Em um país em que as atletas precisam enfrentar violências de gênero e de raça e pouco incentivo ao esporte, ver o protagonismo feminino e negro nas Olimpíadas tem um grande significado

Por Letícia Queiroz- 12/08/2024

“Mulherada, pretas e pretos do mundo todo, acreditem!” A frase de encorajamento foi dita por Beatriz Souza após ganhar medalha de ouro em uma final contra Israel nas Olimpíadas em Paris. A melhor do mundo em sua categoria é uma mulher negra que fez questão de incentivar outras e outros atletas.

O protagonismo da delegação brasileira foi feminino. Das 20 medalhas conquistadas durante as Olimpíadas, 12 são de mulheres. Neste ano o Brasil presenciou apenas mulheres como medalhistas de ouro. E mulheres negras: Bia Souza, Rebeca Andrade e a dupla Ana Paula Ramos e Duda Lisboa – do vôlei de praia.  

A judoca Bia Souza se tornou a primeira brasileira a conquistar medalha de ouro logo na estreia em uma Olimpíada. Mas o caminho para ela não foi fácil. Militante do esporte, em 2018, quando o Brasil era governado por Michel Temer, ela se manifestou contra a Medida Provisória que previa que parte do valor destinado pelas loterias ao Ministério do Esporte fosse transferido para o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).

A MP colocava em risco não só projetos de desenvolvimento do esporte nacional, mas também diversas carreiras. Depois de manifestações, o então presidente voltou atrás e devolveu a verba para a pasta do esporte.

Bia sabe que tem força. E não é só física. Ela tem consciência que estimula meninas e mulheres negras a alcançarem excelentes resultados e transformarem suas vidas através do esporte. Nas entrevistas à imprensa após a vitória, a judoca motivou outros atletas, focando em mulheres e pessoas negras. “Às vezes a gente acha que pode estar pagando muito caro, mas vale cada centavo quando a gente conquista o que a gente quer”, disse emocionada.

Rebeca Andrade, jovem negra de 25 anos, já teve uma atleta negra como inspiração e agora inspira outras meninas e mulheres. De família humilde da periferia de Guarulhos (SP), ainda criança Rebeca ingressou em um projeto social de incentivo ao esporte e se encantou pela ginástica artística. Antes de começar a conquistar medalhas, tinha como referência Daiane dos Santos, mulher negra que neste ano se emocionou com a vitória de Rebeca.

Em Paris, Rebeca se tornou a maior medalhista brasileira dos Jogos Olímpicos. Só nesta Olimpíada ela subiu ao pódio quatro vezes. Ao receber sua medalha de ouro na disputa do solo, ficou ao lado das estadunidenses Simone Biles e Jordan Chiles. As três formaram um pódio negro e as americanas fizeram um gesto de reverência à brasileira. A cena rendeu uma foto que viralizou no mundo.

A rivalidade entre as adversárias deu lugar ao afeto e ao cuidado de mulheres negras. A felicidade, a sororidade e o carinho entre as medalhistas era visível. E atravessou fronteiras, como visto nas mensagens que a atriz estadunidense Viola Davis deixou para Rebeca.

A ícônica foto de Rebeca Andrade e Simone Biles (esq.) e Jordan Chiles (dir.) l Foto: Reprodução

Daiane dos Santos, que inspirou Rebeca e a viu crescer – literalmente – no esporte, se emocionou ao comentar a vitória da sucessora. “A Rebeca falou sobre representar a todos. Sim, ela representa a todos, mas é a representatividade de 56% de uma nação que é excluída, que é subjugada”, disse. 

Ana Paula Ramos e Duda Lisboa, do vôlei feminino, também são as melhores do mundo e trouxeram o ouro para o Brasil. Mulher lésbica e negra de 26 anos, Ana Paula contou que enquanto treinava nos últimos anos ouviu muitos comentários ofensivos. “Recebi tanta mensagem de ódio, de pessoas que queriam que eu desistisse, mas tenho que agradecer a muitas pessoas, a Deus e a mim mesma. Mereci isso com a Duda. Muita gente fala muita coisa. Que falem agora também, porque nós demos o sangue para sermos campeãs olímpicas”. 

