Por Luíza Ferreira – 11/08/2023

Brigadistas de Alter do Chão foram presos, investigados e perseguidos até pelo então presidente Jair Bolsonaro; consequências permanecem quatro anos depois

Brigadistas são soltos em 2019 após serem ilegamente presos | Foto: Reprodução

Após liderar o primeiro turno em 2018, o agora ex-presidente Jair Bolsonaro disse que colocaria um ponto final em todos ativismos no país. Durante seu mandato, frequentemente comparou organizações não governamentais à um “câncer”. As ações seguiram as palavras: os quatro anos de seu governo significaram o aumento de ataques contra ativistas de direitos humanos, povos tradicionais e a sociedade civil.

Um exemplo emblemático e ilustrativo desse contexto obscuro no qual as organizações da sociedade civil estavam imersas ocorreu em 2019, no Pará, e lançou luz sobre a tentativa de criminalização de ativistas e de ONGs atuantes na região. Naquele ano, quatro brigadistas que atuavam no combate a incêndios florestais na região de Alter do Chão, próximo a Santarém, foram presos – e posteriormente inocentados – acusados de provocar incêndios criminosos com o objetivo de arrecadar doações para a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão. Entre os brigadistas, alguns também trabalhavam junto ao Projeto Saúde e Alegria. 

“Na época a Brigada era uma instituição nova, porém muito atuante e forte. A gente não estava pra brincadeira. Tínhamos um objetivo claro de proteção da floresta. Por isso assustamos tanto eles, nosso crescimento era exponencial”, é o que diz Daniel Govino, fotógrafo, jornalista, brigadista voluntário,  fundador e ex-coordenador da Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão e do Instituto Aquífero Alter do Chão.

Ainda segundo Daniel, a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão tinha uma boa relação com todas as esferas do governo, tendo recebido em certa ocasião uma moção de aplausos da Câmara de Santarém, além de elogios do próprio governador.

“Eu falava diretamente no celular do prefeito e da secretária de meio ambiente. Éramos treinados e incentivados pelos bombeiros militares. Era sério o trabalho e ainda é. Porém, a nossa inocência era grande também e não conseguimos ver depois dos tapinhas nas costas viria um punhal”, relembra. 

O brigadista afirma chegou a temer que eles poderiam ser alvo de alguma tentativa de calúnia e culpabilização, mas a legalidade e a transparência na atuação da Brigada o tranquilizava. 

“Se alguém nos investigasse, veria que estávamos perfeitos nas contas e na atuação. Mas nós não fomos investigados, fomos sacaneados”, afirma. 

Antes mesmo de serem presos, muita gente já acusava os brigadistas de atearem fogo na floresta propositalmente, ao que Daniel nomeia como uma “alucinação da extrema-direita bolso-trumpista”, de uma parte da população que está imersa no discurso de ódio contra qualquer um que se coloque em defesa dos direitos humanos.

“Para mim é claro: eles queriam criminalizar as ONGs. Uma grande (World Wide Fund for Nature – WWF), uma média (Projeto Saúde e Alegria – PSA) e uma pequena (Brigada de Alter e Instituto Aquífero Alter do Chão). Acharam que estavam dando um tiro certeiro para nos derrubar e o que eles acabaram conseguindo foi nos levantar mais ainda”, diz. 

Para Daniel, outro fator importante na acusação foi Abraham Weintraub, Ministro da Educação à época, que foi alvo de protestos em Santarém por ativistas que atuavam na região, enquanto passava férias com a família. A situação com o ex-ministro teria tensionado ainda mais a relação das autoridades com os ativistas e as ONGs.

 

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Brigadistas em ação durante incêndio | Foto: Brigada de Alter/Reprodução

Danos e prejuízos

A junção de calúnias, acusações de órgãos oficiais e motivação política para as polícias locais foi fatal: brigadistas passaram três dias presos com medidas cautelares que perduraram por um ano, além da apreensão de equipamentos da instituição por mais de três anos. E como ainda existe um inquérito em aberto, alguns equipamentos ainda se encontram em poder da Polícia Civil.

A lista de efeitos é extensa e não se limita às consequências físicas e materiais, visto que, no contexto institucional, colaborou para o enfraquecimento do projeto, dificultando a interligação com órgãos públicos envolvidos nas ações de prevenção e combate a incêndios florestais, impedindo a captação de recursos e amedrontando potenciais voluntários, além do impacto psicológico brigadistas, como comenta João Romano, outro brigadista acusado no mesmo processo.

“O trabalho de contra narrativa, justamente pelo contexto político em que se deu a criminalização demandou e demanda esforços que ocupam tempo que seria fundamental no fortalecimento do projeto”, narrou.

Romano ainda alerta outras instituições que atuam com ações emergenciais em parceria com o poder público: o respaldo legal é fundamental, principalmente se há envolvimento de dinheiro público, o que não era o caso da Brigada de Alter. Para ele, o caso serve para analisar as fragilidades institucionais e ilustra a necessidade de entendimento de procedimentos mais seguros para atuação.

“As instituições necessitam de uma assessoria jurídica e de entender sobre segurança digital e comunicação, mas especialmente as que fazem um trabalho ativista, ambiental e lidam com causas sensíveis”, reforça.

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Como atua a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão e o PSA? 

