Laurinda Gouvea
Introdução
No continente africano, o século 21 tem sido tempo de levantes. Não só: emergiram lá mais levantes do que em qualquer outra parte do mundo, em particular os movimentos de massa não violentos.[1] Em alguns países, como Tunísia e, mais recentemente, Sudão e Argélia, o poder popular desalojou chefes de Estado que há décadas se recusavam a sair. Em outros, como Uganda, Zimbábue e Quênia, as ações diretas, campanhas e mobilizações comunitárias têm ganhado um sopro de criatividade e tenacidade.
1 Erica Chenoweth, Zoe Marks e Jide Okeke. People Power Is Rising in Africa: How Protest Movements Are Succeeding Where Even Global Arrest Warrants Can’t. Foreign Affairs, 25 de abril de 2019. Na última década, a África liderou a emergência movimentos de massa não violentos (25), seguida pela Ásia (16).
Angola, com a qual compartilhamos o passado de colonização portuguesa, também viu o curso de sua história mudar pela força do ativismo. Após viver em primeira mão a insurgência contra o ex-ditador José Eduardo dos Santos – e sofrer no corpo a represália à luta – a ativista Laurinda Gouveia, hoje com 29 anos, relata a jornada dos jovens “revús”.[2]
2 Nome pelo qual ficaram conhecidos os jovens ativistas angolanos que se empenharam na luta contra o regime.
Angola está situada na parte austral ocidental de África. É um dos países mais ricos do continente devido aos seus recursos minerais e naturais. Em 1482, Angola foi colonizada pelos portugueses. Sofreu tortura e escravatura. Eles entraram de forma fria e dominaram todo o território. Acabaram por ter sua posse da terra confirmada na partilha da Conferência de Berlim, de 1884 a 1885. Apesar de termos lutado pela independência com catanas [3] dos colonos deixarem fisicamente Angola, espiritualmente o colono ficou e domina ainda a nossa terra. Os três partidos, MPLA, Unita e FNLA, [4] proclamaram a independência no dia 11 de novembro de 1975, mas logo depois instauraram a guerra por ganância e ambição do poder, apoiados pelo ocidente. Muitos filhos de Angola perderam a vida [5] no conflito, que teve fim com a morte de Jonas Savimbi, em 2002.
3 Facões.
4 MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Unita (União Nacional Para a Independência Total de Angola) e FNLA (Frente Nacional de Libertação do Leste) foram os três principais movimentos a se engajarem na luta anticolonial em Angola nos anos 1960-70. Posteriormente, entraram em guerra civil pelo poder – em boa parte, um conflito “por procuração” que envolvia China, União Soviética, Cuba, EUA e África do Sul. Com a proclamação da independência em 1975, o MPLA passou a controlar o aparato estatal, sendo militar e politicamente desafiado pela Unita até 2002. A FNLA entrou em declínio militar nos anos 1970. Hoje, os três movimentos operam como partidos em Angola, embora o MPLA permaneça hegemônico.
5 As estimativas do número de mortos na Guerra Civil de Angola variam muito, indo de 500 mil a 2 milhões.
O feito da guerra foi tão forte que até hoje continuamos a vivenciá-la: o MPLA agarra-se com ganância ao poder desde então e mantém o povo refém da sua ditadura, sendo autor de vários massacres que ceifaram a vida de milhares de angolanos e angolanas. O mais marcante deles foi em 27 de maio de 1977 [6]. Levantaram-se, nessa data, pessoas que não aceitavam a forma como o MPLA estava a conduzir o país. Foram perseguidas, sequestradas e mortas pelo partido, que simulou um golpe de estado. Até hoje o governo não se responsabiliza nem entrega os cadáveres aos familiares. Cada um de nós tem um familiar ou conhecido que passou por esse facto [7] histórico. Esse massacre marcou as nossas histórias e mentes enquanto jovens e hoje representa momento de reflexão e protesto. Por outro lado, ele inibe os nossos familiares e amigos que viveram direta ou indiretamente aquele momento e temem que o mesmo venha a acontecer connosco.