As atletas que se destacaram reconhecem que são referências negras no esporte. Mas elas também sabem que fazem parte da população mais vulnerável.

Enquanto mulheres negras conquistam medalhas, sobem aos pódios, emocionam uma nação, quebram recordes nas Olimpíadas e motivam crianças e jovens negros, o Brasil continua sendo um lugar perigoso para mulheres, principalmente para mulheres negras que são vítimas da dupla violência.  

A Lei Maria da Penha, que acaba de completar 18 anos, é considerada um marco na defesa dos direitos das mulheres. A lei estabelece ações para proteger as vítimas, como a concessão de medidas protetivas de urgência, a criação de juizados especiais de violência doméstica e a garantia de assistência às mulheres. Mas medidas como estas não têm sido suficientes e a violência de gênero segue crescendo no país. De acordo com o 18° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher foi estuprada a cada seis minutos em 2023 e os feminicídios bateram recordes. A pesquisa também mostra que os casos de racismo registrados saltaram de 5.100 em 2022, para 11.610, em 2023, o que representa um aumento de 77,9% das ocorrências. 

Em um país em que violências de gênero e de raça são constantes, ver o protagonismo de mulheres negras nas Olimpíadas tem um grande significado. Não é exagero falar e repetir que, no Brasil, as mulheres negras são, sim, o destaque em diferentes esportes. 

É importante lembrar que o país ainda se recupera de um governo de extrema direita que implantou o bolsonarismo e tinha como principal alvo as mulheres e as pessoas negras. Em vários discursos, Jair Bolsonaro fez comentários racistas e misóginos. Pelo menos duas vezes ele disse que pessoas negras são pesadas em arrobas. Em uma das vezes se referiu a um quilombola. Ele também disse que no black power de um apoiador havia baratas e piolhos. Mesmo sendo criticado e até denunciado, nunca se retratou sobre nenhum de seus discursos racistas. 

 Diversas vezes Bolsonaro atacou os direitos das mulheres e fez falas misóginas e sexistas. Em uma das falas ele disse que teve quatro filhos do sexo masculino e no quinto “deu uma fraquejada e veio uma mulher”. 

O governo anterior também desencorajou atletas. Durante seu mandato, Jair Bolsonaro destruiu o Ministério do Esporte, enfraqueceu as políticas públicas esportivas no Brasil e desestimulou todo um projeto olímpico brasileiro.

Durante a pandemia, o presidente vetou o Projeto de Lei 2824/2020. O texto previa um auxílio emergencial para atletas. Na época, em pleno estado de calamidade pública e com redução das atividades econômicas e paralisação de competições esportivas, atletas brasileiros tiveram que abandonar treinos e procurar outro trabalho para sobreviver.

É verdade que muita coisa mudou desde a primeira Olimpíada, mas avanços ainda são necessários. 

Quando fazemos questão de destacar que mulheres negras são as protagonistas, não estamos considerando apenas o pódio, mas toda uma trajetória que não começou há quatro anos – na preparação para as Olimpíadas de Paris – mas em gerações anteriores. Reverenciamos não só quem subiu no pódio, mas as referências profissionais e toda a base familiar negra e a ancestralidade. 

A vitória dessas atletas é também a vitória de todas as competidoras negras. E de toda a população que enfrenta desigualdades em suas carreiras. Vibrar com uma atleta negra é também reconhecer o esforço das que vieram antes de nós abrindo os caminhos. 

E para quem acha bobagem falar que os ouros são de mulheres negras, saiba que este resultado é apenas o começo. O Brasil e todo o mundo ainda vai ver, por muitas vezes, mulheres negras brasileiras no lugar mais alto do pódio. 

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