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Tio Antônio do Vão Grande

O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Leia e escute as palavras de Tio Antônio do Território Quilombola do Vão Grande

Agricultor

O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: transformaação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

[*] O Território Quilombola Vão Grande está localizado a 74 km do Município de Barra do Bugres e aproximadamente a 240 km de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. As serras das Araras protegem as comunidades de Morro Redondo, São José do Baixio, Camarinha, Vaca Morta e Retiro. O local, de fauna e flora exuberantes, é cortado pelo rio Jauquara, seus cânions e cachoeiras. É ali que escutamos Tio Antônio.

TIO ANTÔNIO 

Depois nós vamos ali falar com a minha irmã mais velha. Eu sou o filho caçula. Ela que me criou. Era eu mamando num peito e o filho dela no outro, ao mesmo tempo assim, os dois batendo as cabecinha. Eu chamo ela de mãezinha Hortênsia. Tenho muita dó de ver ela assim tão velhinha. O filho dela trabalha de mestre nessas energias aqui [pequenas centrais hidrelétricas]. Ele foi embora daqui, sentou praça em Cáceres, mais de dois anos. Saiu de lá, foi pra Tangará da Serra trabalhar na rede de energia. Hoje ele é chefe… e foi chamando os meninos mais novos, tenho um monte de sobrinho nascido aqui que foi trabalhar em Tangará na rede elétrica. A turma foi estudando e quis arrumar emprego porque querem trabalhar, e acabam casando… toda essa rapaziada que trabalha. Qualquer problema que dá aqui nessas energias, é mais eles que vem arrumar aqui.

QUE ENERGIA É ESSA 

Essa energia chegou aqui naquele ano que a Dilma [Roussef] se candidatou. Mas antes disso, esse fazendeiro aqui (que outro dia vendeu a fazenda), o Arlindo, já tinha energia. Prá cá não tinha. Porque eles tinham dinheiro. Pra nós não tinha energia. Os fazendeiros conseguiam esticar as redes para as fazendas deles. A Dilma, do PT, lançou esse projeto Luz para Todos que trouxe a luz até aqui. E foi direto na escola [2], depois foi chegando nas casas da comunidade toda. Tem lugar no meio desse mato que a rede ainda é precária. E quando chegou a luz nós não tinha muito aparelho pra cá. E com o tempo o pessoal foi comprando. Hoje muita gente tem geladeira onde dá pra guardar o peixe que pescamos. Mas na quadra de dia primeiro de ano, quadra de natal, o pessoal sofre muito porque a energia vai embora. Todo ano passamos sem energia. A rede está fraca. E no tempo de chuva, as vezes cai pau de árvore e derruba a rede. Na escola, por exemplo, o ar condicionado não foi instalado porque a rede não aguenta. Falta a trifase. A empresa que começou a obra da escola faliu, e demorou para que outra empresa terminasse. A escola ficou parada um tempo, mas ficou pronta. Já o posto de saúde está lá, quase acabado o prédio mas não tem equipamento. Estamos esperando os equipamentos para começar a funcionar.

[2] Escola Quilombola José Mariano Bento, no Território Quilombola Vão Grande.

A CASA 

Ãhâ! Você vê que minha casa é meio preparada para a festa. Aqui o pessoal reúne para rezar, para festar, para encontrar e assuntar. Eu cresci vendo meu pai fazendo a festa pra São José porque ele adoeceu muito e minha avó prometeu para o santo que se ele curasse, faria festa pro santo. Ele melhorou. Ele se chamou José. E foi assim até ele morrer. E agora eu e meu irmão continuamos fazendo a devoção da reza. O que meu pai fazia, a gente continua fazendo até hoje, todo dia 18 pra 19 de março. Claro que é difícil fazer uma festa mas a comunidade toda ajuda, todo mundo traz um pouco de comida e se vier 500 pessoas, se vier mil pessoas todo mundo come. É simples mas cabe todo mundo que vem. E festa da consciência negra também.

