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Priscilla dos Reis Ribeiro: Ancestralidade, luta indígena, feminismo e território

"Ancestralidade e luta por território marcam uma resistência que renasce sempre que nos enraizamos", diz a ecoteóloga na série Ativismos e Democracia da Revista Tuíra #4

Ancestralidade

Sempre esteve presente na história de minha família a “lenda” de uma antepassada indígena da qual ninguém se recorda do nome e que foi “pega a laço” para ser trazida para a fazenda dos meus antepassados. Eu-menina, cabeça cheia de criatividade, olhos cheios de poesia e alma encharcada de música, me pegava pensando em como seria essa mulher, se seria verdade esse “causo”, qual seria seu nome. Pois bem, a passagem do tempo que nos arrasta consigo, me fez desejar, na vida adulta, cavar essa narrativa e retirar de sob os escombros da branquitude essa mulher da qual herdei os longos cabelos lisos e negros como a noite sem luar, o rosto redondo e os olhos também negros, puxadinhos que se fecham quando sorrio.

Na travessia iniciada em busca de minha própria autoetnografia, me deparei com a ancestralidade tupinambá que, de tão visceral, reposicionou tudo dentro de mim, especialmente o entendimento de quem sou, dos ciclos da vida e das relações com a coletividade. Abrir os olhos para perceber os atravessamentos da minha história na vivência diária do meu corpo-território, e como isso transborda para o emaranhado do corpo social, e como está enraizado no corpo da terra, me fazendo renascer. Não porque antes eu estivesse desconectada de mim ou alheia a minha espiritualidade, mas sim porque me apresentou outras formas de ser na vida, outros mundos possíveis onde desejo habitar e a Terra sem Males onde desejo pôr os pés ainda nessa vida.

A luta abraçada

Partindo em busca de mim mesma, surpreendi-me ao encontrar os outros. Apaixonei-me pela pele cor de terra, pelos sorrisos, pela nossa língua-mãe que nos foi negada em meio aos epistemicídios coloniais que seguimos sofrendo – prova disso é que ainda hoje continuamos a nos comunicar na língua do colonizador, imposta violentamente. Você que me lê agora assim o faz pela instrumentalidade de uma língua europeia, alienígena ao nosso chão, não originária. Deslumbrei-me pelos povos originários desse território que hoje chamamos Brasil, mas que já foi Pindorama, “terra das palmeiras”, parte imensa e importantíssima de Abya Yala, nossa mátria latinoamérica, chão dos mil povos. Meu coração foi tocado e meu corpo se reconectou irremediavelmente ao Nhandereko (modo de vida Guarani): renasci na Opy (casa de reza) sob a fumaça que transcende e conduz a Nhanderu Ete e compreendi que a causa indígena é parte de nosso DNA histórico – não se pode relegá-la ao esquecimento.

Memória, justiça e território

O direito à memória caminha junto com o direito à justiça e por isso, o fato de ter meus sentimentos profundamente tocados pelos indígenas e ter sido adotada como filha pelos Guarani Mbya, que me deram o poético e simbólico nome de Para Poty, xondaria da Tekoa Ka’aguy Hovy Porã (Aldeia Mata Verde Bonita em Maricá, Rio de Janeiro) , me impulsionou à luta por políticas públicas que tornassem a vida daquela comunidade mais digna. É fato que a nossa Constituição de 1988 nos artigos 231 e 232 garante às populações indígenas os direitos inerentes à cidadania no estado democrático de direito, mas é sabido também que em nosso Congresso por anos a fio, mesmo após a democratização, as necessidades desses povos foram relegadas ao silenciamento conivente de quem deveria lutar pelo estabelecimento efetivo da lei.

Dessa forma, minha entrada no processo de retomada indígena ancestral (etnogênese) e meu retorno à universidade, para aprofundar meus conhecimentos nas epistemes que nos compõem como nação, veio acompanhado do engajamento político que busca operar ações afirmativas nos territórios indígenas. Sabemos que a palavra “território” denota mais do que terra: é o lugar dos afetos, das pertenças, das memórias coletivas. É o ente que imprime em nós relação real de parentesco com a montanha que nos aconselha em seu majestoso existir, o rio que nos lava as lágrimas, as árvores que nos embalam nas suas sombras frescas. É a localização no mundo de onde nosso umbigo está plantado, onde nosso amor floresce, onde nossos olhos se enchem de mar.

Chão e lugar

O bioma que nos pariu é quem identifica nossa subjetividade, pois o carregamos no corpo e na alma – eu trago para essas palavras os verdes múltiplos da Mata Atlântica e o azul celestial da Baía de Guanabara, pois sou do Rio de Janeiro e ele é parte de mim. E quanto a você? Qual dos seis biomas que temos em nosso território exerce guiança aos seus passos de caminhante nessa vida? Será o amazônico, o da Caatinga? Você é filhote do Cerrado, da Mata Atlântica como eu, do Pampa ou do Pantanal? O que a vegetação, os animais, o clima desses lugares dizem sobre você, sobre a cartografia afetiva do seu corpo-mapa, corpo-território, jeito-de-ser-no-mundo?

Repare: por mais que não tenhamos consciência disso, não sabemos ser gente à parte dos nossos territórios. O lugar de onde viemos imprime em nossos corpos marcas e estabelece conexões que nos seguirão (ou guiarão) por toda vida, definindo nosso jeito de comer, vestir, gastar nossos recursos, morar e até amar. Por isso é fundamental nos empenharmos no processo de solucionar seus problemas mais elementares como alimentação, moradia, saúde, educação e cultura. Em outras palavras, a bandeira da justiça social deve tremular alta no mastro da democracia verdadeira que queremos para o nosso país, dentre outras questões urgentes.

Juntar na luta

Não digo com isso que precisamos inventar a roda. Pelo contrário!  Há muito que podemos fazer para somar a luta de quem já está atuando: usemos nossas redes sociais para dar visibilidade ao que já está sendo feito de bom; nos tornemos voluntários de coletivos que estão atuando com o pé no chão e o sonho em flor;  façamos micropolítica nos ambientes onde circulamos, para reflorestar mentes, modificando mentalidades em prol do sonho comum do bem viver. Yvy Maraey, a Terra sem Males das narrativas ancestrais do povo Guarani, é lugar onde podemos chegar ainda em vida e lá haverá alimento farto para todos, nossos ancestrais dançarão conosco, doenças serão abolidas, pois finalmente teremos paz, terra e território. Que sonho bonito esse! Que sonho possível se estivermos juntos, de braços dados, engajados na vontade que move a força da vida!

Convite

Digo a você que me lê o seguinte. De uma coisa estou muito certa: assumir as pautas indígenas é uma das causas pelas quais vale a pena lutar. Permitir que a vida se desdobre sob a guiança da luta por memória e justiça, pela beleza de dias desfrutados coletivamente, pela soberania alimentar, pela preservação da grande teia da vida, pelas redes de afeto e confiança que podemos tecer juntos. Por todos e todas que vieram antes de nós e impregnaram o chão de nossa terra com o sangue da luta e da resistência, que deixaram seus saberes através dos encantados, pelos que preservam a pedagogia das folhas e das plantas mestras para os que hoje aprendem e multiplicam conhecimento de maneira orgânica na educação popular. Sim, por toda gente que luta amorosamente por dias mais fraternos e pacíficos, eu te convido: vamos juntos?

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