Pesquisar

Julhin de Tia Lica: O rico artivismo na cultura popular e a permacultura que transformam a vida no sertão de Seridó

"Ativismo é tirar daquilo que parece não ter nada e colocar onde parece não caber", disse Julhin na série Ativismos e Democracia, da Revista Tuíra #4

Eu sou Julio César Silva de Oliveira, tenho 25 anos, mas todo mundo aqui da comunidade onde moro, no povoado Currais Novos, na zona rural de Jardim do Seridó, no Sertão Potiguar, me chama de Julhin de Tia Lica. Tia Lica é assim conhecida minha avó, porque foi professora do ensino infantil na comunidade e marcou a vida de várias gerações. Como no interior sempre você é de “alguém”, carrega os ancestrais no nome, eu sou de Tia Lica. Foi ela quem me ensinou a amar minha terra, meu lugar, minha cultura e o que faço hoje: sou ‘artivista’ de cultura popular, trabalho com aquilo que pesquiso e me atravessa: teatro de João Redondo, Coco, Papangus, Irmandades do Rosário. Inventei até de compor, como síntese dos sentimentos que tenho quando estou fazendo-descobrindo meu lugar.

O artista

Ter nascido na zona rural me proporcionou aprender com a agricultura familiar, estudar numa escola rural; aprendi a ler o mundo a partir do meu chão. Foi com minha mãe que aprendi a amar a terra, e na escola me descobri artista.

Minha primeira brincadeira de João Redondo (teatro de bonecos do Nordeste) foi aos oito anos na escola. Foi na escola que fui apresentado ao teatro, às cantigas. Nessa mesma fase tenho minhas primeiras lembranças da Irmandade do Rosário na procissão, do encanto com os cantadores de coco. Quando entrei na igreja protestante, tudo aquilo de cultura popular que eu via e vivia foi substituído por outras formas de arte mais aceitas pela igreja, e isso de forma inconsciente e velada. Aquilo que via de cultura popular na igreja sempre era mostrado de forma caricata e com o intuito de evangelizar pessoas. Com isso me distanciei da minha arte e da minha própria identidade. Mas foi justamente nesse lugar, a igreja, que abri os meus olhos quanto à minha própria necessidade de autoafirmação e retomada da identidade perdida.

Culto, cultura e cultivo

Foi olhando pra pessoa e obra de Jesus que entendi que mais importante é construir e não destruir, afirmar a beleza do diferente e não subjugar em busca de tornar o diferente um igual, fazer pontes e não muros; aprendi que a vida é integral e deve ser vista de forma holística. Essa retomada precisava ser feita de outra forma. Comecei a militar dentro da própria igreja sobre decolonialidade, racismo e suas múltiplas faces, diálogo inter-religioso, religação com o corpo da terra, ancestralidade e tudo aquilo que precisamos deixar e aquilo que não devemos abrir mão para seguir e ter uma fé saudável. Hoje sintetizo essa luta, que é tão abrangente e que tem tantas formas, em três pilares: culto, cultura e cultivo. Começamos, minha companheira e eu, um centro de permacultura no meio do Sertão do Seridó, chamado Agrofloresta Seridó, onde trabalhamos esses três eixos (culto, cultura e cultivo) e pensamos a integração dos saberes acadêmicos com os saberes ancestrais, desde a arquitetura até a arte, promovendo encontros e festivais na cidade e na zona rural.

Se a postura da religião fosse realmente de conservação da vida, principalmente quando falamos desse direito supremo, vida não seria um problema, mas uma solução. Aquilo que vemos, ouvimos e lemos todos os dias, é em grande parte resultado da conservação de uma cultura de morte, fruto de fundamentalismo religioso, que assassina corpos e conhecimentos existentes que são produtores de vida.
 
 Quando esses princípios tão preciosos do existir enquanto comunidade humana são feridos, muitas vezes por pessoas do meu lado, da minha religião, que cometem essas violências, ao mesmo tempo que sou ferido, sofro e choro, sou impulsionado e instigado a permanecer e canalizar a dor e a raiva que sinto, para pensar: como posso gerar transformação e mudança de mente aqui, no meu entorno? Então, amantes e companheiras, a arte e a educação popular saltam.

Artivismo

Na verdade não consigo desassociar o meu ativismo “permacultural” da arte. Ela é minha voz, minhas mãos, minhas pernas. Parafraseando o grande poeta Pinto do Monteiro: “é ela quem tira de onde não tem, pra botar aonde não cabe”, e é exatamente esse o meu ativismo: tirar daquilo que parece não ter nada e colocar onde parece não caber.

Fazemos, sim, denúncias do que já nos está posto. Na minha primeira obra artística, chamada “Auto do Céu” – álbum musical (1) e livro lançados na pandemia em todas as plataformas digitais -, critico a loucura insustentável dos modos de vida dos grandes centros e, como nós, pessoas de cultura oral, sofremos nesses lugares. Pela poesia de cordel, pelo audiovisual em documentários, mostramos o outro lado das energias renováveis que nos assolam aqui no Sertão. Tudo isso é importante, mas só com uma identidade forte e restaurada é que nosso povo tem poder de reagir.

Pensando nisso eu idealizei o Festival Sankofa: Encontro dos Reinos Pretos do Rio Grande do Norte. O encontro reúne as três manifestações culturais de matriz africana que têm reis e rainhas do nosso estado (Congos, Maracatu e Irmandades do Rosário) e acontece sempre no Quilombo da Boa Vista. Pela manhã, com as oficinas voltadas à identidade, e em Jardim do Seridó, à noite, com um grande cortejo que leva até a Casa do Rosário, onde temos uma noite repleta de atrações que valorizam a identidade do povo preto do Seridó. O encontro tem também uma forte contribuição para a região no campo do diálogo interreligioso. Em 2022, pela primeira vez, pais e mães de santo andaram livremente com seus trajes, cantando para seus orixás na cidade do Seridó, e esse foi um momento de muita fé e de muito respeito.

