Por Sigifredo Romero Tovar
Como se deram as “rupturas de tempos históricos” em nosso continente e que reflexos elas guardam até hoje com nossa realidade? O filósofo colombiano Sigifredo Romero Tovar coloca nossas histórias em perspectiva
“As independências são coisa dos entusiastas do estado liberal moderno. Já as classes populares, vivem sua história como uma série de confrontos contra essa mesma entidade” l Foto: Calendário Insurrecional 2022
,Duzentos anos
A humanidade fraciona o tempo histórico, ou seja, seu próprio tempo, o tempo da sua experiência no mundo, o quebra. Antes e depois de Jesus, antes e depois da conquista, antes e depois da independência ou da criação do país. É assim que sabemos em que esquina da história estamos vivendo. As efemérides, nesse sentido, são pontos de conexão com o passado. E por isso, com o futuro.
Se a morte ou nascimento de um famoso filósofo ou personagem histórico completa 100, 200 ou 500 anos, os seus seguidores acadêmicos, pesquisadores, exegetas, professores, estudiosos independentes fazem alvoroço, se reúnem, e se renova o interesse naquela pessoa. Se fazem também reelaborações e o personagem passa por novos escrutínios e leituras. Às vezes se afirma poeticamente que ele ainda está vivo.
Na América Latina que o Brasil habita – sem saber, porque o Brasil não se olha no mapa – por estas épocas comemoramos timidamente 200 anos da independência da metrópole europeia. Os primeiros a comemorar são os haitianos que completaram a sua revolução em 1804, vários anos antes que os outros.
Nos outros países, o processo revolucionário só ia começar depois da invasão napoleônica da península ibérica em 1807 e 1808. Enquanto a monarquia portuguesa conseguiu fugir para o Brasil, os reis espanhóis caíram nas mãos de Napoleão. Esse acontecimento sobre o qual nenhum habitante das colônias ibero-americanas tinha o menor poder, propiciou as condições históricas para as independências.
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A queda da monarquia fez brotar movimentos autonômicos e independentistas nas colônias hispânicas que vinham sendo incubados por 50 anos de mudanças socioeconômicas e culturais importantes. Na geral, foram as elites crioulas brancas que impulsionaram os movimentos nos diversos territórios e cidades: comerciantes, funcionários, militares, sacerdotes, pequenos proto-despotas ilustrados. Os movimentos foram particularmente fortes nas periferias do poder hispânico, como na Venezuela e em Rio de la Plata.
Entre meados da década de 1810 e meados da de 1820, a maioria das colônias hispânicas se libertaram da Espanha por meio das armas. A batalha de Ayacucho, que aconteceu no dia 9 de dezembro de 1824 foi o último grande embate militar que por fim quebrou o poder espanhol no seu grande bastião político e econômico da América do Sul, o Peru. Outras batalhas decisivas na América do Sul foram Tucumán (1812), Salta (1813), Chacabuco (1817), Maipú (1818), Boyacá (1819), Carabobo (1821), Pichincha (1822) e Junín (1824).
É isso que se comemora em primeiro lugar, umas batalhas, uns gritos libertários, umas cartas constitucionais que entregaram a América Latina para as elites locais. Nessas vitórias de curto prazo, as elites latino-americanas foram bem-sucedidas. E, com isso, conseguiram quebrar o tempo histórico criando uma nova era.
O conteúdo dessa nova era viria a ser, a médio prazo, o principal problema político das novas elites nacionais em formação. Os projetos nacionais foram sociedades organizadas pelo estado liberal e orientadas à exploração das riquezas naturais e humanas com o máximo de estabilidade política possível. Se hoje em dia temos muito mais do que isso é por causa da luta bicentenária dos camponeses, indígenas, negros e trabalhadores.
Nas narrativas pátrias, a nova ordem política surgida junto com a independência continua até hoje. Mesmo com golpes de estado, guerras civis, revoluções e ditaduras, reconhecemos nos estados modernos a continuidade dos regimes que começaram a nascer por volta de 1810.
Só a destruição do estado, uma revolução comunista ou anarquista, uma divisão do país, a conformação de uma monarquia ou uma intervenção estrangeira – e outras possibilidades que não imaginamos – poderia quebrar o tempo histórico e finalizar a era política que começou há duzentos anos na América latina.
São dois séculos de repúblicas independentes mais o menos liberais controladas por homens brancos e ricos divididos em federalistas e centralistas, conservadores e liberais, a Igreja católica, caudillos, coronéis e ditadores, onipotentes corporações transnacionais, Londres, Washington e mais recentemente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Será por isso que o povo não celebra com muita alegria e orgulho o bicentenário? Os indígenas, sem dúvida, se lamentam.
