Escola de Ativismo

Pistas para identificar, enfrentar e denunciar injustiças climáticas

As injustiças resultantes das questões climáticas amplificam desigualdades sociais, mas a luta coletiva é capaz de defender os territórios e a vida.

Pistas para identificar, enfrentar e denunciar injustiças climáticas

O agravamento das  mudanças climáticas vêm causando impactos profundos em todo o mundo, mas não afeta todas as pessoas da mesma forma. A intensidade dessas consequências é marcada por fatores como região, território, cor da pele e classe social. 

As injustiças resultantes das questões climáticas amplificam as desigualdades sociais que atravessam a sociedade. Mas como identificar essas desigualdades e saber quando há injustiças no território? Como entender se alguma situação que ocorre na minha comunidade pode ser decorrente das mudanças climáticas? E como enfrentar esse problema para garantir o direito à vida digna e para assegurar que comunidades historicamente vulnerabilizadas permaneçam em seus territórios?

A Escola de Ativismo ouviu duas especialistas nesta área para que nos ajudem a procurar pistas para identificar, enfrentar e denunciar injustiças climáticas. Ambas concordam que nessa discussão é necessário ouvir e envolver as comunidades tradicionais e seus saberes ancestrais antes de considerar tomadas de decisão que impactam o meio ambiente.  

Mudanças de humor do tempo

Se nas cidades os efeitos mais trágicos são sentidos em desastres, enchentes e deslizamentos, os problemas enfrentados pelas comunidades originárias e tradicionais são ainda mais constantes devido à forte conexão das pessoas com o meio ambiente. Essas comunidades, historicamente excluídas das decisões políticas e ambientais, seguem resistindo diante de ameaças constantes à sua existência e aos seus modos de vida. Um dos caminhos para a promoção da justiça climática, segundo especialistas e ativistas, é justamente garantir que esses grupos estejam no centro do debate e da construção de soluções.

Mas muitos fatores tornam injustiças climáticas invisíveis. Um deles é a naturalização da desigualdade. Nos territórios que sempre viveram com ausência de políticas públicas, esses problemas acabam sendo vistos como “normais” e não como uma violação de direitos.

A liderança quilombola e agricultora agroecológica Nilce Pontes, do Quilombo Ribeirão Grande /Terra Seca, no município de Barra do Turvo (SP) é  integrante da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras (RAMA),  militante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e acompanha os movimentos agroecológicos a nível nacional e internacional, defendendo a importância da conservação dos territórios quilombolas e colaborando na elaboração de técnicas agrícolas.

Vivendo no meio da Mata Atlântica, ela afirma que os territórios quilombolas estão sendo impactados e é possível perceber as alterações nos ambientes e nos modos de vida das comunidades. As mudanças climáticas têm deixado o solo mais ressecado, as águas mais escassas e mudado até os hábitos de cultivo para a produção de alimentos – uma injustiça com quem cuida do meio ambiente. 

“Antes a gente percebia que tinha época certa de plantar as coisas. Hoje a gente planta, mas não é aquele mesmo formato de produção. A gente plantava, por exemplo, feijão, arroz, milho, mandioca, banana, hortaliças, entre outras variedades aqui no território. Hoje a gente não consegue mais respeitar os ciclos lunares, uma vez que tem chuva quando deveria ter sol e tem sol quando era pra ser época de chuva. Essa alteração, essas mudanças de humor do tempo, a gente percebe que têm impactado também no processo de conservação das nossas sementes, das nossas mudas e raízes. O formato com que o solo tem respondido a essas mudanças, com secas excessivas, com enchentes, ou mesmo  na forma como o vento afeta o território. Para nós é perceptível essa alteração. Eu sinto uma confusão enorme com relação ao clima e se para a gente é complexo, para as plantas é ainda mais”, explicou. 

Essa alteração e adaptação forçada, imposta a quem sempre preservou e manteve os biomas em pé, é uma das diversas formas de injustiça e de violação de direitos.  

“Eu identifico as injustiças no meu território quando eu deixo de viver o meu modo de vida e passo a viver as práticas impostas por pessoas que não vivem o dia a dia da comunidade. Seja no modo de me alimentar, no de comunicar, no modo de vestir. Ensinar tecnologia para nós é nos ensinar a fazer adaptação dos nossos modos de vida. Então quando não tem essa interação para mim é uma violação de direito”, afirmou Nilce .

