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Suzana Regina Morera: "Defender a nossa Casa Comum é intrínseco à fé cristã"

A fé e a mudança ecológica a partir da encíclica papal Laudato Si em uma perspectiva brasileira, por uma teóloga do Movimento Laudato Si

Tenho 32 anos. Sou formada em Teologia, com mestrado em Teologia Sistemático Pastoral, pela PUC Rio. Trabalho como gerente de programas para conversão ecológica no movimento Laudato Si, em nível global. No momento não resido em nenhum lugar, estou nômade. Tenho viajado bastante pelo Brasil e para outros países, onde fico em casas de amigos e família. Sempre fui muito andarilha.

Laudato Si na origem

O grande marco na minha vida para eu ser ativista foi, com certeza, a encíclica Laudato Si do Papa Francisco, que é o primeiro documento de um papa especificamente sobre o cuidado com a Casa Comum, o cuidado com a natureza e o planeta Terra. Essa encíclica foi lançada em 2015, durante a minha graduação em Teologia. À época, todos os eventos, congressos, palestras foram sobre a Laudato Si, um documento histórico para a Igreja Católica e para o mundo.

Quando eu li a encíclica, percebi que ela juntava todas as áreas da minha vida. Desde pequena eu tive a oportunidade de estar mergulhada na Criação. Minha família todo ano fazia viagens no meio da floresta amazônica, não na Amazônia legal, mas na região da floresta no Estado de Tocantins, e eu sempre senti uma conexão muito profunda com a natureza. A espiritualidade franciscana sempre esteve presente na minha vida, pois meu pai foi seminarista franciscano. Ao mesmo tempo, eu sempre tive vontade de pensar criticamente sobre a fé – essa foi uma das razões que me motivaram a estudar Teologia depois do Ensino Médio.

O Papa Francisco fala que a gente está vivendo um momento de crise, crise complexa em várias dimensões, ambiental, na política, no social, na economia, também na cultura. Eu sempre tive também uma conexão muito forte com as artes. Com a Laudato Si, eu senti que convocava inclusive meu lado artístico. Com a Laudato Si, eu encontrei um caminho para colocar todos os meus dons a serviço do cuidado da nossa Casa Comum e da justiça para as pessoas mais vulneráveis, que sofrem mais as consequências da crise ambiental que estamos vivendo.

Em 2015, poucos meses depois da publicação da Laudato Si, conheci o Movimento Laudato Si (que na época se chamava Movimento Católico Global pelo Clima). Comecei a acompanhar o ativismo católico na área de justiça climática e justiça socioambiental desde então, mas foi em 2017 que comecei a me engajar de maneira mais concreta através do curso de Animadores Laudato Si, oferecido gratuitamente pelo Movimento. Conforme fui crescendo e me engajando nessa área, ao mesmo tempo eu estava aprofundando meus estudos na área de teologia decolonial, latino-americana, feminista, e também passando por processos bastante intensos de desconstrução pessoal no que diz respeito à branquitude, à heteronormatividade e ao catolicismo. Por isso, minhas principais lutas acabam sendo um emaranhando de pautas, que eu resumiria como justiça socioambiental, justiça racial, liberdade religiosa e liberdade sexual-afetiva.

 

Do pessoal ao global, os diversos campos de luta

Dentro do campo da justiça socioambiental, a principal luta é conscientizar e mobilizar a comunidade católica global sobre a importância de cuidar da nossa Casa Comum, de o quanto isso é intrínseco à fé cristã, e assim poder trabalhar com ações concretas para alcançar, ou melhor, ir construindo mais justiça climática, ecológica e socioambiental. No Movimento Laudato Si, trabalhamos através de três pilares estratégicos: conversão ecológica, estilos de vida sustentáveis e mobilização profética (em inglês, prophetic advocacy). Eu trabalho especificamente na área de conversão ecológica, criando e gerenciando programas de desenvolvimento pessoal e comunitário para integrar os elementos da nossa Casa Comum na vivência cotidiana da espiritualidade, nas práticas litúrgicas das comunidades de base e nos níveis da hierarquia católica.

