Por Guilherme Soares Dias, do Guia Negro – 11/01/2024
Fundador do Guia Negro, Guilherme Soares Dias escreve sobre “afronta, afeto e futuro nas viagens” e o “caminho de volta e o passo à frente para um povo inteiro se reconectar e conhecer a si mesmo”.
Crédito: Guia Negro/Reprodução
Quero começar esse texto dizendo que a palavra “não” desse título é definidora para os “sim’s” que a população negra foi construindo como resistência nos últimos 500 anos no Brasil. Tivemos negada a cultura, a língua, a religiosidade, o nosso conhecimento e a partir disso usamos várias estratégias, tecnologias e sistemas para preservar e repactuar tudo o que veio de África junto com nossos antepassados.
O Guia Negro também nasce dos “não’s” transformados em “sim’s”. Quando eu, Guilherme, após um período sabático de um ano (2016) viajando por vários lugares do mundo vou buscar trabalho em San Pedro de Atacama, no Chile, e só ouvi “não” como resposta. Percebi que ali os negros estavam sempre em papel de subalternidade e que o racismo, ainda maior que o brasileiro, não ia me permitir ser contratado.
Inventei, então, um trabalho para mim: roteirizei meu próprio tour dando dicas de lugares e histórias que não eram conhecidas pelo turismo tradicional e comecei a escrever em blogs sobre dicas da região. Empreendi – a partir de uma dor – e vi meu trabalho ser visto como “encantamento de lugares”.
Foi gostoso ver o efeito das histórias que estava contando na reação das pessoas durante os walking tours e fui me especializando em descobrir novas histórias. Mas não ganhei dinheiro como minhas colegas que eram vendedoras em agências de turismo, o que fez com que após seis meses na pequena cidade do Deserto de Atacama, eu quisesse seguir novos rumos (o clima adverso também ajudou).
Voltei a São Paulo com a ideia de continuar trabalhando com conteúdo e tours afroreferenciados. Ouvi muitos “não’s” de editores de grandes veículos sobre as pautas que queria oferecer sobre protagonismo negro. O Guia Negro nasce com a proposta de compartilhar essas dicas de viagens com diversidade e histórias com protagonismo negro para inspirar novos roteiros.
“Nossos passos vêm de longe e a nossa caminhada é longa. Ainda não sei qual é o destino, mas sei que o trajeto tem sido de conexões, trocas, lutas, partilhas e também de muita beleza.”, diz Soares. l Crédito: Arquivo Pessoal
Quando fui provocado a escrever esse texto, pensei o que de novo eu tenho a dizer para além dos materiais já produzidos? Não sei muito a resposta. Mas sei que tem várias contribuições que fizemos (a equipe do Guia Negro e eu) ao longo dos últimos cinco anos e meio e que nem todas chegaram a um número grande de pessoas.
Uma delas é o Manifesto do Guia Negro, redigido em 2021 que lembra que: “Turismo é escolha, é comércio, é consumo, é cultura, é dinheiro que circula, é conhecimento, pode e deve ser diverso também. Há um propósito de fazer com que os negros viajem mais e entendam que ter possibilidade de lazer é para nós também. Por mais pretos viajando, por mais afroturismo, por mais valorização da cultura negra e muitas estradas a serem percorridas por todos nós!”.
De lá para cá foram mais de 600 textos, cerca de 60 entrevistas no Youtube, 5 programas de viagem (fora os não editados), 34 episódios de podcasts, 20 colunas na Folha de S. Paulo, dezenas de entrevistas sobre o tema. Mais do que números o Guia Negro tem provocado uma mudança em como as viagens são pensadas. Parte desse conhecimento tornou-se o livro “Afroturismo, afeto, afronta e futuro”, lançado por mim em dezembro de 2023.
Quando fui provocado a escrever esse texto, pensei o que de novo eu tenho a dizer para além dos materiais já produzidos? Não sei muito a resposta. Mas sei que tem várias contribuições que fizemos (a equipe do Guia Negro e eu) ao longo dos últimos cinco anos e meio e que nem todas chegaram a um número grande de pessoas.
Uma delas é o Manifesto do Guia Negro, redigido em 2021 que lembra que: “Turismo é escolha, é comércio, é consumo, é cultura, é dinheiro que circula, é conhecimento, pode e deve ser diverso também. Há um propósito de fazer com que os negros viajem mais e entendam que ter possibilidade de lazer é para nós também. Por mais pretos viajando, por mais afroturismo, por mais valorização da cultura negra e muitas estradas a serem percorridas por todos nós!”.
Ou o Manifesto do Afroturismo, que o classifica como afeto, afronta e futuro das viagens que diz:
“Um grupo de pessoas negras viajando é revolucionário e, ainda, causa espanto e surpresa, chega a ser até afrontoso numa sociedade em que o racismo estrutural determina que pretos devem ser duas vezes melhores do que brancos para se sobressair e sobreviver (…) Fazer turismo focado em conexão com histórias, cultura e pessoas negras é praticar o afeto. É encontrar pessoas como nós no caminho, é abraço, é conhecer quem produz a comida, as roupas. São trocas singulares que vão pra além da compra e do consumo.
Foto: Guia Negro/Reprodução
São viagens que nunca terminam pelas conexões e histórias que geram. Mais do que lugares provocam a possibilidade de desvendar nós mesmos, resgatar histórias, promover ligações que nem sabíamos que existiam, mas que nos constituem e nos reorganiza.
A diversidade nas viagens é o futuro, o afrofuturismo, que volta para o passado para projetar o futuro, como o símbolo do pássaro sankofa.
Afroturismo é afronta, afeto e futuro nas viagens. O caminho de volta e o passo à frente para um povo inteiro se reconectar e conhecer a si mesmo. É a potência da negritude em movimento.
Também trouxemos relatos de viajantes negros em que eles puderam se ver em um setor que até então era dominado por brancos e que foi pivô de muitos episódios de racismo. Um deles motivou a criação da primeira lei de combate ao racismo no Brasil, a Afonso Arinos.
Em 3 de julho de 1951, o presidente Getúlio Vargas sancionou a lei 1.390/51, do deputado Afonso Arinos, que em nove artigos definia como contravenção penal a discriminação racial em comércios, hotéis e órgãos públicos. O projeto foi motivado por um caso de racismo contra a bailarina negra norte-americana Katherine Dunham, que ao visitar o Brasil foi impedida de se hospedar em um hotel de luxo em São Paulo por conta da sua cor de pele.
A primeira pessoa a utilizar a lei foi a jornalista Glória Maria que foi impedida pelo gerente de um hotel de entrar pela porta da frente do estabelecimento no ano de 1970. “Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção. Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas ele se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”, escreveu ela, no Instagram em 2019.
Mostramos que os casos de racismo no turismo ainda são frequentes e que o setor vinha se furtando em fazer o debate, formação e ações para combatê-lo. Além de denunciar as situações de racismo, passamos a pautar os eventos do setor e também a sermos propositivos dando dicas e elaborando guias negros dos destinos para ajudar viajantes a terem opções mais diversas, além de transformadoras em suas viagens.
Nossos passos vêm de longe e a nossa caminhada é longa. Ainda não sei qual é o destino, mas sei que o trajeto tem sido de conexões, trocas, lutas, partilhas e também de muita beleza. Espero que todas as pessoas possam conhecer mais da história e cultura negra e que tenhamos mais negros e negras viajando e aproveitando a vida. Viva o afroturismo!