As casa da cidade é tudo murada, e aqui é aberto, vendo a natureza, vendo as plantas, os matinho aí, os bambu, tudo verdinho… Como diz o ditado: aqui até onde não chove a mata é verde.

APRENDIZADOS 

Ùhû. Filho aprende olhando os mais velhos. Nossos filhos também aprenderam comigo e com Rosenil [esposa]. Eles sabem roçar, pescar, respeitar. Eles também recebem bem todo mundo que chega aqui em casa. Porque quem conversa direito, respeita, pergunta do outro, manda recado, pergunta se está bem e como vai, será respeitado também. Nós nascemos e crescemos dormindo em rede. Todo mundo dormia em rede feita pela mão. Plantava o algodão, colhia, fiava, tecia até fazer a rede. Hoje tem uns bicos para pagar a conta de luz e a gasolina da moto, quem tem, pra comprar óleo, sal, açúcar, café, mas o grosso mesmo vem da roça, da pesca, da criação de galinha e porco. Antigamente a gente caçava, hoje não pode mais. Também porque não tem mais os bichos que tinha.

Eu tava falando: peixe tem pra todo mundo. Vai no Jauquara e pega seu peixinho pro almoço, e o que sobra, coloca no congelador e guarda pra outro dia. Aqui não se vende peixe, não pode. Mas também porque não se pega mais peixe grande. Antigamente tinha muito jaú de 70 quilos, hoje tem que bater duro para pegar um jaú de 15 quilos. A gente pescava com flecha, aprendemos. Antigamente não tinha tarrafa, rede; hoje vem gente de fora, escondido pra tarrafiar. E tem a diminuição das comidas naturais pros peixes, não dá tempo do peixe crescer muito.

QUILOMBO 

Ãhâ! Nós somos uma região de quilombo. Nós moramos em comunidade. Noutro tempo nós morava aqui nesta casa, numa comparação [e risca no chão com o dedo]. Chegava um morador aqui e dizia: “vou roçar ali”, fincava uma casa e fazia morada. Aí vinha outro e mesma coisa. E assim ia juntando uma comunidade. Quando ia mudar daqui, pro lado de lá do Jauquara e fazer roça lá, ninguém impedia. Tudo trabalhava junto. Cada um tinha sua roça, mas era tudo emendado e nós roçava junto. Aqui era meu, aqui era seu, aqui de ciclano…. Se quisesse mudar, tudo bem. Cada um tinha seu rancho, punha as sementes e vivia. Com os tempo vai chegando os fazendeiros e aqueles cabeça fraca cai na conversa, vende um pedaço da terra. Os fazendeiros têm dinheiro, comprava o lote aqui mas colocava as divisa mais pra frente. Aqui é terra voluta. [3] E quem vai mexer com os fazendeiros? Depois vinha outro, e outro. E assim foi desmanchando. Nossa área era tudo isso que vocês estão vendo. Hoje nossos lotes são bem menores e os fazendeiros têm muita terra. E quando a gente descobriu, muita gente foi embora ou foi trabalhar para os fazendeiros. Mas teve muita gente nossa que resistiu. Teve muita briga. E depois veio o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e outros órgãos para demarcar as nossas terra. Meu pai e meus irmãos mais velhos, o pai da Lindalva, seu Francisco e outras pessoas mais velhas que moravam aqui. E as autoridades foram enxergando nossa história nesta terra. O que eu tenho, eu quero pros meus filhos e pros meus netos. Para eles conhecerem as belezas que a natureza criou. Hoje esses meninos tudo estão estudados na escola. Antigamente não tinha escola. Feliz mesmo daqueles que está estudando e trabalhando pra ficar aqui no nosso lugar. Tem os que fazem faculdade e vão arrumando emprego por aí, mas trabalham com a gente na nossa luta. Aqui era muita gente mesmo e na época todo mundo vivia braçal, não tinha esse negócio de empresa nem nada. Todo mundo vivia do seu braço, do seu suor, quem era nascido e criado aqui. Eu nunca trabalhei de carteira assinada. Hoje minha coluna já não aguenta muito o trabalho pesado. Meu negócio é minha roça e minha pesca. É do meu suor na lavoura. Mas hoje a tecnologia está demais, essa rapaziada quer vestir bem, quer aparecer bem, eles vão trabalhar na cidade, na firma, tem uma empresa. Lá eles casam e ficam. Alguns vão esquecendo daqui também. Mas eles voltam e eu gosto quando eles estão aqui. Infelizmente não tenho roça suficiente para manter eles todos aqui com suas famílias, mas bem que eu queria. E sempre que estão aqui a gente come uma mandioca, come um peixinho, pesca, banha no rio e anda por esses matos tudo aí.

