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Ativismo ancestral: identidade, autocuidado e educação são bases da resistência das mulheres quilombolas

Beleza, gênero e raça, os modos de vida e o afeto dentro dos territórios quilombolas são partes importantes da resistência

Mulheres quilombolas no Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas da CONAQ em Brasília em junho de 2023 

Foto: Letícia Queiroz

Por séculos a “estética branca” determinou os padrões de beleza em praticamente todo o mundo, enquanto o racismo estrutural reduzia as chances de pessoas negras se sentirem bonitas e de alcançarem uma autoestima plena. Com o passar dos anos, as mulheres negras e quilombolas dentro dos seus territórios e dos movimentos sociais consolidaram redes para fortalecer a identidade e reafirmar orgulho pela negritude. Apesar das violações de direitos que ainda afetam os quilombos, o ativismo ancestral acendeu uma nova geração: a de mulheres e meninas quilombolas empoderadas e orgulhosas da aparência e da identidade ancestral. 

E é exatamente assim que se sente a jovem Lorena Bezerra, 20 anos. Quilombola da comunidade Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE), a modelo e estudante de psicologia nasceu e cresceu em um quilombo com lideranças femininas. Desde a infância a jovem acompanha reuniões e ações que discutem questões que afetam a vida das mulheres. Ela conta que o modo de vida contribuiu para sua autoestima. 

“Cresci me achando linda graças às mulheres do meu quilombo, à luta do movimento quilombola e à construção matriarcal da minha comunidade. Tenho uma avó preta, minha mãe é preta, minhas tias são pretas e eu também sou uma mulher preta de cabelo crespo. Em nenhum momento da vida fui ensinada que eu teria que me adequar aos espaços. Pelo contrário. Eu cresci ouvindo que os espaços teriam que se adequar à minha presença e a tudo que sou, desde o meu tom de pele a todas as formas que gosto de usar meu cabelo. O amor próprio se constrói e, como eu cresci nesse processo, sempre fui instigada a me amar. Por isso conquistei a minha autoestima muito cedo”, disse Lorena.  

Sinônimo de resistência negra, os quilombos são historicamente locais onde as pessoas escravizadas se refugiavam e resgatavam suas origens africanas. As comunidades quilombolas são fruto das heróicas resistências ao modelo escravagista e opressor instaurado no Brasil Colônia. 

Lideranças quilombolas afirmam que não existe luta quilombola sem a participação das mulheres. Os territórios são femininos e é possível afirmar que a autoestima das quilombolas parte de um lugar particular. A autoconfiança conquistada ao longo de décadas, desde o fim da escravização negra, é fruto da resistência e da influência dos modos de vida, do afeto e do cuidado das mais velhas com as mais novas. Um comportamento que tem atravessado territórios e gerações. 

“Desde muito pequena as minhas referências em beleza estavam todas dentro da minha comunidade, perto de mim. Eu via as mulheres, achava todas lindas e falava: ‘quando eu crescer quero ser igual a elas’. Aprendi a usar turbante, me ensinaram a deixar meu cabelo armado e hoje escuto as meninas falando que quando crescerem querem ser iguais a mim. Agora é a minha vez de fazer esse diálogo com as crianças, porque elas estão enxergando em mim uma referência em beleza”, disse Lorena que é adepta de adereços e maquiagens coloridas. 

Liberdade estética

“Cresci me achando linda graças às mulheres do meu quilombo, à luta do movimento quilombola e à construção matriarcal da minha comunidade”, diz Lorena 

Foto: Reprodução

A cor da pele, a textura do cabelo e outros traços físicos, principalmente do nariz e boca, são as principais características percebidas nas pessoas negras. Muito mais que beleza e estilo, para as mulheres quilombolas o cabelo crespo carrega uma história e está ligado à ancestralidade. Dentro de alguns quilombos, os cabelos são considerados símbolos políticos de resistência contra-hegemônica.

Para Lorena Bezerra, o cabelo tem uma importância ancestral. Amante das tranças, turbantes, blackpower, apliques, cabelo natural, com ou sem definição, Lorena Bezerra gosta de mudar o visual com frequência. 

“Eu mudo de cabelo sempre e sempre me encontro. Sinto uma liberdade muito grande ao mudar. Ao mesmo tempo que sou desapegada, tenho muito cuidado e apego por conta da minha questão ancestral. Tem toda uma simbologia por trás. Tocar na fibra do meu cabelo é tocar na minha ancestralidade”, disse Lorena. 