6 Um dos episódios mais polêmicos, controversos e violentos da história angolana recente.
7 O leitor e a leitora encontrarão neste texto a grafia do português angolano. Angola não aderiu ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa ratificado em 1990 por Portugal, Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. No entanto, em 2019, o país inaugurou uma Comissão Multissetorial que discute a possibilidade de adesão pelos próximos cinco anos.
O activismo em Angola surge da situação adversa que o país enfrentou e enfrenta em quase todos os níveis – social, político, económico e de direitos humanos – por culpa de um grupo que tomou a hegemonia no país, como coisa privada e particular, que não se responsabiliza pelo estrago que vem causando nos 45 anos desde a independência. Perdemos a nossa história, nossas línguas, passamos a adorar o vazio, ficamos presos às tradições alheias, continuamos escravos sem direito a opinião. Não produzimos, vivemos presos aos estrangeiros, o nosso governo não aposta no cidadão e a mulher não tem voz, sem capacidade de encontrar a verdadeira liberdade. O povo continua sob o martírio da pobreza extrema, vivendo diariamente à custa de um dólar. Sofremos com a falta de respeito aos direitos dos cidadãos e cidadãs, enquanto o Estado e as políticas governamentais fecham os olhos de estrangeiros que não vivem a realidade deste triste país. Nepotismo, corrupção, impunidade, eleições fraudulentas, perseguição e morte de quem pensa diferente. Perfume de neocolonialismo, fantasma de guerra e regresso ao partido único.
O RENASCER DO ACTIVISMO EM ANGOLA
O nosso activismo emergiu neste contexto, com todas as lutas que alguns mais velhos começaram. Exigíamos saúde de qualidade, liberdade de expressão, educação e igualdade de tratamento. Mas o desafio maior que nos propusemos era remover José Eduardo dos Santos do poder, onde estava havia mais de 32 anos.
Não éramos os primeiros a confrontá-lo diretamente. Já existiam na sociedade civil personalidades como Makuta Konde, William Nome, Rafael Marques, o deputado Mfulupimga Nlando Victor e o jornalista Ricardo de Melo, os dois últimos mortos por falarem a verdade acerca de como estava a ser conduzido de forma errada o país. Nós próprios acreditávamos que não estaríamos vivos nos próximos 10 anos devido às mensagens que nossos familiares recebiam para impedir nossa luta pela liberdade. Mas, para nós, havia coisas mais importantes do que a vida: a nossa nação, a mudança. Uma Angola com hospitais, escolas, água e luz eficiente para todos os cidadãos, como direito e não esmola do governo.
Com ajuda das redes sociais e a coragem da juventude, começamos em 2011 uma campanha: “32 é muito. Fora, Zédu”. [8] A campanha era fortemente impulsionada por um “fantasma” com o nome Jonas Roberto, que até hoje não sabemos quem é além de alguém do Facebook. Alguns activistas, tempos depois, fizeram-se passar por ele, mas foram desmontados pela falsa argumentação. Ainda assim, os discursos de Jonas Roberto possuíam uma sustentabilidade e convicção de alguém que conhecia bem o sistema apodrecido em que estávamos inseridos.
8 Em alusão ao número de anos em que José Eduardo dos Santos estava, à época, no poder em Angola.
Eu apercebi-me da campanha em um show de hip hop em fevereiro de 2011, em que os músicos Ikonoclasta (Luaty Beirão) e Edu ZP a anunciaram. Antes disso, eu não sabia o que era uma manifestação de rua propriamente dita. Somente via manifestações religiosas e dos partidos políticos, algumas em apoio ao ditador José Eduardo dos Santos. Por outro lado, também estavam a acontecer manifestações em outras partes de África, como Egito e Líbia, e estes acontecimentos nos motivavam. As ditaduras que estavam a ser derrubadas não eram diferentes da de Angola.