Não há como separar a arte do ativismo, pois uma não existe sem a outra: Artivismo.

Volta

Julhin de Tia Lica

Quebrou-se a barra, o Sol se alevantou
 Mas o que eu mais quero é vê-lo se pôr
 E ver na parede os ponteiros girar
 O tempo correr e depressa passar

Em todos os cantos só vejo você
 Aperte esse passo que eu quero te ver
 A prece que eu faço é pra não morrer
 Só no teu abraço é que eu posso viver

Há, quando tu voltar praqui
 Tudo vai ser diferente
 Não vai ter tempo pra choro
 Só pra se mostrar os dentes

Quando anoiteceu, dormi
 E o tempo foi embora sem me avisar
 Quando eu me avexei, o tempo parou

Volte logo que eu já tô agoniado
 Meu peito tá apertado com saudade de você
 Me solte aqui que eu tô preso nesse mundé
 Fraco feito um bezerro novo sem puder ficar de pé
 Esse meu mundo tá em tempo de explodir
 Já tá apui de cuspir o povo que mora nele
 É violência, injustiça, incoerência

O povo morre de doença e eles deitado na rede
 E eternamente tão deitado em berço esplêndido
 E o povo aqui morrendo se ter nem onde cair
 O sangue escorre da pista e o povo grita justiça
 E assim seguem na vida sem motivos pra sorrir
 E volte logo pois só olhando em seu rosto
 É que sai esse desgosto e que eu posso invivêscer
 Enquanto isso sigo estancado a sangria
 Falando da alegria que só existe em você

Ah, quando o céu no chão cair
 Como um verso de repente
 E um curisco ressurgir
 Os sonhos de antigamente

Quando anoiteceu, dormi
 E o tempo foi embora sem me avisar
 Quando eu me avexei, o tempo parou

É a derradeira viagem desse soldado

Futuro

Existem lutas que pegam a gente de forma mais profunda. Ser artivista, como gosto de dizer, numa região como o Seridó, pressupõe muitas dores, sentimento de solidão, abandono… É ver a coisa toda acontecendo e não ter para quem contar, a quem recorrer, é ver caminhões de madeira (muitas vezes ilegal) serem queimados, parques eólicos e fotovoltaicos serem construídos indiscriminadamente nas nossas serras, causando tantos impactos não só no meio ambiente mas na vida das comunidades, nas suas culturas… É tentar promover ações e não achar os meios e os recursos.

É angustiante olhar pra tudo isso e pensar: o que vai virar isso aqui? Mas acredito que as sementes plantadas frutificam; acredito que, com esse trabalho de base que fazemos, conseguimos despertar algumas pessoas que acabam por se tornar pessoas chaves nas lutas.

O processo de retomada indígena Tarairiú (2) que estamos vivendo, por exemplo, tem me gerado muita expectativa, pois é um marco importantíssimo de articulação, ou desarticulação na verdade, desse sistema colonial em que vivemos aqui, pois ele abrange todas as áreas e permeia todos os problemas socioambientais que vivemos no nosso território.

A luta no sertão do Seridó e a democracia

TEXTO

Julhin de Tia Lica

Artista, educador popular, permacultor

publicado em

Temas

Matérias Relacionadas

Uma das marcas para sabermos se a democracia chegou é a liberdade e soberania dos territórios – e não temos isso aqui ainda. Costumo dizer que o Seridó é um dos lugares onde a colonização mais deu certo: terra altamente degradada com um dos maiores índices de desertificação do Brasil e, ainda assim, em estado de avanço dessa condição por causa das indústrias de telhas e tijolos, carvão e, agora mais recentemente, as usinas eólicas e fotovoltaicas. Os povos indígenas tidos com exterminados, apesar de existirem (mas não se reconhecerem como tal); comunidades quilombolas enfraquecidas quanto às suas identidades e tradições; classe trabalhadora submissa, acrítica e conformada com as tantas explorações do capital oligárquico manifesto nas grandes empresas e na política local… Toda essa análise da conjuntura seridoense causa cansaço e dor, pois as raízes da colonização estão fincadas muito fundas no nosso território.

A maior ferramenta para quebrar a colonialidade é o trabalho de restauração da identidade pela arte e pela educação popular. Buscar uma sensibilização do nosso povo quanto ao seu entorno e condição, tentando de alguma forma tirar as escamas dos olhos das nossas comunidades, como um sonho que tem aos pouquinhos se tornado possível pela arte e pela educação popular.

Esperamos muito que mais pra frente possamos olhar pra trás, pra toda essa história e possamos ver que o fruto dessa luta foi um território vivo, que valoriza a pluralidade, com um povo que entendeu a necessidade de restaurar sua identidade e sua terra.

Notas:

1. Disponível em: https://open.spotify.com/intl-pt/album/2fFN2uMrW1z4FErdXWWaFq?autoplay=true

2. Tarairiú é uma das quatro nações indígenas que passaram por um processo de apagamento histórico no estado do Rio Grande do Norte. A partir da primeira década do século XXI, passa a acontecer um movimento mais massivo pelo reconhecimento da identidade tarairiú no estado.

 

 

 

Newsletter

Mais recentes

plugins premium WordPress

Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

Assine Nossa Newsletter

Material de aprendizagem, reflexões, iniciativas, resistências. Um conteúdo exclusivo e analítico sobre o cenário, os desafios e as ferramentas para seguir na luta.

E mais: Vem de Zap! Recebe em primeira mão ferramentas, editais, notícias e materiais ativistas! 

Pular para o conteúdo