Depois das independências as elites brancas, culturalmente mais próximas da Europa do que da população escrava e indígena deram forma aos estados latino-americanos e sua incorporação ao mercado mundial em um processo que levou décadas. Uma parte fundamental desse processo foi o genocídio indígena e a ocupação das suas terras. Em certo sentido, para eles o século XIX foi um novo século XVI.
Heróis
E pensar que houve gente que supostamente criou um país. A Simón Bolívar lhe são atribuídos cinco. A José de San Martín, três. Homens que um dia foram de carne e osso são reverenciados na religiosidade cívica dos nossos estados liberais como libertadores de países inteiros.
Naquela época houve próceres de todo tipo: os que deram o primeiro berro, os que se decidiram a publicar aquele texto, os primeiros a desobedecer, os que convocaram aquela primeira reunião, os que educaram outros como Simón Rodríguez, o mestre de Bolívar. Eles fizeram coisas que não tinham sido feitas antes, coisas que até esse momento eram inconcebíveis. Mas é aí que tá: talvez até o cara que há alguns dias atirou sem sucesso na cabeça de Cristina Fernández de Kirchner, também se achasse um herói.
Interessantemente, para a tristeza de muitos historiadores e aficionados pela história, os heróis independentistas da religiosidade cívica do estado liberal não excitam tanto a emotividade popular como outros heróis políticos mais recentes.
Parece engraçado que diga isto pois no meu próprio país, há apenas um mês, a primeira ordem do novo presidente Gustavo Petro foi trazer a espada de Bolívar para fazer seu juramento presidencial perante ela. Por outro lado, na Venezuela a obsessão de Chávez por Bolívar fez todo seu extenso governo se parecer a uma representação – ao vivo 24 horas por dia na TV nacional – de Hamlet, com Bolívar como o fantasma do pai.
Mas a verdade é que no geral, apesar das estátuas, dos livros e dos discursos, as pessoas não têm muita ideia do que Sucre, O’Higgins ou Iturbide fizeram para se tornarem quem são. Não são eles que aceleram o coração do povo latino-americano. Isso quem faz são os heróis populares, como Getúlio, Lula, Chávez, Perón, alguns deles bem fascistas, é verdade, mas que conseguiram negociar com grandes faixas da população melhorias importantes nas condições de vida dos trabalhadores e ganharam em troca uma devoção quase religiosa ao líder amado. Claro que o Bolsonaro aqui não entra porque uma coisa é populismo e outra é doença social de caráter cognitivo e moral.
Afortunadamente os intocáveis populistas não são as únicas fontes de emoção política que agitam a América Latina. A promessa centenária da revolução mexicana, o fogo de luta espalhado pelo continente após a entrada de Fidel Castro em La Habana, a vitória da imaginação humana que o neozapatismo constitui, continuam ainda hoje frutificando em incontáveis lutas no continente inteiro.
Em comparação, nas independências hispano-americanas, e na brasileira mais ainda, se destaca um marcado caráter hierárquico. As celebrações sociais dessas datas são acontecimentos friamente institucionalizados que muitas vezes incluem desfiles militares. Óbvio, já que são os militares e outras forças da criminalidade uniformizada os detentores do máximo poder possível.
As independências são coisa dos entusiastas do estado liberal moderno latino-americano. Para as classes populares em luta, sua história faz sentido praticamente como uma série de confrontos contra essa mesma entidade. Nesses embates essas massas se construíram e transformaram dando forma às diferentes características políticas dos movimentos latino-americanos.
A nossa história política republicana é a história da luta entre uma grande maioria que é roubada dos frutos do seu próprio trabalho, da natureza que habita e da riqueza cultural criada por séculos pela humanidade contra uma pequena minoria de famílias mais ricas que deus e mais poderosas do que qualquer outro ator político da nossa história.
Apesar das vitórias e derrotas, as classes, movimentos e grupos sociais explorados, agredidos e marginalizados continuam a sua luta enquanto têm vida. A luta nossa é de todos os dias porque ela é pela sobrevivência e pela diversidade na natureza e na humanidade.
A nossa maior derrota sempre foi a venda moral, a entrega de todas as outras formas de viver e ver a vida em troca de um bom salário, casa, carro, uma conta na Netflix e a admiração dos desempregados e dos trabalhadores subalternos. A nossa maior derrota foi – e segue sendo – a entrega moral de cada indivíduo a um regime econômico irracional, inumano e ecocida.