No dia 7 de março de 2011, a uma hora da madrugada, aconteceu o primeiro protesto no Largo Primeiro de Maio. Os que apareceram, incluindo o próprio Luaty Beirão, acabaram por ser presos. A televisão pública dizia que os jovens estavam presos porque estavam a se fazer passar por manifestantes religiosos. Só depois acabei por confirmar que aquela informação era falsa, e que os manifestantes reivindicavam a destituição do presidente. Ainda não havia como tal um grupo organizado. Os que lá estiveram ouviram e aceitaram o apelo do Jonas Roberto. Mas, depois daquela primeira manifestação, constituiu-se automaticamente um coletivo que tratava das propagandas e actividades do então “movimento revolucionário”, nome dado pela mídia. Eu passei a fazer parte do grupo organizativo em 2013.
Os protestos aconteciam no mesmo local. Cada um aparecia com um sentido patriótico muito forte. Queríamos uma Angola melhor, sem José Eduardo. As manifestações eram divulgadas nas redes sociais ou nos eventos de hip hop que aconteciam na periferia. A internet foi a nossa mídia e única ferramenta, uma vez que a televisão pública não transmitia nada contra o presidente. Fazíamos vídeos, fotos e anúncios das nossas actividades para cativar as pessoas para aparecerem em massa. Usar a imagem do presidente de forma ridicularizada como protesto contra a má governação era uma coisa nova por parte da juventude. Sua imagem era usada nas igrejas e em marchas para adoração do “Santos”, mas nós, a juventude, decidimos mostrar seu verdadeiro rosto: o diabo que alimentava o inferno em Angola.
BARREIRAS: AS MANOBRAS DE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS
“Quem são os jovens manifestantes em Angola? São uns 300 jovens frustrados, que não tiveram sucesso escolar, que dizem estar descontentes com a minha governação”, disse José Eduardo dos Santos em grande entrevista na rede portuguesa SIC (Sociedade Independente de Comunicação) em 2012. A má propaganda pela parte do governo fazia com que o povo pensasse que nós éramos pessoas do mal. O MPLA controlava os canais públicos e nós não tínhamos os canais de televisão, nem as rádios nacionais, nem as igrejas como nossos aliados; todos eram usados como propaganda política para o partido que tinha o poder de controlar tudo no país. Outra dificuldade era que nem todos tinham acesso à internet, onde fazíamos a nossa propaganda e cidadania, na qual incentivávamos o povo a agir contra o mal do país através de manifestações pacíficas.
O partido tinha como aliados também os policiais nacionais, a quem usavam para nos ameaçar e meter medo em nossas famílias. Uma das vítimas da represália foi Kalupeteka, um jovem e carismático pastor que liderava a seita Luz do Mundo. Após recusarem-se a fazer propaganda política para o presidente, Kalupeteka e seus seguidores foram vítimas de uma emboscada pela polícia, que cometeu um massacre que matou mais de 100 velhos, jovens, mulheres e crianças. Os que conseguiram ali escapar foram perseguidos. A prisão e tortura do líder e, pouco depois, a sua condenação a 28 anos – uma pena que sequer consta no código penal, e maior do que o tempo máximo permitido por lei – tiveram repercussão na mídia tradicional e nas redes sociais. A lei angolana tem dono, e esse dono é o partido político do momento que está no poder para sempre.
Em 2011 e 2012 houve nas manifestações muitas torturas, espancamentos e perseguição. É o caso de Filomeno Vieira Lopes, espancado pela milícia de Bento Kangamba, marido da sobrinha de José Eduardo dos Santos, empresário da juventude e representante do MPLA. A Luaty Beirão lhe quebraram o braço de tanta surra na manifestação do dia 10 de março de 2012, no marco histórico do Cazenga, exigindo melhores condições básicas para aquele município. Já Mbanza Hamza, Carbono Casimiro e Manuel Gaspar foram surpreendidos por agentes da bófia [9] na casa de um dos activistas aonde estavam reunidos para arquitetar actividades posteriores. As prisões eram intensas e consecutivas. O governo fazia de tudo para que os activistas desistissem da sua luta por um melhor país.