Para ela, outra injustiça climática presente nos territórios quilombolas está ligada aos processos de licenciamentos e a forma com que a legislação ambiental trabalha o seu conceito de preservação.  O Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como “PL da Devastação” tem preocupado indígenas e quilombolas de todo o Brasil.  A decisão pode marcar o maior retrocesso ambiental em décadas. 

Entre as propostas do PL, já aprovado no Senado, está a restrição da necessidade do licenciamento ambiental para áreas que ainda não tiveram o processo de regularização territorial finalizado. Com isso, essas comunidades deixam de ser ouvidas, sendo deixadas de fora de decisões que impactam diretamente os territórios que ocupam e preservam. Nas redes sociais, povos tradicionais, ativistas, ambientalistas, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, defensores do meio ambiente e dos direitos humanos se mobilizam com a campanha #VetaLula. A articulação pede o veto integral do presidente ao PL. 

Para Nilce, os saberes técnicos não são suficientes e, sozinhos, podem permitir que injustiças aconteçam.  “É preciso respeitar os  modos e práticas de vida das comunidades. Não associam o conhecimento técnico com o saber tradicional, o saber ancestral. O campo tecnológico tem desenvolvido tecnologias e não tem levado em consideração o território e as práticas dos territoriais”, disse. 

Quilombolas, indígenas e populações extrativistas são, e devem ser reconhecidos por sua contribuição para o equilíbrio climático. São essas comunidades que, com sabedoria ancestral e resistência diária, indicam os reais caminhos para a sustentabilidade e para um equilíbrio entre sociedade e natureza, através de suas vivências com a terra, com as águas e com o fogo

Nilce Pontes é liderança quilombola e atua na defesa do meio ambiente e dos territórios quilombolas / Foto: arquivo pessoal

Desigualdades sociais e práticas possíveis

A bióloga, educadora ambiental e mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Sarah Lima, participa da construção do movimento socioambiental cearense e coordena o programa Clima de Urgência do Instituto Verdeluz. Ela explica que as injustiças climáticas referem-se à distribuição desigual das consequências das mudanças climáticas, especialmente sobre povos indígenas, comunidades tradicionais e periféricas, que são as que menos contribuem para o problema e as que menos estão preparadas para enfrentá-lo.

Eventos extremos estão cada vez mais intensos e frequentes. Alguns exemplos são: alagamentos após chuvas torrenciais, que inundam as casas; deslizamentos de terra, que destroem a vida de quem mora em zonas de risco; ondas de calor que afetam a saúde; escassez hídrica, que atinge principalmente grupos e territórios vulnerabilizados; dentre outros. 

“Se pararmos para pensar nos territórios que sofrem injustiças climáticas, perceberemos que as pessoas têm uma cor de pele específica. No geral, são grupos sociais que já enfrentam diversas outras violações socioambientais, como ausência de saneamento básico, de áreas verdes, de corpos hídricos limpos e de acesso à saúde, à educação de qualidade, à mobilidade e ao lazer. As desigualdades sociais aprofundam a injustiça climática”, informou Sarah. 

Mas há ações possíveis para mitigar os efeitos das mudanças climáticas nesses territórios. A educadora ambiental afirma os desafios são imensos e que é necessário haver políticas públicas comprometidas, desenvolvimento de tecnologias, incentivos fiscais, educação ambiental e governança participativa. 

“Precisamos zerar as emissões de gases de efeito estufa, não só a nível local, mas também a nível global, afinal vivemos no mesmo planeta. Essas emissões só serão zeradas com uma transição energética justa, popular e inclusiva, que abandone todo e qualquer tipo de combustível fóssil, com a proteção dos biomas brasileiros, zerando desmatamentos e queimadas e com a gestão adequada de resíduos sólidos e líquidos”, explicação 

Para adaptar territórios, também há práticas possíveis, especialmente soluções baseadas na natureza. “Algumas medidas são: melhoria da infraestrutura de drenagem das chuvas, como pavimentação permeável, telhados e jardins verdes; criação e conservação de áreas verdes; reflorestamento; recuperação de corpos hídricos poluídos; recuperação de encostas; painéis solares em casas e espaços comunitários; mapeamento de áreas de risco e remanejamento adequado de famílias em zonas de risco; agroecologia e hortas urbanas. São muitas as possibilidades, que devem ser feitas respeitando os territórios e as pessoas”, pontuou Sarah.

