Érica Sarmet* propõe uma retrospectiva dos movimentos LGBTQIA+ que supere estrangeirismos e invisibilizações e retrate de fato a busca coletiva da comunidade por “uma vida que valha a pena ser vivida”
IV Encontro Nacional de Travestis e Liberados, 1996: André, Jovanna Cardoso, Indianare Siqueira e Kátia Tapey l Foto: Reprodução
Se você fizer uma busca simples na internet por “história do movimento LGBT no Brasil”, encontrará nos primeiros resultados uma mesma linha do tempo, que tem início com a rebelião de Stonewall. Ocorrida nos Estados Unidos em 28 de junho de 1969, a revolta é considerada o marco inicial da luta pelos direitos civis da população LGBTQIA+ no mundo, sendo por isso a data escolhida para a celebração do Dia Internacional do Orgulho. E como ficam os LGBTs brasileiros que viveram antes e bem longe de Stonewall? Será que nada fizeram para melhorar suas condições de vida? Por que pensamos em Stonewall para falar da resistência LGBTQIA+ no Brasil, e não dos povos indígenas e suas variadas experiências de identidade de gênero e sexualidades pré-colonização? E os homens trans, quando eles entrarão na linha do tempo do orgulho? Por que suas iniciativas não figuram junto às lideradas por homens gays, lésbicas e travestis?
Em grande parte dos sites, reportagens e textos, essa linha do tempo salta do final dos anos 1960 em Nova Iorque para 1978 em São Paulo, na fundação do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual (1978 – 1983), um dos pioneiros na articulação do na época denominado Movimento Homossexual Brasileiro. A ele, somam-se as histórias das publicações Lampião da Esquina (1978-1981) — cuja história virou um documentário homônimo de Livia Perez — e ChanacomChana (1981-1987); e a invasão do Ferro’s Bar (1983) por ativistas do GALF – Grupo de Ação Lésbica Feminista (1981-1990), episódio popularmente conhecido como “Stonewall brasileiro”, a despeito dos distintos contextos históricos, sociais e políticos que separam os dois eventos.
Quando chegamos nos anos 1980, é comum que nessa linha do tempo se escolha relatar o esvaziamento do movimento diante da morte de vários militantes para a pandemia do HIV/AIDS, ao invés de destacar eventos marcantes como a realização do I Encontro Brasileiro de Homossexuais (1980), a fundação do Grupo Gay da Bahia (1980) e de diversos outros coletivos pelo Brasil. O movimento organizado de pessoas trans e travestis, quando mencionado – o que muitas vezes não acontece -, geralmente é descrito tendo como ponto de partida a fundação em 1992 da Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL) – sem dúvida um evento fundamental na história da militância trans brasileira. No entanto, será que antes de 1992 nenhuma pessoa trans havia atuado na defesa do direito a uma vida digna para a nossa população?
Descolonizar nossa história
Esse modo linear, progressivo e centralizado de compreender e relatar a história faz com que assumamos certas narrativas como principais ou únicas, e não é coincidência que essas sejam quase sempre protagonizadas por gays e lésbicas brancos, cisgêneros e de classe média. É bastante simbólico que a cronologia dos movimentos LGBTQIA+ no Brasil tenha como modelo os Estados Unidos, reflexo da extensão do colonialismo nos nossos modos de ver, saber e relatar o mundo. Nossa luta não começou em Stonewall, ela vem de muito, muito antes, formada na resistência dos corpos de figuras como Xica Manicongo, Tibira do Maranhão e Felipa de Sousa.
Xica Manicongo foi a primeira pessoa documentada como travesti na história do Brasil, devido a uma denúncia feita contra ela no Tribunal do Santo Ofício em 1591. Angolana, foi trazida ao Brasil como escravizada e viveu em Salvador, onde trabalhou como sapateira. Após a denúncia, Xica precisou abrir mão de suas roupas femininas e seu nome para escapar da pena de morte.
Em 1614, de acordo com o sociólogo e antropólogo Luiz Mott, um índio tupinambá foi executado por um tiro de canhão, com a anuência da Igreja Católica, em razão de sua orientação sexual, na época entendida como prática sodomita. Mott o nomeou de ‘Tibira do Maranhão’ por tibira ser o termo utilizado por indígenas do grupo linguístico tupi-guarani para se referir aos sujeitos de práticas homossexuais.