9 Nome pejorativo para a polícia e seus agentes.
O ponto mais relevante destes dois anos foi a morte de dois activistas, Isaías Cassule e Alves Camulingue, que eram funcionários da Guarda Civil. O presidente da República, por um despacho, decidiu despedir mais de 1000 pessoas. Cassule e Camulingue lideravam o grupo de funcionários desmobilizados. Reivindicavam apenas os seus salários, subsídios e indemnização. Isto foi suficiente para serem mortos da forma mais cruel: foram raptados e levados a um local incerto quando estavam a preparar uma manifestação, e a ideia que se tem é que os mesmos foram esquartejados e os seus corpos atirados aos jacarés. Até então os seus familiares não tiveram a possibilidade de fazer um funeral condigno uma vez que os corpos não aparecem. Em 2013 é morto o jovem Manuel Hilberto Ganga, militante da Casa-CE, [10] enquanto estava a colar panfletos nas mediações do palácio um dia antes da megamanifestação organizada pelo partido Unita – justamente no intuito de exigir ao governo que se explicasse e mostrasse os ossos de Cassule e Kamulingue. Atirou a queima-roupa um dos guardas do Presidente da República.
10 Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral, um coligação formada por partidos e detentora de 16 assentos no Congresso angolano.
Os familiares queriam obrigar-nos a não nos envolvermos, temendo as armaduras do regime. Alguns decidiram mesmo desistir e mudaram de rumo; não queriam saber mais do ser activista ou cidadão consciente. Uns preferiram exilar-se e outros foram estudar no estrangeiro. Muitos desistiam da causa por medo do que poderia acontecer aos seus familiares. Outros, porque eram ameaçados de ficarem sem os seus empregos. Sempre pensei que sair ou desistir da luta não seria a solução, porque a realidade em si não compensa. Sabia que poderia morrer, mas seria para mim uma morte digna porque era por uma causa justa – uma Angola melhor para os angolanos e angolanas.
Época de grande baixa do activismo foi em 2013 a 2014, devido às perseguições e morte daqueles que se manifestavam. Alguns foram subordinados e receberam dinheiro para instaurar o caos no grupo. Com a baixa presença nas ruas, mudamos de estratégia. Como não havia meios do partido no poder controlar o Facebook, passamos a usar as redes sociais para relatar as situações graves que nos aconteciam, como as prisões ilegais e injustas feitas por parte da Polícia Nacional. Entre nós havia repórteres, fotógrafos e editores que recolhiam as peças. Os acontecimentos eram lançados aos 2.000 seguidores da nossa página, Central Angola 3711, e depois partilhados entre todos.
Também usávamos as redes sociais para educar a juventude a serem bons cidadãos e terem força para querer um país melhor, mostrando grandes figuras da revolução mundial que nos inspiravam por sua força, bravura, audácia e coragem, como Martin Luther King, Steven Biko, Nelson Mandela, Malcolm X e Jesus Cristo. Usávamos o chat para estudar e criar ideias. Foram as redes sociais que nos ajudaram ir em frente com a nossa luta. A juventude, apesar de na rua não querer contacto com os activistas, nas redes sociais era nossa seguidora e nos apoiava.
A ajuda de pessoas e organizações que estavam no exterior também nos tornava mais seguros para continuar. Tivemos o apoio de organizações internacionais como Amnistia Internacional e Human Rights Watch, que davam visibilidade para as violências que os manifestantes sofriam no exercício dos seus direitos constitucionais. Havia também cidadãos da diáspora que apoiavam as manifestações como um exercício de cidadania.
Já em Angola, tínhamos como apoiadores muitos agentes do governo que não podiam ir efetivamente contra o sistema político: estavam infelizes com a forma como o ditador estava a levar o país, mas nada poderiam falar nem dizer, sob pena de serem mortos ou perderem seu sustento.
Uma vez que toda manifestação era sabotada pelo governo ao receber o aviso prévio, optamos pelas manifestações-surpresa, ou espontâneas. Não avisávamos as autoridades para não lhes dar oportunidade de se prepararem. Chegávamos no local com 15 a 30 minutos de antecedência, enviávamos uma foto na Central Angola 7311 e, caso a policia aparecesse, a imagem já havia circulado. Caso acontecesse algo, todo mundo já sabia quem te fez mal e por qual motivo.
