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Boxe antifascista

Breno Macedo* nos conta sobre o passado, presente e o futuro do boxe que não rende loas a figuras conservadoras e direitistas​

“O recente movimento do boxe antifascista brasileiro teve como espelho realidades externas, para depois olhar para seu próprio passado e retomar o diálogo com os boxeadores esquerdistas de décadas atrás.”

 

O boxe, esporte que tem trazido muitas medalhas ao Brasil nos Jogos Olímpicos, está presente na sociedade brasileira desde meados da década de 1920. Apesar do seu forte caráter popular e do histórico de adesão pela classe trabalhadora, o boxe nunca esteve muito marcado politicamente no Brasil. Ao pensar a relação entre boxe e política, as lembranças mais vivas são as que relacionam o esporte a um certo conservadorismo, a um flerte com a direita, principalmente quando se faz referência a alguns dos boxeadores de maior destaque do Brasil.

Eder Jofre, como atleta campeão do mundo nos anos 1960 e 70, foi amplamente utilizado pelo regime militar, tal como fizeram com Pelé e a seleção do tri. Quando se aposentou e resolveu se envolver com política eleitoral, Jofre foi vereador por 18 anos seguidos na cidade de São Paulo, a maior parte do tempo pelo PSDB. Sua atuação política foi discreta e poucos benefícios trouxe para o grupo social de onde emergiu: o proletariado.

Outra estrela do pugilismo nacional que também veio da pobreza, que se envolveu com política e que teve atuação discreta, foi o soteropolitano Acelino ‘Popó’ Freitas, campeão do mundo nos anos 1990 e 2000. Popó se aposentou dos ringues em 2007, e, em 2011, aproveitando a fama de ídolo nacional do esporte, foi eleito deputado federal pelo Republicanos, que à época se chamava PRB. Apesar de ter um filho LGBTQIAPN+  e de ser afro-descendente, Popó declarou apoio a Bolsonaro em 2022.

Quando olhamos para os ídolos mais recentes do boxe, como por exemplo o medalhista olímpico em Londres, Esquiva Falcão, o retrospecto não muda muito. Apesar de preferir não se posicionar entre “Lula ou Bolsonaro”, Esquiva vez ou outra solta declarações que mostram sua visão de mundo. Em 2017, Falcão se envolveu numa discussão no Twitter com Thais Araújo e Emicida, criticando o discurso antirracista proferido pela atriz no TEDX São Paulo. Na ocasião, Esquiva se posicionou contra o Dia da Consciência Negra; dizia ser mais importante o “Dia da Consciência Humana”. Ironicamente, menos de um ano depois deste episódio, o pugilista sofreu ataques racistas na internet. Ao ser chamado de macaco no Twitter, o boxeador evangélico respondeu dizendo: “Deus lhe abençoe”. Em 2021, fechou patrocínio com a Havan, participando de um grande evento promovido por Luciano Hang, o famoso “véio da Havan”. Ao anunciar a escolha em patrocinar o pugilista, o empresário disse que “Esquiva tem a cara da Havan: é simples, não tem medo de trabalhar e tem uma história de superação”. Esquiva não relutou em aliar sua imagem a de um personagem tão contraditório como o “véio da Havan”, sonegador de impostos, antivacina, com íntimas relações com o governo Bolsonaro.

Se analisarmos politicamente o mundo das lutas, dos esportes de combate, percebemos que o boxe ainda é “menos direitista” que o MMA e o Jiu-jitsu (1), por exemplo. Lutadores, treinadores e ex-atletas destas modalidades não hesitam em se alinhar ao bolsonarismo, demonstrando o pensamento hegemônico dos praticantes destas lutas. Os principais nomes da família Gracie, baluartes do Brazilian Jiu-Jitsu (2), declaram apoio e mantêm relação de proximidade com Bolsonaro e seus filhos. Antigos ídolos do MMA, Wanderley Silva, Rodrigo Minotauro, José Aldo e Maurício Shogun, também ostentam fotos em motociatas ao lado de Jair. No campo dos atletas ativos no UFC (3), o bolsonarismo também está presente, vide declarações de nomes como Borrachinha, Gilbert Durinho, Igor Araújo e Deiveson Figueiredo, atletas de destaque do MMA.

