O que a experiência da Brigada Quilombola do Vão Grande, em Barra dos Bugres, ensina para quem quer organizar uma brigada que proteja o território mas também seja símbolo de resistência e organização
Essa matéria faz parte do especial “Onde nasce o fogo: conhecimento ancestral e brigadas anti-incêndio” feita em parceria pela Escola de Ativismo e Fundo Casa. Confira mais matérias clicando aqui.
Ilustrações: Ana Clara Moscatelli
Em diversas regiões do Brasil, povos quilombolas e outras comunidades tradicionais têm enfrentado, ano após ano, os efeitos devastadores dos incêndios florestais — que, cada vez mais, colocam vidas, culturas e territórios em risco. Ao mesmo tempo, essas mesmas comunidades têm mostrado que o caminho da preservação passa pelo fortalecimento de práticas ancestrais e pelo acesso ao conhecimento técnico. É nesse cruzamento que surgem as brigadas comunitárias: grupos organizados que atuam no combate ao fogo com sabedoria tradicional, ciência e ação coletiva.
A Brigada Quilombola do Vão Grande, em Barra do Bugres (MT), é uma dessas referências. Criada em 2020 após um incêndio de grandes proporções, ela se tornou símbolo de resistência, organização e cuidado com o território. A seguir, você entende como essa brigada foi formada — e o que a experiência do Vão Grande pode ensinar a outras comunidades do Brasil.
Tudo começou com um incêndio. Rafael Bento, liderança da comunidade, conta: “Para começar alguma coisa, você tem que ter um porquê. Em 2020, o fogo quase queimou nossas casas e roças. A gente se reuniu e decidiu que precisava resgatar nosso conhecimento e aprender mais.”
Nem toda comunidade tem estrutura pronta — mas muitas têm essa mesma urgência. Observar o território, identificar os riscos e ouvir os mais velhos sobre como o fogo era usado antes é o primeiro passo.
Cada comunidade tem sua geografia, seu bioma, seus ciclos e desafios. No Vão Grande, por exemplo, o fogo chega sempre pelos morros e serras, vindos de áreas externas — geralmente de fazendas ou vilas vizinhas.
“Quem mora na comunidade precisa conhecer bem sua área: saber quando o fogo chega, de onde vem e como pode ser contido. A gente queimava capim em maio e junho, quando a umidade está alta. Isso ajudava a proteger no período da seca”, explica Rafael.
A comunidade do Vão Grande buscou apoio junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) da Estação Ecológica Serra das Araras, participou de um edital do Fundo Casa e conseguiu recursos para compra de equipamentos. Hoje, sua brigada é equipada e atuante. Uma verdadeira referência para os quilombos do Brasil.
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O ICMBio é o órgão responsável pela gestão das unidades de conservação federais e atua com ações de preservação da biodiversidade em áreas protegidas, incluindo o apoio a brigadas comunitárias.
Além disso, é possível procurar apoio junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que, por meio do Prevfogo, abre editais públicos para formação e contratação de brigadistas, fornecendo suporte técnico, o que é considerado uma grande oportunidade para quilombos do país.
Outras instituições como associações locais, secretarias municipais e estaduais, institutos de pesquisa, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e organizações como o Fundo Casa podem ser importantes aliados.
“No início, combatíamos fogo com galho de árvore e aceiro. Mas entendemos que não dá mais pra enfrentar o fogo só assim. Precisamos de estratégia”, conta Rafael.
A brigada do Vão Grande reúne homens e mulheres quilombolas de várias idades — inclusive um senhor de 76 anos, o seu Francisco, guardião da comunidade. A organização inclui funções divididas: quem conhece a área, quem opera os equipamentos (como soprador e abafador), quem cuida da alimentação, quem mapeia os pontos críticos. Tudo é organizado coletivamente.
A Brigada do Vão Grande se reúne antes ir para a ação.
Foto: Divulgação
A técnica: unir o ancestral ao científico
A brigada aplica o Manejo Integrado do Fogo (MIF), que inclui a queima prescrita — uso controlado do fogo em áreas estratégicas no período pós-chuvas — e o aceiro, faixa limpa para evitar que o fogo ultrapasse limites.
“Hoje a gente queima entre 10h e 13h, no período úmido, com licença e planejamento. E sempre respeitando a natureza do lugar”, afirma Rafael Bento.
Brigadas como a do Vão Grande mostram que o fogo, quando guiado com respeito e sabedoria, protege. Protege casas, roças, vidas. Segundo o MapBiomas (2024), 97% das queimadas no Brasil têm origem humana — e, em 2023, 95% ocorreram fora de áreas protegidas, muitas ligadas à expansão da monocultura e à grilagem de terras.
Os quilombos que protegem o Brasil
De acordo com dados do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e da The Nature Conservancy Brasil (TNC Brasil), mais de 83% da vegetação nativa está preservada dentro dos territórios quilombolas oficialmente reconhecidos.
Essas comunidades não apenas enfrentam as queimadas: elas também ajudam a conter o avanço da destruição, mantendo vivas as florestas e contribuindo para o equilíbrio climático que afeta comunidades tradicionais e cidades em todo o país.
Dados do Prevfogo/Ibama apontam que, nos últimos anos, quilombolas, indígenas e ribeirinhos passaram a compor boa parte das brigadas florestais contratadas em editais públicos — demonstrando que o cuidado com o território vem de quem o conhece profundamente. De dentro pra fora.
Quer conhecer melhor a comunidade do Vão Grande e sua história?
Confira a Cartilha do Protocolo de Consulta do Vão Grande e o livro Narrativas do Interior, produzidos com apoio da Escola de Ativismo.
Cartilha do Protocolo de Consulta da comunidade quilombola Vão Grande: https://escoladeativismo.org.br/wp-content/uploads/2023/07/PROTOCOLO-POPULAR-CARTILHA-versao-final-web.pdf
Livro Narrativas do Interior: https://escoladeativismo.org.br/wp-content/uploads/2022/04/Narrativas_do_Interior_LIVRO_digital.pdf
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