O DITADOR TENTA SILENCIAR NOSSA GERAÇÃO
Foi no final de 2014 que o regime ditatorial quis me matar. Fui raptada e torturada em 23 de novembro, quando pretendíamos nos manifestar pelo segundo dia seguido, exigindo a destituição do José Eduardo dos Santos do cargo de presidente. Nesse dia eu estava como repórter cívica, com a responsabilidade de reportar a manifestação e toda anomalia que pudesse ocorrer por parte da polícia. Quando reportava uma agressão que os meus colegas estavam a passar, fui surpreendida por um agente da bófia, que me esbofeteava, e de repente aproximaram-se quatro agentes da Polícia Nacional cuja patente dava a entender que eram comandantes. Pegaram-me pelos cabelos e arrastaram-me pelo asfalto para me meter no carro. Estando no carro, disseram que estavam a me levar para a esquadra. Mas isso não aconteceu. Levaram-me para um lugar sem movimento de pessoas onde, com porretes eléctricos, paus e ferros, submeteram-me a tortura durante quatro horas. Enquanto espancavam-me, estavam a filmar e perguntar quem era o líder do grupo, e porque eu, enquanto mulher, não me preocupo com casamento, ter um bom marido, filhos e emprego ao invés de estar a fazer confusão. Fizeram promessa de morte caso eu voltasse a me manifestar. Fui encontrada pelos meus companheiros semi-morta.
Dada a repercussão, quase toda Angola se apercebeu do que me tinha acontecido. A minha família decidiu me expulsar de casa, porque eu não quis recuar nos meus posicionamentos e abandonar o activismo. Alegaram que, estando a protestar, poderia meter a vida dos que vivem em casa em perigo, tal como morreram muitos familiares nossos, porque a minha imagem tinha corrido o mundo. A igreja decidiu me afastar do coral em que fazia parte. As minhas amigas temiam estar comigo. Eu era perseguida na escola e outros locais aonde ia. Fotografavam as pessoas que se juntavam a mim. Foi o momento mais revoltante da minha vida, não pela causa, mas pelas pessoas terem cedido às represálias e perseguições. Mas não parei. Sabia que era forma de me silenciar e silenciar a minha geração.
PRISÃO E LIBERDADE
Depois de ter usado toda a força, meios e homens para opressão e repressão dos jovens, em 20 de junho de 2015, José Eduardo dos Santos mandou-nos prender, alegando que estávamos a arquitetar um golpe de Estado contra ele.
Domingos da Cruz, jornalista e professor universitário, havia nos contactado junto a Nuno Dala – este último, amigo seu que havia lido o livro de Gene Sharp, Da Ditadura à Democracia, e decidido interpretá-lo de acordo com a realidade de Angola. O título ficou Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura: Filosofia política para a libertação total de Angola.Fizemos três encontros em um sítio para debater o livro. Era uma forma de repensar o nosso activismo. O autor, Gene Sharp, apresenta 198 formas de luta pacífica em que nós, jovens da sociedade angolana, nos víamos, porque nossa luta era pacífica. No terceiro encontro, percebi que eu estava a ser perseguida quando me dirigia ao local pelo “meu bófia”, o jovem que estava sempre a seguir-me. Já era normal. No quarto encontro, acontece a detenção. Nesse dia não estive, porque minha irmã seria pedida para o casamento. Quando o relógio tocou às 17h30, os outros companheiros que tinham faltado ligaram para mim para confirmar se eu estava no grupo que havia sido preso. Estavam nesse grupo Albano Bingobingo, Inocêncio de Brito, Fernando Tomás, Luaty Beirão, Mbanza Hamza, Hitler Samussuku, José Hata, Nuno Dala e Dito Dali. Este último tinha aparecido pela primeira vez na actividade.
Não conseguíamos descobrir aonde tinham sido levados os jovens e temíamos que aconteceria mais uma execução. Contudo, alguns companheiros que estavam no dia do rapto detinham telefones que permitiam acessar internet e fizeram uma rede de informação. Em menos de 30 minutos, a notícia sobre o rapto estava a circular nas redes sociais, o que motivou as forças policiais e militares do país a desistirem da ideia de matar os jovens activistas e defensores dos direitos humanos. Já não podia se repetir o aquilo a que o Estado do MPLA estava acostumado.