Raiz revolucionária

Há, entretanto, no mundo do boxe brasileiro, personagens reconhecidamente como de esquerda. Os irmãos Zumbano, que foram um dos principais grupos familiares de pugilistas, tiveram relação próxima com movimentos esquerdistas no Brasil. Waldemar Zumbano, que foi boxeador nos anos 1930 e treinador de renome entre os anos 1940 e 1990, teve íntima relação com movimentos revolucionários na década de 1930. Waldemar chegou a ficar na ilegalidade durante a ditadura Vargas, participou ativamente da “revoada dos galinhas verdes” em 1935, quando antifascistas enfrentaram os integralistas no centro de São Paulo. Waldemar fazia parte da Brigada de Choque do Partido Comunista (4). Um dos irmãos de Waldemar, Higino Zumbano, também militou em frentes esquerdistas na década de 1930. Durante a ditadura militar que teve início em 1964, os irmãos Zumbano já não mais militavam em grupos armados, como fizeram décadas antes. As torturas, prisões e exílios que sofreram, somados ao peso da idade, fizeram com que a família Zumbano passasse a evitar a vida política. Pouco a pouco, o passado de militância socialista dos Zumbano foi apagado, silenciado, e hoje pouco se fala sobre esse tema.

No Brasil, o movimento de boxe antifascista evoca a memória de Waldemar Zumbano, personagem que já enxergava o esporte como uma ferramenta de transformação social há décadas atrás. Waldemar Zumbano defendia a popularização e estatização do boxe no Brasil já nos anos 1950, antes mesmo do governo revolucionário de Cuba colocar em prática tais medidas. A linha de pensamento de Waldemar Zumbano, entretanto, não teve uma trajetória linear até o atual boxe nacional. O recente movimento do boxe antifascista brasileiro teve como espelho realidades externas, para depois olhar para seu próprio passado e retomar o diálogo com os boxeadores esquerdistas de décadas atrás.

Como surgiu o boxe antifascista?

Boxeadores, lutadores e praticantes de artes marciais flertando com o espectro político de direita não é exclusividade do Brasil de Jair Bolsonaro. Por permitir gerar uma rápida associação a valores como machismo, homofobia, nacionalismo, supremacia e meritocracia, não é de hoje que o Boxe atrai fascistóides para seu seio. Apesar do esporte ter sido amplamente difundido e utilizado como símbolo nacional na União Soviética e em Cuba de Fidel, o boxe também foi, historicamente, apropriado por simpatizantes do fascismo.

Não por acaso, o movimento do boxe antifascista surgiu justamente onde surgiu o fascismo de Benito Mussolini: a Itália. País onde o boxe é muito popular desde meados do século 20, a Itália possui uma cena de boxe bem estabelecida, o que faz com que tal modalidade seja difundida por toda geografia do país (diferentemente do Brasil). Em meados dos anos 1990, começaram a surgir as primeiras academias antifascistas, que se auto-intitulavam Palestra Popolare, ou academia popular, em tradução direta.

Mariano Aloíso, imigrante calabrês em Roma, foi um dos fundadores da Palestra Popolare San Lorenzo, que fica em bairro homônimo no centro de Roma. Amante do boxe e militante antifascista desde jovem, Mariano se via obrigado a treinar com professores simpatizantes do fascismo italiano. Com pouco mais de 20 anos, adepto da cultura Skinhead Antirrascista (Sharp – Skin Heads Against Racial Prejudice e Rash – Red and Anarchist Skin Heads) (4), Mariano decidiu fazer algo para mudar aquela situação. Ao invés de fazer como boa parte de seus amigos, que se negavam a praticar boxe para não ter que conviver com fachos, Mariano se uniu com camaradas que passavam pela mesma situação para fundar uma “academia vermelha”, ou Palestra Popolare.

A proposta era simples: criar uma academia de boxe livre de símbolos fascistas e comportamentos discriminatórios, espaço que atendesse a demanda do público de esquerda e extrema-esquerda. Mariano cita que, além da paixão pelo pugilismo, treinar boxe também tinha uma importância prática para tal público, uma vez que desenvolvia a autodefesa e o preparo físico para militantes de esquerda. O ítalo-baiano Carlos Marighella se orgulharia. Conflitos com grupos neonazistas não eram raros àquela época, o que demandava que os antifascistas estivessem prontos para algum eventual embate físico.