No quilombo Acre, em Cururupu (MA), a trancista quilombola, fisioterapeuta e comunicadora popular Wynnie Andreza Gomes, 27 anos, sempre esteve rodeada de mulheres. Ainda criança tinha os cabelos cuidados e trançados pelas tias. O costume a fez crescer amando a forma e a textura dos fios. 

“A influência da minha família e o fato de ter vivido dentro do movimento negro contribuiu muito para o fortalecimento da minha autoestima. Sempre tive uma grande representatividade das mulheres do quilombo que, desde sempre, tinham essa cultura de usar tranças e o cabelo natural. Naquele tempo as tranças não eram populares como atualmente e, mesmo vivenciando o preconceito na escola por usar tranças e por ter o cabelo que não “voava”, eu nunca me abalei. Foi trabalhado desde sempre em mim que o meu cabelo, crespo ou feito tranças, era bonito”, afirmou. 

Entre a infância e a adolescência, Wynnie também aprendeu a trançar e começou a fazer tranças no próprio cabelo e nas outras meninas do quilombo. Aos 17 anos a jovem tornou-se trancista profissional e passou a trabalhar resgatando a autoestima de outras mulheres negras.  Para ela, não há sensação melhor do que a de ver as clientes felizes com a aparência. 

“Ver as mulheres chegando inseguras e saindo confiantes, realizadas e felizes com o resultado não tem preço. É muito prazeroso elevar a autoestima de uma mulher negra e vê-la se sentir empoderada. Hoje já vemos a aceitação do cabelo crespo e as tranças são uma ótima opção para quem ainda está deixando de alisar os cabelos”, afirmou Wynnie.

Indo contra a imposição de alisamento, o cabelo black power carrega uma história ligada ao movimento negro. Utilizado por homens e mulheres, o cabelo volumoso e com formato arredondado virou símbolo de identidade e resistência na década de 1960, quando se popularizou. Na época, integrantes do Panteras Negras – grupo que surgiu com a pauta de combate à violência policial contra negros e defendia o lema ‘Black Power’ (Poder Preto, em tradução livre) – traziam a discussão estética sobre o padrão de beleza eurocêntrico. 

O pente garfo é muito utilizado para manter o cabelo black power, porém o item não é encontrado com facilidade como outros acessórios usados para pentear cabelos com outras texturas. 

Em paralelo às discussões antirracistas envolvendo cabelos, os debates sobre a transição capilar – procedimento que resgata a textura natural dos cabelos – e valorização de cabelos crespos e cacheados têm crescido nos últimos anos. Mas é importante destacar que o uso do cabelo natural não deve ser uma obrigação ou imposição entre as mulheres negras e quilombolas. As mulheres são livres e nesse ponto o que vale é o livre arbítrio. 

“Resistir para existir!”

“É muito prazeroso elevar a autoestima de uma mulher negra e vê-la se sentir empoderada”, diz Wynnie 

Foto: Reprodução

Muitas questões como a falta de políticas públicas, desigualdades e violações diversas afetam os territórios quilombolas e impactam na autoestima das mulheres. E foi para resistir e combater essas violências que nasceu o Coletivo de Mulheres Quilombolas da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) – organização de âmbito nacional, sem fins lucrativos que representa a grande maioria da população quilombola do Brasil. 

A jornalista e ativista Maryellen Crisóstomo, 31 anos, quilombola do território Baião, Almas (TO), é integrante do Coletivo e explicou que o grupo de ativistas atua no fortalecimento das mulheres quilombolas em suas múltiplas faces. O coletivo já está em sua segunda década de organização.

“Essa rede de autocuidado se dá por meio de escutas, encontros e valorização da nossa identidade. Nos nossos encontros são destinados momentos de lazer, momentos de registros fotográficos profissionais, além de incentivos e trocas de autocuidado focando no bem-estar e autoestima”, disse Maryellen. 

Em 2022 o coletivo lançou um livro de bolso com escritas sobre as mulheres quilombolas e em 2023 o grupo organizou um Encontro Nacional que reuniu mais de 300 mulheres quilombolas de 24 estados e de todos os biomas brasileiros.