A Brigada de Incêndio Floresta de Alter do Chão é um programa dentro do Instituto Aquífero Alter do Chão (IAA), funciona de forma totalmente voluntária e independente, e reúne, desde de 2017, um grupo de comunitários voluntários, que trabalham para combater incêndios florestais na Área de Proteção Ambiental de Alter do Chão (APA Alter do Chão) e na proteção da biodiversidade local. A formação para o trabalho vem dos Bombeiros Militares, da Defesa Civil e da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Turismo de Belterra (SEMAT). 

“Os bombeiros de Alter treinavam a gente. Eles incentivaram  a nossa criação e manutenção. Para eles era bom ter esse grupo lá, porque a gente ia combater diretamente o fogo na floresta, já que eles já tinham uma cidade inteira para cuidar”, diz.

“Os bombeiros de Alter treinavam a gente. Eles incentivaram  a nossa criação e manutenção. Para eles era bom ter esse grupo lá, porque a gente ia combater diretamente o fogo na floresta, já que eles já tinham uma cidade inteira para cuidar”, diz.

Entre as frentes principais da atuação da Brigada estão a prevenção, o combate e a articulação política ou inteligência de ação e comunicação, que age para agilizar o atendimento das ocorrências. À época dos acontecimentos ninguém recebia salário para realizar os trabalhos, inclusive os de combate direto aos incêndios. 

Já o Projeto Saúde e Alegria (PSA) desempenha, há mais de 30 anos, um trabalho na região da Amazônia, em especial na cidade de Santarém, no Pará. Ao longo de sua trajetória, a ONG tem desempenhado um papel fundamental na melhoria das condições de vida das comunidades locais, aliando a promoção da saúde, educação, inclusão social e preservação ambiental. 

No mesmo ano das acusações, eles foram reconhecidos como uma das 100 melhores ONGs atuantes no Brasil. Uma das iniciativas pioneiras do Projeto Saúde e Alegria foi a implantação do programa “Barco da Saúde”, que percorre os rios da região amazônica, oferecendo assistência médica, odontológica e preventiva a milhares de pessoas que vivem em áreas remotas. 

Além disso, a ONG também desenvolve projetos educacionais voltados para a formação de professores e o apoio pedagógico em escolas ribeirinhas, contribuindo para a melhoria da qualidade da educação nessas comunidades. Em parceria com as comunidades locais, o Projeto Saúde e Alegria tem promovido ações de conscientização ambiental e preservação da floresta amazônica. 

Bolsonaro acusou até ator de Hollywood de tacar fogo na Amazônia

Outro aspecto surreal da narrativa dos acusadores envolvia até mesmo o ator Leonardo DiCaprio, – conhecido por seu apoio à causa amazônica. Ele foi citado pelo presidente Bolsonaro como um financiadores da Brigada, em mais uma “tentativa de criminalizar quem faz trabalhos honestos na Amazônia”. O então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, também se apressou em condenar os brigadistas, vistos como bode escapatório perfeito  contra críticos de seu governo. 

“A Polícia Civil tinha escuta em nossos telefones e um dia eles grampearam um áudio de alguém da Brigada falando que a gente estava crescendo e que “daqui a pouco o Leonardo DiCaprio ia nos procurar”. É claro que a gente queria sentar na mesa com a Fundação Leonardo DiCaprio. Tenho certeza que se não fosse a baita sacanagem que fizeram com a gente, isso não ia demorar a acontecer”, diz. 

“Nós fomos presos no dia 26 de novembro de 2019, no dia 30 de novembro tínhamos uma reunião com representantes da Fórmula E. O grupo nos procurou por vontade própria para nos financiar. Eles queriam financiar a gente e os bombeiros de Santarém. Eu estava com o projeto pronto, não deu tempo de apresentar”, lamenta Daniel. 

E como ficou a investigação? 

Ao longo dos últimos anos, a investigação enfrentou diversas reviravoltas, com períodos de estagnação e avanços nas apurações. Diversas entidades e especialistas manifestaram preocupação em relação à condução do caso, ressaltando a falta de provas consistentes e indícios de que as acusações tinham motivações políticas e econômicas. 

Após uma análise minuciosa das evidências e da argumentação apresentada pelas defesas dos brigadistas, o Ministério Público do Pará (MPPA) concluiu que não havia elementos suficientes para sustentar as acusações

O inquérito foi arquivado, e os brigadistas foram considerados inocentes das acusações de incêndio criminoso e organização criminosa. Mesmo com o desfecho favorável, o caso revela uma realidade preocupante na tentativa de criminalização de ONGs e ativistas socioambientais, além de deixar uma marca na história das organizações.

Para Daniel, todo o processo de investigação à qual foi submetido junto aos demais brigadistas representa um aprendizado para as organizações:

“A quem interessa que a gente não se organize? Existem basicamente dois tipos de organização jurídica: empresas e ONGs. Por que será que uma parte da burguesia e uma parte dos políticos atacam as organizações da sociedade civil? Porque as ONGs fazem o que eles deveriam fazer”, enfatiza. O brigadista afirma ainda que atacar ONGs faz parte da estratégia da extrema-direita de criminalizar “a estrutura jurídica que não tem fins lucrativos e que, geralmente, presta um serviço social que o governo, e muito menos as empresas, não conseguem prestar”.

Mas, ao fim ao cabo, Daniel comemora: “A saúde e a alegria venceram”, finaliza.

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