Tudo bem que as pessoas consumam recursos sem saber nem se perguntar de onde vem nem quem os produz, tudo bem que as pessoas acreditem na promessa interminável dos índices de pobreza e na palavraria vazia e ridícula dos líderes do estado liberal cuja imaginação apenas alcança para prometer “melhorar a capacidade de compra” de todos os brasileiros. Enquanto isso, tudo ao nosso redor arde ou desaparece.
Já quando um importante número da população de um país está o suficientemente degradado moral e cognitivamente para cair numa enorme seita que tem como propósito efetivar uma aniquilação de tudo o que é vida e diversidade na sociedade e na natureza, podemos afirmar que fracassamos como sociedade. Bolsonarismo é isso: uma lobotomia nacional.
Nunca o Brasil se cobriu de tanta vergonha. Cada dia em que Jair Bolsonaro é presidente do Brasil, tudo aquilo que merece ser amado nesse país é derrotado. Porque a cada dia em que ele é presidente, uma violenta minoria se sente autorizada a atemorizar, assediar e aniquilar todos os que preferimos a vida, a natureza e a humanidade.
Do possível e o impossível
Entre os anos 1819 e 1824, os exércitos patriotas liderados por Simón Bolívar libertaram do domínio espanhol a região setentrional da América do Sul. Para chegar ao momento das primeiras vitórias definitivas em Boyacá (atual Colômbia) em julho e agosto de 1819, Bolívar havia acumulado dez anos de avanços e retrocessos no movimento emancipador.
Muito do que tinha acontecido no movimento até então esteve longe da vontade do “herói”: a invasão napoleônica da península ibérica e a timidez das primeiras tentativas de autonomia nas colônias hispano-americanas. Nisso, ele foi um homem historicamente determinado.
Mas para quando os movimentos juntistas e autonomistas crioulos começaram a florescer entre 1808 e 1810, Bolívar já tinha renunciado ao colonialismo espanhol fazia tempo. Era um convencido independentista numa época em que a independência era ainda politicamente impossível, coisa demasiado radical, impensável e estranha. Quando forças históricas externas a ele criaram a crise de legitimidade que gerou as condições para a formação do movimento independentista continental, Bolívar já tinha rejeitado o mundo tal e como era e estava preparado para o impossível que estava por vir. Nisso, ele foi um sonhador sem remorsos.
Por outro lado, Bolívar conseguiu ocupar o lugar que ocupa na história porque era um homem branco, rico, fazendeiro, militar, crioulo descendente de espanhóis. Nisso, Bolívar foi um privilegiado da existência.
Só que Bolívar não é Bolívar porque Napoleão conquistou a península ibérica nem por seus privilégios nem pela sua capacidade para sonhar. Bolívar é Bolívar porque no meio de tudo isso atuou, aproveitou o momento, somou-se aos esforços de outros, fez uso das vantagens dos seus privilégios e terminou o que outros tinham iniciado. Isso é vontade de ação, o elemento sine qua non para participar da história da humanidade.
Em boa medida, quando celebramos a Bolívar, San Martín, Tupac Amaru, Tiradentes, Martí, Zapata, Sandino e muitos outros, estamos celebrando a vontade revolucionária e criadora, a capacidade do ser humano para rejeitar a ordem de coisas dada, a rebeldia do impossível: rejeitar o mundo tal e como ele funciona, se comprometer moralmente contra ele e se atrever a criar um mundo novo.
A grande maioria das pessoas estará sempre comprometida com a realidade exatamente como ela funciona, fidelidade ao estreito mundo do possível. E isso só faz a rebeldia contra a ordem de coisas ainda mais digna.
Manter um pé atrás perante a realidade é viver em harmonia com ela, já que nada nela é para sempre. Uma coisa que qualquer efeméride individual ou social nos lembra é que tudo está sujeito à mudança, inclusive a mais importante, a da morte dos fenômenos, o fim de todas as coisas. Tudo tem um fim. Hoje as sociedades latino-americanas comemoram o fim da dependência política direta da Espanha e de Portugal. No futuro os nossos descendentes estarão comemorando o fim desse nosso tempo histórico.
Os nossos estados liberais, mesmo as nossas nações, estão condenados a desaparecer um dia. Não existe nada para sempre nem na história da humanidade nem na história da natureza. E não existe ordem de coisas, racista, hierárquica, machista, autoritária, teocrática ou patriarcal que não seja imbatível.
