha
da famigerada patina do tempo
do relento e do oportunismo
ou dos proxenetas do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de Deus e do Inverno
das maiúsculas e da morte
dos apelidos e dos lamentos
do azar
e também da alegria