Pesquisar

Precarização: “Só as lutas sociais podem resgatar um sentido ao trabalho”

Trabalhadores brasileiros enfrentam jornadas exaustivas que comprometem o convívio familiar e a saúde. Especialistas apontam que essa sobrecarga não é um erro, mas uma engrenagem do sistema de exploração

Foto: Reprodução

Acorda cedo, ainda de madrugada. Escova os dentes, se arruma e arruma também a filha pequena para a escola. Pega a marmita já pronta na geladeira, guarda na bolsa e se despede de seu cônjuge e da criança. Sai de casa e caminha dezessete minutos até o ponto de ônibus mais próximo. O ônibus já vem lotado. Paga a passagem cara e segue viagem em pé. Depois de uma hora e oito minutos, chega a um bairro de classe média, onde espera mais vinte minutos para pegar o segundo ônibus. Meia hora depois, desce e encara mais 12 minutos de caminhada até a empresa. Trabalha das 8h até o meio-dia. Na hora do almoço, esquenta a marmita e permanece por lá mesmo. Não dá tempo de descansar em casa. O tempo que levaria para ir e voltar é maior que o intervalo.

Às 13h, já está a postos, batendo o ponto. Trabalha até 18h45 — deveria ser até 18h, mas, de novo, o chefe pediu para resolver um problema que “não podia ficar para amanhã”. Vai correndo para o ponto de ônibus, mas acaba perdendo dois ônibus por causa do tempo extra no trabalho. Só consegue embarcar às 19h50h. Chega em casa às 22h. Do ponto até a porta de casa, caminha quase correndo, com medo de alguma violência na rua escura e vazia. Ao entrar, mal tem tempo de respirar: come qualquer coisa, dá banho na filha, coloca para dormir. Depois, organiza a marmita para o dia seguinte. Termina tudo às 23h42. Toma um banho rápido e, exausta, se deita. Mas antes de dormir, ativa o despertador para 5h da manhã. No dia seguinte, tudo recomeça. E no outro. E no outro. E no outro… 

Essa é a realidade de muitos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras que enfrentam, com alguma variação da mesma história, intensas jornadas de trabalho no dia a dia.  As horas de expediente somadas ao tempo destinado a deslocamentos e às tarefas domésticas resultam em pouco (ou nenhum) tempo livre. Com a correria e  a rotina sobrecarregada, o convívio com a família praticamente não existe e os trabalhadores e trabalhadoras têm a saúde física e mental afetadas. 

A precarização, escalas exaustivas e a ausência de políticas de cuidado não são falhas do sistema, mas parte dele, assim como os baixos salários. O valor de R$ 1.518,00 como salário mínimo no Brasil é considerado insuficiente porque não cobre o custo real de vida das famílias brasileiras e não garante acesso pleno a direitos básicos como alimentação saudável, moradia digna, transporte, educação, saúde, vestuário e lazer como prevê a Constituição Federal. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), o salário mínimo necessário para suprir essas necessidades básicas em 2025 deveria ser R$ 7.229,32

Mais de 40% dos entregadores de app já sofreram acidentes e um terço vive em insegurança alimentar, segundo pesquisa

Foto: Jaqueline Deister/Brasil de Fato/Reprodução

Traço da sociedade escravocrata

Ricardo Antunes, professor de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp e autor dos livros “Sentidos do Trabalho”, “Capitalismo Pandêmico” e “Adeus ao Trabalho?” afirma que uma remuneração insuficiente para garantir o básico à sobrevivência mostra a brutalidade da exploração capitalista no Brasil, que “atinge fortemente a classe trabalhadora industrial, a classe trabalhadora que atua no setor agrícola, o proletariado rural, e também o proletariado de serviços”, afirma.  Essa exploração é ainda mais violenta quando se olha do ponto de vista, dentro da dimensão de classe, gênero e raça. “Negros e negras são mais explorados, indígenas e imigrantes também, quando você olha o cenário latino-americano. Ou seja, a classe trabalhadora sofre o vilipêndio da exploração. E isto singulariza o capitalismo brasileiro, que sempre foi pautado pela superexploração do trabalho”, afirma Ricardo Antunes.

O especialista explica que a exploração do trabalho é um traço da sociedade escravocrata no Brasil. “A burguesia brasileira, em seus grandes núcleos, imaginam que uma jornada de trabalho extenuante não seja um problema para elas, na medida em que elas pensam que estão dando trabalho para os trabalhadores. É uma falsificação. A exploração do trabalho é um traço que caracteriza, que particulariza o capitalismo no Brasil, vale lembrar, mais uma vez, de origem escravocrata. E ele é condição sine qua non [condição indispensável] das desigualdades”, disse Ricardo Antunes. 