Talvez daqui a 20 anos ou daqui a uns poucos meses as condições para o fim do estado amadurecerão. Muitas coisas que fazemos agora e levamos décadas fazendo cobrarão novos e profundos sentidos nesse momento.
A cada dia que passa, novas soberanias estão nascendo e a semente de mundos pós-nacionais e pós-capitalistas se espalha. Agora mesmo estarão nascendo as estruturas culturais e sociais que um dia substituirão o estado liberal. Ou estaremos preparados para criar uma democracia participativa e igualitária ou cairemos em mãos de soberanias neofeudais, corporativas e paramilitares.
As independências ibero-americanas foram possíveis porque a soberania colonial foi quebrada e as elites locais, as melhor posicionadas para aproveitar o momento histórico, se encontraram numa situação em que não tiveram mais saída do que começar a governar.
A passos acelerados a ordem política mundial se vê confrontada com o mais importante de todos os desafios: as consequências ecológicas do modelo econômico que abraça, do qual depende e que legitima. O estado liberal, com a sua democracia a conta-gotas com a sua filosofia econômica orientada à acumulação para uns poucos e o consumo como objetivo de vida para a maioria, dificilmente conseguirá sobreviver às mudanças ecológicas globais cada vez mais catastróficas. A criação de estruturas políticas democráticas, participativas e igualitárias é o problema político mais importante a médio prazo.
No curto prazo, ao menos no Brasil, o problema político é a derrota do fascismo. Digo do fascismo porque é muito provável que o fascista já esteja derrotado. Bolsonaro é pouca coisa e foi elevado ao poder por razões que seu pobre intelecto nem consegue enxergar. Se o bolsonarismo parece ainda um fenômeno em apogeu é só porque poderosos interesses econômicos, a institucionalidade política do estado e a mídia continuam acolhendo-o moralmente e naturalizando-o como elemento constitutivo da sociedade brasileira.
Em outubro o fascista será derrotado nas urnas e será impossível o Brasil voltar ao tempo anterior a Bolsonaro pela mesma razão de que nenhum estupro ou assassinato pode ser desfeito.
Claro que o Brasil vai estar muito melhor com Lula como presidente, mas não por isso as hordas abjetas e embrutecidas que ladram, agridem e destroem vão desaparecer. Elas serão parte da paisagem humana brasileira ainda por muitos anos. Em primeiro lugar porque a liderança do PT não parece muito interessada em superar as condições socioeconômicas e os desenvolvimentos culturais que durante muitos anos incubaram a monstruosidade. Eles ainda tratam Bolsonaro como um acidente.
O bolsonarismo, para toda pessoa que não está possuída por essa doença, deveria ser outra coisa. Além da vergonha e a indignação, tão justas como insuficientes, o bolsonarismo é uma oportunidade histórica para pensar criticamente coisas como o racismo, a misoginia, a homofobia, a bestialidade evangélica, o agronegócio, o parasitismo no estado, a cultura burguesa, o caráter intrinsicamente antissocial e anti-pensamento das forças armadas, o paramilitarismo e a segurança privada, o narcotráfico e a luta contra as drogas. Nada disso é um acidente.
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Há 200 anos, Bolívar, San Martín e muitos outros rejeitaram moralmente a ordem dada, agarraram o momento e afirmaram a sua vontade sobre o mundo, quebrando assim o tempo histórico.
A crise de legitimidade que serviu de estopim para as independências ibero-americanas foi a invasão napoleônica. A crise de legitimidade que acabe com o estado liberal latino-americano muito provavelmente chegue sob a forma de graus celsius da temperatura planetária. Cairá a atual ordem de coisas com um grau a mais? Com dois? Com quatro?
O que virá depois? O estado se transformará, se fracionará ou se eliminará para que a vida e a diversidade se imponham à máquina de guerra? Do jeito que estão as coisas no Brasil, se a ordem nacional-liberal desaparecesse hoje, se amanhã não tivéssemos de quem receber as ordens, o país viraria uma grande chacina.
É para evitar isso que os insubordinados de todos os dias espalham sementes, criam coisas que não foram criadas antes, agarram segundas oportunidades, fazem coisas de loucos. A luta nossa não é a cada duzentos nem a cada quatro anos. Nós lutamos pela liberdade e a sobrevivência todos os dias. Essa é vitória nossa de cada dia.
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*Sigifredo Romero Tovar é filósofo ecosocialista formado em Historia pela Universidad Nacional de Colombia e em Estudos da Religião pela Florida International University. Atualmente, seu interesse acadêmico é a superação do capitalismo para que a humanidade não derreta de calor. Contato: srome039@fiu.edu