A Palestra Popolare San Lorenzo pouco a pouco foi ganhando corpo. Ocupando um prédio municipal que se encontrava abandonado na cidade, a Palestra foi atraindo cada vez mais adeptos, pessoas que se sentiam seguras em frequentar um lugar que se definia como antixenófobo, anti-homofóbico, antimachista e anticapitalista. Com o passar dos anos, a Palestra se filiou a Federação Pugilística Italiana e passou a participar de campeonatos oficiais, ganhando terreno num espaço até então inacessível a militantes de esquerda. Novas modalidades de luta passaram a ser ministradas na academia e o campo de atuação não se restringia apenas ao boxe, abarcando também outros esportes de combate e atividades físicas.

A história de Mariano com a Palestra Popolare San Lorenzo é apenas um exemplo prático de como começaram a surgir as academias antifascistas. Na mesma época que surgiu a primeira Palestra em Roma, em Cosensa na Calábria, sul da Italia, surgia a Associação Boxe Popolare, criada nas mesmas condições que a San Lorenzo. Este mesmo movimento que ocorreu na Itália do final dos 1990 ocorreu em outros países nas décadas seguintes. Inglaterra, Áustria, Espanha, França e Argentina viram surgir suas “academias vermelhas” nos anos 2000.

Torneio de boxe antifascista na Itália

O boxe antifascista chega ao Brasil

Inaugurada em 2003, a academia MM Boxe em Rio Claro, interior de São Paulo, criou laços com algumas academias populares italianas a partir de 2015, quando já tinha mais de dez anos de trabalhos sociais com jovens da cidade. Ao conhecer os conceitos defendidos pelos camaradas italianos, tais como a não-mercantilização do esporte, o combate ao racismo e o machismo, o respeito pela diversidade e a autogestão, a MM Boxe “caiu em si” e entendeu que se tratava de uma “Palestra Popolare à brasileira”. Ainda que não tivesse se definido como antifascista anteriormente, a MM Boxe já realizava uma ação direta por meio do esporte há anos. A influência conceitual dos camaradas italianos fez com que a academia de Rio Claro passasse, desde então, a se definir como ela sempre foi: antifascista. Trabalhando com o boxe competitivo de alto rendimento, a MM Boxe enviou sua equipe de atletas para treinar e lutar em academias populares italianas em 2016 e 2018. Jovens negros e periféricos do interior do Brasil viajaram para a Europa, sendo recepcionados por uma rede de companheiros de esquerda em cidades como Roma, Bologna, Genova, Perugia, Napoli, entre outras. Um dos treinadores da MM Boxe, Breno Macedo, passou seis meses em Roma em 2017, dando aulas de boxe na Palestra Popolare Quarticciolo, academia que hoje (2024) se configura como a maior academia antifascista da Itália.

A primeira equipe de boxe do Brasil que nasce como antifascista, fundada como uma forma de ação direta contra o fascismo, é o Boxe Autônomo, de São Paulo. “Apadrinhada” pela MM Boxe, o projeto do Boxe Autônomo surgiu de companheiros que conheciam a cena do esporte popular em outros países e que se lamentavam de São Paulo não ter uma cena do boxe antifa. O Boxe Autônomo começou dentro da ocupação Leila Khaled, na Liberdade, que recebia famílias de imigrantes de origem palestina e migrantes de diferentes regiões do Brasil. Defendendo bandeiras como o anticapitalismo, o antimachismo e o antirracismo, o Boxe Autônomo passou e passa por diferentes espaços populares de São Paulo, como a Ocupação Mauá e a Comunidade do Moinho, até estabelecer sua sede na Casa do Povo, centro cultural da comunidade judaica no Bom Retiro.

Buscando oferecer um ambiente para a prática do boxe livre de homofobia, do machismo, da xenofobia, da intolerância religiosa e de pensamentos preconceituosos, o Boxe Autônomo atende uma demanda da cidade de São Paulo. Hoje, em janeiro de 2024, circularam pela academia popular do Boxe Autônomo na Casa do Povo pessoas atraídas por diferentes motivos: militantes de esquerda, membros da comunidade LGBTQIAPN+, população do entorno, moradores de comunidades do centro de São Paulo, estudantes universitários identificados com a causa antifascista, pessoas de baixa renda atraídos pelos preços populares, trabalhadores da região central da cidade.

