Ana Biglione
“A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável nos é devido.”
Paul B. Preciado [1]
É um dia frio e nublado em São Paulo, em meio à fatídica semana cinza que nos faz ainda mais ativistas pela Amazônia. Abro meu computador para ler os textos que inspirarão a escrita deste texto. Logo no primeiro parágrafo, Cláudia afirma: “O ativismo visa a transformação, mas é fácil perdermos isso de vista. A reflexão nos ajuda a lembrar por que estamos aqui.”
1 Citação na contracapa da publicação de Carla Ferro. É necessário, o impossível. Carla Ferro Livros, 2017.
Minha alma acorda. Sim, a transformação que tanto desejamos enquanto ativistas pode ser óbvia, mas ela nos escapa recorrentemente. Talvez estar ciente disso seja o mais importante trabalho (e desafio) do ativista. Reconheço – em mim e em muitos ativistas – um padrão do qual não é simples fugir. Alguma questão ou situação nos sensibiliza e passamos a nos engajar, a atuar para transformar isso que nos sensibilizou. E aí entramos tão fundo, que nossa atuação se torna uma luta. E então a ação de lutar fica tão grande que nos perdemos em uma miríade de ações estruturantes da luta, sendo que em certos momentos talvez nem fosse essa a necessidade. A luta ocupa nosso ativismo. Acabamos por ofuscar nossa clareza sobre a tão desejada transformação.
Aprendi a reconhecer, com Allan Kaplan e Sue Davidoff (também ativistas, sul africanos) que todos nós, ativistas, andamos sobre esse terreno contraditório e estamos sob a máxima do que a Gestalt nomeia como teoria da mudança paradoxal, onde quanto mais tentamos mudar um comportamento, mais ele permanece o mesmo. “No ativismo, a estridência, a convicção de se estar certo, acompanhada pela determinação de mudar o que está errado são tão comuns, que a determinação, ao ficar estridente, pode passar a mimetizar as mesmas forças que estávamos querendo mudar” [2]. Como então podemos nos aventurar a transformar algo?
2 Allan Kaplan e Sue Davidoff. O ativismo delicado. The Proteus Initiative. 2014, p 4.
Na medida em que vou lendo os textos e ouvindo as diferentes vozes ativistas, vou me dando conta de máximas dessa transformação que tanto desejamos. “Não vai passar. Não é uma transformação que tem final. Nunca nos transformamos o suficiente. Se a transformação fosse uma máxima, talvez seria ‘continuar se transformando’. Não é um projeto de reforma de uma casa, que tem começo, meio e fim. É um movimento contínuo, pois estamos lidando com seres humanos, que são seres cuja dimensão exata não conseguimos compreender”, é o que diz Keila. “Transformação é estar sempre se questionando”, afirma Marcelo.
Aventurar-se a transformar algo está intimamente ligado a essas qualidades e a esse caráter continuamente reflexivo e questionador do ativismo – um desassossego interessado. É a partir dele, na sua relação com o mundo, que as pessoas se tornam ativistas, mas vai muito além disso: é a capacidade contínua e infindável de reflexão e questionamento – do mundo e de nós mesmos, das nossas próprias ações – que faz com que prestemos atenção ao que está de fato acontecendo, ajudando a nos despertar de padrões (como o da luta), a compreender melhor as situações complexas com que lidamos, e a nos movermos para direções e ações (ou não ações) que sejam repletas de sentido, despertando a transformação.
Nesse sentido, um ativista não descansa de desconfiar da sua ação e de mudá-la, não se deixa entregar à presunção de que ele tem as respostas certas para aquela determinada situação; é, sim, um ser ativamente atento ao que acontece no mundo, um constante perguntador, um inconformado, que busca compreender com profundidade o que está acontecendo, que precisa dialogar e se encontrar com os demais – incluindo os diferentes – pra ver mais e além. Ou seja, mais do que nas respostas ou ações em si, é na incessante busca por ações e respostas que o ativista zela para que uma real transformação vá acontecendo. A transformação não é algo estanque; ela se dá no constante movimento de busca por si mesma.
Ao mesmo tempo, falar da essência da transformação no ativismo é também reconhecer uma inevitável mudança de paradigma – algo profundo e duradouro, que acontece no hoje e que reverbera no amanhã. Estamos todos embrenhados em um mundo cujo paradigma atual seja, talvez, nosso maior desafio de transformação. Temos que lidar com um mundo burocrático, hierárquico, utilitarista e, nesse lidar, corremos o risco de nos tornarmos como ele: ativistas burocratas ou gestores de problemas, cooptados pela lógica instrumentalista de transformar o mundo a partir de fora dele, fortalecendo um paradigma gerencial que provê serviços de transformação social como uma commodity. Será isso transformação?
Me parece que reconhecer que o jeito como escolhemos agir e o tipo de ativismo que praticamos é tão significativo quanto a causa em que atuamos. A cada vez que nos perdemos disso, somos cooptados por um fazer desconectado de sentido, que não instiga a busca, nem abre passagem para o movimento de mudança, mas mantém o status quo e deixa de transformar.
Por fim, todos temos a vivência de que a transformação que desejamos é tanto impossível, quanto extremamente simples. Atuamos em sua complexidade e a reconhecemos na sua simplicidade. Fábio sabe que ainda que leis, projetos e sistemas sejam necessários, o que muda a vida das pessoas é a teia de cuidado informal, que vive nas relações. Teca sabe que o imediatismo por soluções não se sustenta. Tio Antônio sabe que sem as árvores frutíferas os passarinhos simplesmente não vêm. A transformação no ativismo é enorme, depende de uma multiplicidade de fatores (internos e externos) e, ainda assim, acontece no um a um, a cada pequeno passo. E esse parece ser mais um dos seus paradoxos, mais uma das bases moventes pelas quais os ativistas caminham.
Aliás, a mais árdua verdade carregada pelo ativismo é essa: a transformação que sonhamos enquanto ativistas é um grande mistério para todos nós. Se a gente soubesse exatamente como ela acontece, quais os caminhos, como ela nos afeta e qual sua cara – ela não seria transformação. Voltamos à ideia de que é justamente a busca, ativa, atenta e cuidada, por possibilidades que passam por direitos, por diálogos, por lutas, por desconstruções, por reflexões, por mobilizações e desmobilizações, pelas mais diversas ações, que vão nos mostrando, nos revelando, a partir do jeito como são vividas, a sua feição, sua forma e também aquilo que ela não é, ou não deveria ser. A busca de hoje vai transformando o amanhã, quase que ao revés. É como se o ativismo fosse uma janela para que a transformação possa ir acontecendo, para que um futuro mais coletivo e saudável a todos possa ir adentrando a nossa realidade atual e conformando-a nessa direção – que tem um rumo, mas não tem uma única resposta certa, que é de cada um, de cada causa e de todos, e que, quando atentos, vamos juntos humildemente descobrindo qual vai sendo. E seguindo.