[3] Devoluta. 

SEMENTES 

Você criava as galinhas soltas aí, nem vizinho… Hoje, se o meu porco vai na sua casa, você vai falar: o seu Antônio tem que fazer um chiqueiro porque o porco dele está bagunçando o meu terreno. Noutro tempo nós criava tudo junto. Os porco deles criava cá com o meu e os meu com os deles. Um dia que ia comer, a gente ia lá e pagava um, ou eles vinha aqui e pegava criação deles. Isso tem uns 40 anos atrás. Inda peguei esse tempo. Tinha uns 14 anos de idade.

Com o tempo você vai reparando mais nas coisas, observando melhor a natureza e escuitando mais o que os velhos falam. Por exemplo: as sementes antigas não tem mais. As sementes nascidas e criadas aqui no Vão, muita já acabou. Porque vem outras sementes. Nós tem a roça, nós planta e guarda a semente. Mas não é mais a semente antiga. Ela vai acabando porque vai aparecendo outras sementes. Meu pai falava: com o tempo vai aparecer outras sementes vindas não se sabe da onde, que vai abrangindo as sementes que nós planta. Porque rende melhor mas ocupa o lugar das sementes antigas.

Antes tinha mais da mandioca Aipim, Mucuna e Olho de Pomba. Hoje mais que tem é mandioca Três Mês e a Liberata. E a mandioca Cacau que apareceu agora. Mas igual a mandioca Aipim eu nunca encontrei; ela até desmancha na boca. A Mucuna é boa pra farinha. Banana Sarta Viaco eu nem conhecia. Papai e mamãe plantava banana Maranhão: hoje eu assunto as pessoas por aí, mas quase ninguém conhece. Hoje não existe mais. As frutas, as banana era muito doce, tinha até mel porque tinha muita Bojuí, abelha Borá, Europa. As banana até pretejava no pé. Daí começou os bananeiro, apareceu a Sarta Viaco e as nossas foram sumindo. Então eu vi essa mudança. Bem que meu pai falava: as nossa banana vai sumir tudo. E assim foi com a mandioca, com o feijão. Não tem mais banana Maranhão de jeito nenhum. É quase tudo Sarta Viaco. A banana maçã que tem nos mercado tudo por aí, nós tinha a Apertadinha. E tem também as doença que meu pai falava que faz sumir umas espécies também.

Antigamente o pessoal só comia gordura de porco. Hoje tem o óleo porque muita gente cria soja. E o pessoal compra porque tem as conveniência. Antes você andava por aí e só via mata, hoje vê braquiária e canavial, e soja e pasto. Antes era bananal, milharal, arroizal, mandiocal e o povo vivia disso. E dava pra produzir e vender um pouco na cidade e, com o dinheirinho, comprar sal, calçado, uma roupa ou pano pra fazer roupa. Depois dos fazendeiros, a gente pegava uma empreita de uma semana, um mês.

TEMPO 

Vi muita coisa mudar aqui. Eu nasci no mato, hoje tem mais é pasto dos fazendeiros. Era só mato, capim nativo. Não tinha cerca, criação crescia tudo misturado, inclusive os pouco gadinho de cada compadre. Cerca protegia a lavoura porque os porco come tudo mesmo. Tinha muita fruta. Sem as frutífera os passarinho não vem. Ainda tem passarinho, mas antes era muita exuberância de planta, fruta, bicho, gente. A simplicidade continua. Meu pai não sabia assinar o nome, minha mãe também, mas me ensinaram tudo o que eu sei da vida.