Realizar trabalho social com grupos desfavorecidos economicamente não é exclusividade do Boxe Autônomo ou da MM Boxe, pelo contrário. No Brasil, a maior parte dos e das pugilistas de destaque são oriundos de projetos sociais espalhados pelo país. Entretanto, é praticamente inexistente a consciência de classe e de raça por parte destes projetos, que acabam se esvaziando ideologicamente. Não é raro encontrar academias periféricas, composta majoritariamente por pessoas negras, que ignoram o tema do racismo estrutural brasileiro; garotas que praticam boxe, esporte que excluiu historicamente as mulheres de seu meio, dizendo serem antifeministas, influenciadas por líderes religiosos ligados a extrema direita brasileira; treinadores e atletas que trabalham com boxeadoras gays, mas que propagam ideias homofóbicas em seu dia a dia. As próprias boxeadoras LGBTQIAPN+ de destaque evitam tocar no assunto, para não levantar “bandeiras polêmicas” no Brasil homofóbico. Tais situações contraditórias são fruto desse vazio político que cerca o boxe brasileiro, e é também neste ponto que o boxe antifascista se propõe a fazer a diferença.

Hoje, a MM Boxe e o Boxe Autônomo inspiram movimentos parecidos em outras localidades do Brasil. Apesar de não haver por aqui uma rede de academias esquerdistas bem estabelecida, há um grande número de praticantes de boxe de esquerda, público que admira, suporta e dá forças aos projetos já existentes. Ao participar do circuito de competições oficiais da CBBoxe (6), a MM e o Autônomo também mostram que o esporte pode ser levado à excelência e trazer resultados sem perder seu caráter político. Uma coisa não anula a outra. Muito pelo contrário, o boxe se fortalece com o antifascismo e a política se difunde através do esporte.

TEXTO

Breno Macedo

Oriundo de uma família de boxeadores, foi atleta amador e chegou a ser campeão paulista.

publicado em

Temas

AS ACADEMIAS

MM Boxe

Na cidade de Rio Claro (SP), a MM Boxe atende aproximadamente 30 crianças e adolescentes e 50 adultos. Realiza ainda festas e eventos culturais com a participação de grupos autônomos da cidade. Localizada em um antigo galpão ferroviário, a equipe atua no entorno do espaço, local que sofre de abandono do poder público e privado. Desde a sua fundação, em 2003, mais de mil crianças e adolescentes já passaram pela Academia.

Endereço: Rua 1B, 357, Cidade Nova, Rio Claro SP

Site: @mmboxe

Para conhecer mais: Canal do Youtube @mmboxe

 

Boxe Autônomo

O coletivo Boxe Autônomo, criado em 2015, já passou pela Ocupação Leila Khaled, Ocupação Mauá, Favela do Moinho e atualmente funciona na Casa do Povo, no Bom Retiro, em São Paulo, oferecendo aulas de boxe a preços populares. Oferece aulas gratuitas para crianças e jovens da região central de São Paulo, sem apoio governamental ou privado.

Endereço: Rua Três Rios, 252, Bom Retiro, São Paulo SP

Fachada de academia antifascista na Itália 

Notas:

1. MMA (Mixead Martial Arts) e o Brazilian Jiu-Jitsu são modalidades de lutas muito popular no Brasil e onde os brasileiros obtém grande destaque internacional.
2. A Familia Gracie é conhecida no Brasil por criar e difundir o BJJ (brazilian Jiu Jistu), tendo como iniciadores desta tradição os irmãos Carlos e Helio Gracie, ainda na primeira metade do século passado.
3. A Brigada de Choque do Partido servia como uma espécie de batalhão de guarda-costas em manifestações e atos. A tensão entre comunistas e militares fascistóides era muito alta nos anos 1930 e a partir de 1935 deu-se início a um período de repressão violenta contra os esquerdistas.
4. Conferir pesquisa de mestrado da USP, “Sangue, Suor e Lágrimas: O Boxe em SP de 1928 a 1953”, de autoria de Breno Macedo.
5. Correntes que evocam as origens proletárias do skinhead inglês, onde filhos de classes subalternas britânicas conviviam com imigrantes jamaicanos e caribenhos. O skinhead, é, em sua origem, antirracista, e sua identidade visual foi sequestrada por movimentos neonazistas europeus.
6. Confederação Brasileira de Boxe, órgão máximo do esporte no país, ligado ao Comitê Olimpico Brasileiro.

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