A colunista Luh Ferreira faz uma arqueologia do ódio à escola que se manifesta nos massacres nessas instituições buscando raízes e formas de combater essa cultura

Professores de São Paulo protestam contra a violência nas escolas em frente à Secretaria de Educação, na Praça da República, após o ataque na escola Thomazia Montoro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Professores protestam em São Paulo contra a violência nas escolas l Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

Começa com algo despretensioso. Algo como: “Queremos proteger nossas crianças!”. Pelo menos era isso que bradavam mais de cem pais na porta da câmara municipal de Suzano (SP) em meados de junho de 2016. A maioria deles católicos.

Vimos este ato se espalhar por muitas cidades do Brasil. Pude acompanhar este movimento pelos interiores de São Paulo, onde o conservadorismo cego segue vivo e se espalha pelas casas, pelas ruas, sobre as famílias e atravessa as escolas.

Na ocasião nos perguntávamos: mas que raio é isso? Ideologia de gênero de quem?

E ao escavar a origem deste pseudo manifesto, descobrimos que tratava-se de uma atitude da própria Igreja Romana que, na década de 1990, tratou de tentar coibir tudo aquilo que ela mesma julgava imoral na sociedade. Travou uma verdadeira batalha contra os gêneros para supostamente impedir o avanço de abusos contra crianças e adolescentes. Na época as comunidades de base realizaram um importante trabalho de conscientização junto às famílias, no entanto, abafou – como sempre! – os casos de abusos sexuais cometidos contra crianças e adolescentes por parte do clero. E neste sentido os adultos responsáveis pelas violências cometidas não foram expostos e tão pouco julgados.

Pouco depois, estas denuncias chegaram a ONU e, como o conservadorismo adora criar pseudofatos cabeludos para inflamar o povo, tudo isso entrou num pacote mal embrulhado do “problema do gênero”, recheado de críticas aos direitos sexuais e reprodutivos e cheio de muita homo-lesbo-bi-trans-fobia e misoginia.

Vale lembrar que 2016, foi o ano de impeachment de Dilma, e vimos um horrível show que expunha a presidenta, mas ao mesmo tempo todas as mulheres, sua vida pessoal e sua governança não só no Congresso por seus opositores, mas também nojentamente nas ruas. A misoginia ficou escancarada e com ela todas as intolerâncias cresceram.

No mesmo ano em que foi gestada a reforma do ensino médio, quando as ocupações nas escolas ainda estavam acontecendo pelo país, os estudantes foram as ruas dizer que a escola estava sendo atacada e eles precisavam defendê-la. E, por isso, foram violentamente reprimidos.

A Igreja estava atuando no combate ao “gênero” e as famílias também, já estavam mobilizadas e em campanha. A escola enquanto instituição, como deve ser, resistia a entrar nessa courela, então educadoras e educadores e suas práticas pedagógicas viraram alvo da grande campanha persecutória e vigilantista dos conservadores.

Ressalto aqui que gênero é uma categoria política, analisa elementos da sociedade que cria comportamentos para as pessoas. Não é, e nunca será, um instrumento para modificar, alterar ou destruir mentes. Escola nenhuma ensina e nem nunca vai ensinar alguém a mudar de gênero. A escola realiza uma mediação dos entendimentos construídos em sociedade, ela oferece um tempo livre para que os estudantes possam pensar sobre o mundo, sempre a partir da diferença, daquele que é diferente de mim e da minha família. Educadoras e educadores, portanto, não tem função de padronizar pensamentos muito menos realizar doutrinações, a escola dissemina pensamento crítico, legalmente amparado pela Constituição Federal, pela a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, por Diretrizes Curriculares, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e também pela Lei Maria da Penha e, conjunto com tantos outros documentos que fazem parte do sistema educacional brasileiro.