Já Felipa de Souza foi uma portuguesa condenada por “práticas nefandas” e “pecado nefando da sodomia entre mulheres” pelo Tribunal do Santo Ofício em 1591. No livro “O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição” (1988), Mott relata que 29 mulheres foram acusadas de “lesbianismo” na Capitania da Bahia, das quais sete foram julgadas e condenadas, entre elas Felipa de Sousa, que teve a punição mais severa. Presa nos calabouços da Casa da Inquisição, ela foi retirada de lá em 26 de janeiro de 1592, quando foi obrigada a fazer um cortejo de humilhação até a Igreja da Sé, onde foi condenada, atada ao pelourinho e açoitada.
Essas nossas ancestralidades LGBTQIA+ se fazem presentes e vivas na formação de coletivos e organizações políticas, a exemplo do coletivo indígena Tibira. Composto por jovens indígenas LGBTQIA+ das etnias Tuxá, Boe Bororo, Guajajara, Tupinikim e Terena dos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Espírito Santo, Bahia, Pará, São Paulo e Maranhão, o coletivo busca visibilizar narrativas de indígenas gays, lésbicas, bissexuais, trans e travestis.
Integrantes do Coletivo Tibira l Foto: Reprodução Instagram.
Desinvisibilizar
Apesar de avanços no que tange os direitos civis e de uma relativa ampliação da representação política e midiática, ainda estamos muito aquém do necessário para contemplar a pluraridade de vivências LGBTQIA+ de um território vasto e tão culturalmente complexo como o Brasil. Certas identidades seguem invisíveis, desconhecidas para a maior parte da população e muitas vezes até para si mesmas.
No clássico artigo Heterossexualidade compulsória e existência lésbica (2010/1982), a poeta e teórica Adrienne Rich afirma que, diferente das existências judaica ou católica, as lésbicas tem vivido sem acesso a qualquer conhecimento de tradição, continuidade e esteio social. Isso se deve à destruição de seus registros, cartas, documentos, imagens, estratégia de apagamento de um projeto político muito bem sucedido de manutenção da heterossexualidade compulsória sobre as mulheres.
O mesmo se deu com outras existências LGBTQIA+ indígenas, negras, trans, intersexo, não-binárias… A ausência dessas figuras na linha do tempo oficial do “movimento LGBT brasileiro” produz uma ficção colonial segundo a qual apenas homens e mulheres cisgêneros brancos teriam contribuído para o avanço dos nossos direitos civis no país. Sabemos que isso não é verdade, mas o saber é pouco: precisamos cada vez mais conhecer e nomear os sujeitos que se mobilizaram no passado e seguem se mobilizando no presente em defesa de um futuro mais justo, digno e prazeroso de viver.
Quando falamos da luta travesti, por exemplo, é comum reportagens e blogs citarem como marco inicial a fundação da ASTRAL – Associação de Travestis e Liberados, em 15 de maio de 1992, sem contudo mencionarem suas fundadoras – na maioria negras e nordestinas: Jovanna Cardoso, Josy Silva, Elza Lobão, Beatriz Senegal, Raquel Barbosa, Monique do Bavieur e Claudia Pierry France.
Outro marco é a eleição de Kátia Tapety, travesti, negra, eleita vereadora em 1992 por Colônia do Piauí, município 388 km ao sul de Teresina, capital do estado. A história de Tapety, inclusive, se transformou no documentário KÁTIA (2013), por Karla Holanda. Um ano depois, acontece o Encontro Nacional de Travestis e Liberados que Atuam na Prevenção da Aids – ENTLAIDS, que levou à formação da Rede Nacional de Travestis e Liberados – RENTRAL, posteriormente renomeada de ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, como é conhecida até hoje.
Organizações e referências LGBTQIA+:
Se o movimento social organizado das travestis tem início nos anos 1990, isso não significa que antes não houve uma série de tentativas de construí-lo, as quais devemos conhecer. Afinal, o fracasso também faz parte da nossa história.
Resistência na ditadura
De acordo com o pesquisador de memórias LGBTQIA+ Luiz Morando, em setembro de 1966 em Niterói, no Rio de Janeiro, houve a tentativa de realizar o I Congresso Nacional do Terceiro Sexo, impedido pela polícia. Em março de 1968, uma nova tentativa seria feita na cidade serrana de Petrópolis, também frustrada pela polícia; em maio daquele ano seria a vez de João Pessoa, na Paraíba, onde ativistas tentaram realizar o “Congresso de enxutos”, voltado para travestis e homossexuais. Na época, o ‘Diário de Pernambuco’ noticiou a eminência da realização do evento e suas principais pautas: reconhecimento do 3° sexo, permissão para casamento e divórcio entre homossexuais e reivindicação de melhor tratamento por parte da sociedade.