Uma das principais iniciativas que ajudo a coordenar é o Tempo da Criação, uma celebração que acontece todos os anos do dia 1 de setembro ao dia 4 de outubro. É um tempo ecumênico de oração e ação pela nossa Casa Comum, que teve início em 1989, quando o Patriarca Dimitrios I estabeleceu 1 de setembro como o Dia da Criação para a Igreja Ortodoxa. Posteriormente a data foi sendo adotada por outras denominações cristãs e, em 1999, a Rede Ambiental Cristã Europeia (ECEN) propôs estender a celebração até dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, que é reconhecido por diversas denominações cristãs como exemplo de vida pelo cuidado da natureza e dos mais vulneráveis. No site oficial (1), é possível encontrar os diversos materiais e propostas que organizamos para ajudar a mobilizar as pessoas cristãs ao redor do mundo para se engajarem nesse tempo.

Já no campo da justiça racial, liberdade religiosa e liberdade sexual-afetiva, minhas ações acabam se concentrando no desenvolvimento teológico para a justificativa e aprofundamento dessas lutas. Ao mesmo tempo, é um desenvolvimento teológico que acontece na minha vida, principalmente através das minhas experiências pessoais de convivência e partilha com uma diversidade de pessoas potentes que inspiram minha caminhada e que ajudam a me humanizar. Costumo olhar para essas minhas lutas pela perspectiva do trabalho árduo das formigas, sabendo que a minha presença e minha troca de ideias com pessoas da minha família e de contextos eclesiais são também formas de lutar plantando a semente da justiça no coração dessas pessoas.

Tenho duas grandes lutas pessoais: superar o trauma do moralismo católico distorcido que por tanto tempo determinou minha forma de enxergar o mundo e de tomar decisões para a minha vida pessoal, e aprender a viver com a tensão de ser católica, mas, por grande parte do tempo, não me sentir católica devido à institucionalização do catolicismo. Ambas essas questões eu já venho enfrentando através da terapia e do cultivo de relacionamentos saudáveis com pessoas que também se encontram nessas encruzilhadas. Nos próximos anos, desejo potencializar ainda mais minhas próprias superações pessoais através de experiências comunitárias, para assim inspirar outras pessoas a entrarem em processos de libertação.

Conservadorismo

Confesso que a única coisa que me vem à cabeça ao comentar sobre o conservadorismo religioso é angústia e frustração. Essas tendências conservadoras – pior, fundamentalistas – na Igreja Católica desvirtuam toda a essência do cristianismo. É muita incoerência seguir defendendo certas pautas e posicionamentos que afetam diretamente os direitos das pessoas. No fundo, essas tendências que tanto criticam as “ideologias” que “atacam” a fé cristã são elas mesmas uma ideologia de um cristianismo desencarnado, moralista e não-misericordioso.

Nas várias religiões que existem, conheço pessoas que lutam ativamente pelos direitos humanos e ajudam a construir uma sociedade mais justa. Há muitas lideranças religiosas históricas que foram importantes para as lutas sociais de base. Por outro lado, as religiões enquanto instituições, historicamente apoiaram processos políticos e sociais que abusaram dos direitos humanos. O que me conforta e me ajuda a seguir caminhando como resistência dentro da Igreja Católica é saber que existem várias pessoas cristãs e de outras religiões que estão juntas na caminhada por um mundo mais justo.

Religião e democracia

Eu entro um pouco em crise quando tento refletir sobre a democracia. Por mais que eu acredite que a democracia é teoricamente a melhor solução que encontramos como sociedade “civilizada”, ao mesmo tempo, na prática, ela está ainda longe de ser a melhor para todas, todos e todes. Uma parcela do problema é justamente o fato de ser um modelo que já parte de uma noção de sociedade “civilizada”, sob as influências de uma visão de mundo ocidentalizada branca europeia.

Quando olho para minhas experiências mais próximas aos povos indígenas, por exemplo, percebo as possibilidades de outros sistemas de organização social e política, que surgem e acontecem graças a uma cosmovisão, ou cosmovivência, holística e profunda. Digo tudo isso porque vejo a luta pela democracia como algo necessário, mas, ao mesmo tempo, que deve continuamente ser questionada para pensarmos em outros modelos políticos e outras formas de organização como sociedade.

Religião e democracia devem caminhar juntas, com a necessidade de que haja a maior representatividade possível da diversidade que é o mundo religioso, mas os processos democráticos continuam longe dessa pluralidade. É importante pensar mais fora da caixinha, a partir da sabedoria dos povos originários e de suas formas de viver a espiritualidade, que permeiam todas as outras dimensões da convivência comunitária.

Notas:
1. www.tempodacriacao.org

TEXTO

Suzana Regina Moreira

Formada em Teologia e Mestrado em Teologia Sistemático Pastoral, pela PUC Rio, atua como gerente de programas para conversão ecológica do Movimento Laudato Si, em nível global

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