Neste período, e diante de tantos ataques à escola, seu princípio laico e inclusivo, vimos explodir projetos de lei, decretos, regulamentações, que modificavam planos de educação retirando a palavra gênero dos currículos e outras tantas aberrações. Vimos ainda exclusões de livros e materiais didáticos, que tratavam do assunto, por parte de secretarias municipais de educação. Vimos ainda, e de maneira aparvalhada, pessoas queimando livros em praça pública em uma ode a caça as bruxas, como se estivéssemos na idade média.

Vimos o prefeito de uma grande cidade brasileira, mandar retirar um livro de uma Bienal, por julgar uma literatura imprópria para adolescentes.

 

Infâncias vulnerabilizadas

 

Pois bem, e diante da confusão de quem esta certo ou errado, de quem defende e quem ataca as infâncias, a escola ficou sitiada.

E tornou-se um espaço extremamente vulnerável.

Em 2018 um sujeito foi eleito com base na violência, uma facada determinante fez o Brasil acreditar que atos violentos poderiam resolver tudo. E aí vieram decretos de liberação de armas, vieram destruição de direitos, ódio as mulheres, igreja contra igreja, igreja na política, escândalos, escândalos, escândalos, céu desabando… e o pior de tudo: pandemia!

E a escola que já estava sofrendo, esvaziou.

“E pra que serve a escola, pra ficar botando menina e menino no mesmo banheiro?” me perguntou certa vez uma conhecida.

É, parece que muitas famílias estavam decididas a excluir este equipamento de suas vidas.

Homeschooling que fala?

Perfeito para o governo da vigilância. Excelente para o governo da contenção de gastos. Um primor para os que defendem a ausência de pensamento.

Antes da pandemia, e de todo esse debate de escola em casa: falávamos de violência, certo?

Da tal da facada, que transformou um pária, um pulha, em herói.

E aí vimos o ataque a escola de Suzano. Sim esta mesma cidade entre tantas que em 2016 se manifestou contra a ideologia de gênero e atacou o coração da escola.

Dois jovens mataram oito pessoas, feriram onze, e em seguida se suicidaram, na Escola Estadual Raul Brasil. Guardo na memória o quanto essa escola costumava ganhar os campeonatos inter escolares na cidade, times fortes!

Uma arma foi utilizada para atacar as pessoas, e também um machado, que feriu muitas outras.

Um machado.

O mesmo instrumento utilizado para atacar e matar 4 crianças de uma creche em Blumenau, Santa Catarina.

Faca foi o instrumento utilizado para matar uma professora, e deixar quatro feridas em uma escola na Vila Sônia, na cidade de São Paulo.

E após estes ataques, todos com muitas semelhanças: jovens, meninos, usuários de internet, participantes de chats misóginos, neonazistas, pouco falantes, vitimas de bullying talvez… veio a descoberta por meio do monitoramento das redes, outros ataques à escolas e universidades.

Escolas sendo preparadas para o abate.

E abatendo a escola, esses sujeitos de masculinidade frágil, saem vitoriosos diante de seus comparsas.

Morrem e deixam uma legião de fãs, que inspirados pelo feito do outro, decidem fazer pior.

Mas o problema todo está na “ideologia de gênero”.

Está na “falta de vigilância, de câmeras de reconhecimento facial nas escolas.”

“O problema está nas educadoras, que ensinam coisas erradas.”

“A escola não serve pra nada!”

Ora, vamos parar com isso Brasil! Não é por aí.

Quando uma criança morre, morrem mundos possíveis.

Quando uma criança morre assassinada em uma escola, falhamos enquanto sociedade.

Não é mais possível seguir, não é possível continuar assim.

É preciso parar tudo para pensarmos: o que estamos fazendo de nós mesmos?

Escavar profundamente a origem dos problemas e fazer lembrar, e sofrer por isso, e cuidar disso.

Para de festejar galera!

O bagulho não tá resolvido!

O ódio está no subsolo, está enraizado, vem sendo alimentado há anos.

Realizemos uma arqueologia, uma escavação profunda, vamos lembrar dos fatos para pensarmos o que faremos já, agora, se quisermos ter um futuro digno.

Por Luh Ferreira, da Escola de Ativismo

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