Como denunciar

No campo ativistas vemos, com frequência, denúncias após violações de direitos humanos e dos direitos da natureza. Manifestações contra a devastação dos territórios mostram ao governo, empresas e ao mundo que existem caminhos melhores, mais justos e sustentáveis, pensando no presente e no futuro. Esse movimento vai na contramão do lucro e considera o bem viver dentro das comunidades ameaçadas. 

Sarah Lima diz que ao notar violações ambientais é importante acionar os órgãos públicos de cada localidade, seja em nível municipal, estadual e federal. “Órgãos de fiscalização ambiental, polícia ambiental, Ministério Público, Defensoria Pública da União, Comissão de Direitos Humanos e parlamentares comprometidos com a justiça socioambiental. Além disso, é essencial a formação de uma rede com coletivos e organizações do movimento socioambiental, que possam pressionar as denúncias”, explicou. 

Mas enfrentar as injustiças socioambientais e denunciá-las pode potencializar a insegurança de quem já enfrenta outras vulnerabilidades. Denunciar requer cuidados principalmente no Brasil, que é o segundo país mais perigoso do mundo para ativistas ambientais. Diariamente, ativistas ambientais e lideranças territoriais enfrentam a insegurança e a violência ao corajosamente decidirem expor situações e realizar denúncias.  

Por isso, busque uma rede de apoio e se proteja se realizar ações. Conte com canais de confiança, organizações ambientais e redes de ativismo que atuam na defesa dos direitos territoriais e da justiça climática. O descaso e a invisibilização também são desafios dentro da agenda climática. Muitas vezes as denúncias não recebem a devida atenção por parte do poder público, o que reforça a sensação de impunidade e desamparo.

Também é possível contar com as redes sociais como instrumentos importantes para fazer com que as denúncias alcancem mais pessoas. Muitas vezes, os impactos ambientais não são expostos e documentados de forma fidedigna, com recortes por território, etnia, classe ou gênero. Isso invisibiliza as desigualdades e dificulta o reconhecimento de que há injustiça. 

Luta contra o sistema e respeito aos modos de vida

Em um cenário marcado por profundas desigualdades sociais, raciais e ambientais, as vozes das comunidades são resistência e construção de futuros possíveis. A luta por justiça climática exige o reconhecimento e o respeito aos modos de vida tradicionais, à autonomia dos territórios e à força coletiva de quem cuida da terra. 

Nilce destaca que a verdadeira preservação passa pela valorização das práticas e saberes das comunidades. Sarah aponta a urgência da organização coletiva e da ocupação de espaços de decisão como estratégia. Ambas mostram que a transformação só é possível quando feita a muitas mãos, coragem e esperança.

“Cada comunidade tem a sua expertise de conservação do território, conservação da vida, as suas relações políticas, sociais, culturais e étnicas, desde que não haja interferência, não já respeitam o modo de vida das pessoas no quilombo. Isso já contribui com a justiça climática e com a preservação do meio ambiente”, afirma Nilce.

“Lutar contra um sistema que não nos quer vivos é um grande desafio, mas é o único caminho possível. Lutar coletivamente é o meio mais potente de conseguirmos mudanças na sociedade, de defender os territórios e a vida. Então, encorajo as juventudes a se mobilizarem e se organizarem, porque só assim podemos transformar a realidade! Temos uma enorme capacidade, força e criatividade para adiar o fim do mundo. Não dá para deixar que discutam sobre as nossas existências e o nosso futuro sem nós, precisamos ocupar esses espaços e ecoar as nossas vozes! Como diz Paulo Freire, é preciso ter esperança, do verbo esperançar; e esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”, finaliza Sarah Lima. 

Sarah Lima é bióloga, educadora ambiental e participa da construção do movimento socioambiental cearense 

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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