Ainda nos anos 1960, mais precisamente em 1962, foi fundada a primeira instituição LGBTQIA+ brasileira, a Turma OK, no Rio de Janeiro. Ativa até hoje, a história do mais antigo clube social gay da América Latina pode ser apreciada no curta-metragem “O Clube” (2014), de Allan Ribeiro.
Nos anos 1970, apesar da repressão da ditadura militar, houve tentativas de articulação de grupos e encontros anteriores ao Somos, como o I Congresso de Homossexuais do Nordeste, preparado pelo padre da Igreja Ortodoxa Henrique Monteiro em abril de 1972 em Caruaru, Pernambuco, igualmente barrado pela polícia. É também nos anos 70 que o psicólogo, escritor e ativista João W. Nery torna-se conhecido por ser o primeiro homem trans brasileiro a fazer uma cirurgia de redesignação sexual no país, em 1977.
Poucos anos depois, em 1982, Anderson Bigode Herzer seria o primeiro autor trans publicado no Brasil, com seu livro de poesias “A Queda para o Alto”. Assolado por uma existência de muita dor e sofrimento, Herzer se suicidaria naquele mesmo ano, mas seu legado permanece vivo e pulsante no CATS – Coletivo de Artistas Transmasculines. Fundado em 2020 pelos artistas homens trans Léo Moreira Sá e Daniel Veiga, o CATS tem o objetivo de gerar mais oportunidades de trabalho para artistas transmasculines, a fim de reverter o cenário de invisibilidade que esse grupo se encontra nas mídias e nas artes no geral. Quando o CATS é criado, já existem algumas instituições dedicadas às demandas e necessidades de homens trans e pessoas transmasculinas como o IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, fundado em 2013, e a ABHT – Associação Brasileira de Homens Trans, fundada em junho de 2012 em São Paulo.
No Rio de Janeiro, em 2001, foi fundada uma organização dedicada aos direitos das lésbicas, em especial das lésbicas negras, chamada Grupo de Mulheres Felipa de Sousa. Em entrevista à BBC News Brasil, a diretora da organização, Rosangela Castro, conta que a entidade recebeu o nome justamente pelo fato de Felipa de Sousa ter sido o primeiro caso de lesbofobia que se tem notícia no Brasil.
Coletivos como CATS, Tibira e Felipa de Sousa são só algumas das centenas de iniciativas voltadas para a defesa dos direitos LGBTQIA+ surgidas no Brasil nos últimos anos. De 2018 para cá também foram criadas a Associação Brasileira Intersexo (ABRAI) e a Frente Bissexual Brasileira, para ficar em dois exemplos de identidades marginalizadas dentro da própria comunidade, o que só reforça a fragilidade da ideia ilusória e importada de um movimento LGBTQIA+ uno e coeso. Diante de um cenário econômico, político e social devastador promovido por um governo fascista, declaradamente racista e lgbtfóbico, devemos exaltar as construções coletivas, bases fundamentais das histórias de nossos movimentos, inclusive das que estamos criando agora. É através da coletividade que nos fortalecemos, que honramos os que vieram antes de nós e nos mantemos firmes no propósito de viver uma vida que valha a pena ser vivida.
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Érica Sarmet* é diretore, roteirista e pesquisadore nascide em Niterói. Com sua produtora, Excesso Filmes, dirigiu e escreveu três curtas: “Latifúndio” (2017),“Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui” (2021) e “Vollúpya” (em produção). Doutorande em Meios e Processos Audiovisuais na USP, é bacharel em Estudos de Mídia e mestre em Comunicação pela UFF. Autore de diversos capítulos de livros e artigos relacionados aos campos dos estudos de gêneros e sexualidades, como “Explosão Feminista” (2018), de Heloísa Buarque de Hollanda, vencedor do Prêmio Cesgranrio de Literatura; e “Feminino Plural: Mulheres do Cinema Brasileiro” (2017), finalista do Prêmio Jabuti, Sarmet também é co-fundadore do Quase Catálogo, cineclube dedicado a filmes dirigidos por mulheres e pessoas trans, da festa Velcro e do coletivo Isoporzinho das Sapatão.