A ativista quilombola disse que muito se avançou com o passar dos anos, inclusive a visibilidade do protagonismo das mulheres quilombolas em várias frentes. “O lema do Coletivo de Mulheres Quilombolas da CONAQ é “Resistir para Existir”. Tudo o que alcançamos e almejamos é forjado na luta, nas disputas de narrativas, sobretudo no merecimento. Sobre evolução não há dúvidas. Estamos cada dia mais fortalecidas”. 

Apesar das discussões sobre o racismo terem se ampliado nos últimos anos, Maryellen afirma que a população brasileira ainda tem muito que avançar no quesito respeito sobre a diversidade dos corpos.

“A população negra resiste a uma série de violações e o nosso cabelo sempre foi alvo de parte dessas violações. Eu, por exemplo, fiz uso de química por 20 anos porque sempre ouvi que ficaria bom e mais fácil de cuidar. Minha geração e as gerações anteriores sofreram essa violência. Não tínhamos referências e nem tinha produtos específicos. Eu não pude escolher o meu cabelo natural aos oito anos”, lembra. 

Ao falar sobre os desafios da representatividade negra na mídia e na indústria dos cosméticos, a ativista afirmou que houve mudança significativa por causa da luta de mulheres negras. 

“Isso com certeza isso impacta não somente em nosso modo de nos ver, mas, também em como nos veem. A mesma sociedade que dizia que tínhamos que relaxar o cabelo para ficar “bom e bonito”, passou a ver nossos cabelos em texturas reais nas propagandas. A última década tem muito mais representatividade negra na mídia, se pensamos em padrões é a mídia que dita. Há mais crianças nesses locais com seus cabelos naturais. Foi também na última década que tivemos a primeira telenovela com um elenco 70% negro [Vai na Fé] nos espaços mais importantes da trama. As crianças atualmente se vêem mais representadas”, finalizou Maryellen.

“Resistir para existir!”

“A população negra resiste a uma série de violações e o nosso cabelo sempre foi alvo de parte dessas violações”, diz Maryellen 

Foto: Reprodução

O diálogo é essencial para a naturalização da autoestima quilombola desde a infância e a educação antirracista é vista pelo movimento como um dos principais mecanismos para enfrentar o racismo estrutural. É dentro da escola, ainda na educação infantil, que as crianças interagem com outras pessoas de fora do círculo familiar, são incentivadas a refletirem sobre diferentes temas e desenvolvem o senso crítico. 

Com a falta de escolas dentro dos territórios, muitas crianças precisam estudar em unidades escolares comuns, que não abordam a questão racial mesmo após a Lei 10.639/2003 tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira.

As Escolas Quilombolas, como a que existe dentro do Quilombo Conceição das Crioulas, ainda devem garantir a implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Nesse caso, nas salas de aula as crianças quilombolas devem contar com uma educação diferenciada, que valorize as práticas do cotidiano dos quilombolas e respeite as especificidades étnico- raciais e culturais de cada comunidade.

É importante que as escolas e profissionais da educação se engajem para combater o racismo estrutural desde a infância com as crianças de todas as cores e raças.

Paralelamente, projetos criados para fortalecer o movimento quilombola trabalham a questão racial e o empoderamento entre estudantes. A Escola Nacional de Formação de Meninas Quilombolas, projeto da CONAQ apoiado pelo Fundo Malala, trabalha diversos temas com jovens quilombolas de todas as regiões do Brasil. O projeto tem encontros virtuais e funciona como um espaço de estímulo e de luta para meninas que enfrentam diversas desigualdades. Juntamente com lideranças quilombolas, as estudantes participam de discussões sobre questões de gênero, combate ao racismo, engajamento na luta política do movimento quilombola, entre outros assuntos.

“A identidade quilombola é constituída dentro do quilombo. O problema é quando saímos e nossos modos são questionados e ridicularizados. Uma criança não tem maturidade para contrapor, sobretudo em um cenário onde não havia referências. Atualmente com os avanços nas discussões sobre a importância dos corpos negros e suas diversidades e a presenças desses nos espaços de exposição da beleza, serve como retaguarda para as crianças e sobretudo, para que os olhares sobre nós sejam menos invasivos e violentos”, afirmou Maryellen Crisóstomo. 

TEXTO

Letícia Queiroz

Jornalista, quilombola, comunicadora popular e ativista antirracista

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