Com os tempo, veio a proibição de cortar os matos, bom que veio essa lei… agora tem uma reserva, aqui mesmo atrás dessas serras é reserva e é bom que tenha reservinha pra ver se junta as matas, cresce as fruteiras e os passarinhos, os bichos vai juntandinho ali, devagar… senão os córregos vai secando. Essas reserva agora segura as cabeceiras dos córregos. Muitos córregos e lagoas que tinha nesta região, eu cresci vendo água nesses córgo, nas lagoa. Hoje, onde tem terra mecanizada, já cortou os córrego. Hoje eles estão secos, antigamente era uma água bonita, córrego forte. Nós tinha o Córgo do Mato aqui que corria água bonita. Nesta época de julho era tanta água que pra conversar ali perto era só falando gritado. É as árvore grande que segura os capão de mato. Ele joga água no Jauquara, mas agora é uma aguinha assim: té té té. Mesmo assim estão querendo colocar uma barragem aqui no Jauquara. E daí? como vamos viver?

PCH [4]

Quero nem pensar nisso. E nós estamos lutando para isso não acontecer. Pensar nisso até me faz mal, dá uma gastura aqui dentro assim. Porque esse lugar é a nossa vida, é a vida dessas comunidades tudo aí. A vida toda vem da água, e a água mais importante pra nós, a fonte de água mais importante pra nós é o Jauquara. E quando essa barragem estourar vai matar todo mundo. E a natureza está equilibrada, então diminuir a água significa matar as florestas, diminuir toda a vida dos bichos, dos peixes. E se não estourar enquanto for nova, vai descer um fiozinho de água. Esse vão de serra é onde essa água se mexe, aqui alaga, inunda, e esse equilíbrio que está na mão de Deus, na natureza que é essa beleza toda, não pode ficar na ponta dos dedos dos homens que cuidam do computador da PCH. Não tem empresa que segura o Jauquara, só Deus mesmo. Porque é isso, todo o equilíbrio da natureza a partir das águas do Jauquara aqui no Vão Grande ou no Vãozinho. [5]

[4] Abreviatura de “pequena central hidrelétrica”.

[5] Comunidade a jusante.

Vai secar a vida quando secar a água do Jauquara. A veia da vida de nós é a veia da água do Jauquara. Se mexer no rio vai acabar com a nossa vida. Vou repetir: A veia da água, da vida do pessoal é o Jauquara. Da cabeceira até a barra dele, toda a vida aqui depende dele. E onde não tem a água, não tem a vida.

Com o tempo a gente não aguenta mais trabalhar mesmo. Hoje, se você trabalha numa firma, você não é clandestino, tudo é fichado. Tudo é mandado pela mão do dono. Eu nunca gostei de trabalhar na mão de ninguém, não. Eu trabalho sob a minha mão e a mão de Deus. Não quero sair daqui. Quero ficar aqui no meu cantinho, cultivando da minha roça e cuidando da minha reserva. Pegando uns peixinho no Jauquara e comendo com mandioca. Quero o meu sossego. Quero ouvir esse barulho da água do rio correndo, o canto do sabiá. Passo o dia inteiro aqui escuitando essa passagem, ó! Olha como é bonito o barulho da água. Mesmo quando a pescaria não dá nada, nós está feliz sentindo o cheiro da água, a “sumarana” da água e nessa conversa aqui. No dia que nós quer trabalhar na roça, trabalha; no dia de pescar, pesca; e todo dia tem comida e nunca falta comida. Nunca passamos fome.

Meu pai falava que era pra cuidar da natureza. Pra cuidar dos mais novos. E nós estamos fazendo isso. Por isso não queremos barragem aqui nem nada. Queremos nosso sossego pra viver a vida aqui nesse cantinho. Pra manter a nossa vida tocando a lavourinha de cada um. Porque aqui tem água boa, um peixinho pra comer e pronto. Queremos a liberdade e a tranquilidade aqui deste lugar. Eu me sinto livre aqui.

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