Domingos da Cruz e Osvaldo Caholo foram presos fora do sítio. Domingos foi apanhado na fronteira, no dia seguinte da prisão dos restantes; já Osvaldo, activista e militar que havia participado uma única vez nos encontros, foi preso em casa depois de quatro dias do anúncio público do procurador de que os jovens estavam a ser acusados de atentado de rebelião e golpe de estado. Decidiram ir prendê-lo pois não havia outros vestígios de envolvimento militar no grupo. Eu e Rosa Conde fomos arroladas ao processo um mês depois. Não nos mandaram para a cadeia, na altura, porque isso levantaria mais problemas, uma vez que não conseguiam fundamentar o crime do qual nos acusavam. Como 17 jovens poderiam dar um golpe em um presidente que investe a maior parte do orçamento na defesa?
Comecei a ser julgada em consonância como os meus colegas em 2015, tendo recebido em 2016 a sentença de quatro anos e seis meses, O processo ficou conhecido pelo nome de 15+duas devido às duas senhoras, eu e Rosa Conde.
Houve greves de fome na prisão, em que a mais durável foi do meu companheiro Luaty Beirão, de 36 dias, que simbolizava os 36 anos em que José Eduardo estava no poder à época. Luaty desejava pressionar o sistema judicial que estava muito moroso. Havia passado a época da prisão preventiva, e ainda assim não tinham um crime formal. Eles estavam a ser submetidos a condições desumanas em celas dos altamente perigosos, sem direito a visita, sem apanharem sol. O nosso companheiro Nuno Dala também fez a greve de fome e, depois, uma greve de nudez, devido aos maus-tratos que estava a sofrer na cadeia. Eu e Rosa Conde fizemos greve de nudez e de silêncio absoluto, que durou 13 dias. O objetivo era vermos os nossos direitos respeitados enquanto presas políticas e chamar atenção dos angolanos e da comunidade internacional que estávamos a pagar uma pena injusta.
Com as greves, os tribunais começaram a acelerar o processo judicial. Foi criada a Lei da prisão domiciliária e fomos os primeiros a nos beneficiar deste processo, presos em casa, sob controlo da Polícia Nacional.
Fizemos também protesto em que usamos perucas no momento do julgamento, para simbolizar a representante do ministério público, que durante do julgamento manteve o rosto coberto pela tissagem, [11] por temer que fosse identificada pela mídia e pelos que estavam revoltados com o caso. Vestimos camisetas com as nossas caras representadas como palhaços, para simbolizar o julgamento, que era uma palhaçada. Pessoas presas por lerem um livro.
11 Extensão capilar
O dia 28 de julho de 2016 foi o dia da libertação. Fomos soltos e soltas provisoriamente, por documento do tribunal constitucional. Dois meses depois, entrou em vigor uma Lei criada a nosso propósito, para desfazerem o que tinha feito: Lei da Amnistia dos crimes ocorridos de 2015 para cima. Acabamos por ser amnistiados de um crime que não cometemos.
Meses depois, José Eduardo anuncia que não voltaria a se candidatar para a presidência da República. Realizamos o objetivo que tanto esperávamos. Penso eu que com o nosso processo havíamos desgastado a sua imagem a nível nacional e internacional. José estava, assim, a ceder à pressão das formigas. Que éramos nós. Os ditos frustrados que ele acusou publicamente numa entrevista em televisão internacional. Para nós foi momento de muita alegria, apesar de nosso sofrimento não ter terminado com sua saída.
É necessário fazer mais.
SE TIVESSE QUE NASCER DE NOVO
Não escolhi ser activista, o activismo é que me escolheu para fazer dos meus actos os actos de uma pessoa que sonha com uma Angola digna para todos. É um prazer ser activista apesar de todas as dificuldades. O importante é ir refletindo a cada etapa para não se deixar cair pelos entraves. Não me canso, e me renovo nas gerações vindouras que devem encontrar um país onde eles se orgulhem de serem chamados de cidadãos. Se eu tivesse que nascer de novo, pediria ao mundo que me escolhesse como activista política e feminista angolana. Não parei de lutar desde 2011 e tive que desafiar as estruturas da família e sociedade. Continuamos firmes.