O professor acredita que uma das pautas mais importantes do atual debate da classe trabalhadora brasileira é o combate à jornada 6×1. Atualmente essa é uma luta que está no foco de movimentos sociais, sindicatos e coletivos em todo o Brasil.

O movimento Vida Além do Trabalho (VAT), fundado e liderado pelo vereador eleito em 2024, Ricardo Azevedo (PSOL-RJ), defende a redução da jornada de trabalho sem diminuição do salário. A discussão virou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) protocolada em fevereiro de 2025 na Câmara dos Deputados por parlamentares da base do governo Lula. A PEC foi encabeçada pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que considerou a petição pública online “Por um Brasil que vai além do trabalho” liderada por Rick antes da eleição.

“Nós sabemos que os profissionais no nosso país, especialmente os mais precarizados e mais vulnerabilizados, aqueles que ganham menos e que podem morrer de trabalhar não chegarão muito longe porque as condições de trabalho e a remuneração não permitirão. […] Precisamos olhar para o trabalhador enquanto ser humano que tem uma vida, que tem uma família que muitas vezes precisa abrir mão dos seus sonhos para ficar em uma jornada de trabalho extremamente exaustiva que não leva a muito longe”, disse a deputada Erika Hilton em uma sessão na comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial. 

Um relatório da Oxfam Brasil indica que mulheres e pessoas negras são as maiores vítimas das consequências da informalidade no trabalho rural. 

Foto: Letycia Bond/Agência Brasil/Reprodução

Gênero, raça e classe 

Quem trabalha sob esse regime convive com exaustão e o que seria “tempo de folga” para desfrutar de lazer, vira tempo de trabalho, só que em casa. Trabalhadores concordam que não existe tempo livre tendo em um único dia da semana longe do local de trabalho.  Esse tempo geralmente é o período destinado para organização da casa e da rotina para a volta ao trabalho. 

Essa realidade acende a discussão sobre raça e gênero. É que a situação afeta principalmente mulheres negras, que recebem os menores salários e enfrentam as piores condições de trabalho. As disparidades estruturais refletem as desigualdades históricas. 

Dados do IBGE sobre informalidade e desemprego mostram que o mercado de trabalho é sexista e racista. A pesquisa mostra a disparidade salarial e informa que pessoas pretas e pardas vivenciam mais o desemprego do que as brancas. Quando estão empregadas, as pessoas negras recebem salários menores e são maioria na informalidade.  

A lógica da produtividade a qualquer custo tem aprofundado a precarização também entre jovens periféricos e trabalhadores rurais, que enfrentam ainda o racismo estrutural e a negação sistemática de direitos trabalhistas.

Um relatório da Oxfam Brasil indica que mulheres e pessoas negras são as maiores vítimas das consequências da informalidade no trabalho rural. De acordo com a pesquisa, quase 70% das trabalhadoras e trabalhadores são negras e negros e 58,3% trabalham sem as garantias da legislação trabalhista. A desigualdade também se expressa nos salários. Segundo os dados levantados, homens negros ganham 59,8% e mulheres negras 61,6% a menos que a média. A informalidade atinge 46,1% da população preta e parda.

Os dados indicam a necessidade de uma transformação profunda no campo trabalhista. Apesar das conquistas históricas – fruto de intensas lutas dos trabalhadores e movimentos sociais e sindicais – a evolução e os direitos conquistados até agora ainda são insuficientes para garantir uma proteção plena e justa. 

Foi com esse propósito – de resistência frente à exploração – que nasceram os movimentos sindicais  no século XVIII. Diante de jornadas exaustivas, baixos salários e ausência de direitos, a organização coletiva se tornou uma ferramenta fundamental para reivindicar melhores condições de vida e trabalho. 

O Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxista Intermunicipal do Estado de São Paulo (SindimotoSP), surgiu no final da década de 1980 com a necessidade de defender os interesses da categoria.  O diretor-presidente do sindicato, Gilberto Almeida, o Gil, afirma que atualmente a categoria enfrenta diversas formas de precarização “desde o descumprimento de proteção das leis trabalhistas e o afastamento desses trabalhadores das convenções coletivas, dos acordos coletivos da justiça do trabalho e dos instrumentos de proteção do ecossistema das leis trabalhistas até a desregulação e desproteção dentro do universo das leis relacionadas à proteção e à segurança do trânsito”. 

Gil informa ainda que questões que envolvem a segurança no trânsito são ignoradas. Segundo o  SindimotoSP, entre janeiro de 2024 e janeiro de 2025 morreram 900 motociclistas. 

Por causa desses problemas, o grupo tem criado mecanismos para contrapor questões de desregulação, segurança e outras formas de precarização. “A gente vem atuando em diversas frentes, tentando contrapor o lobby dessas empresas. Principalmente nas Câmaras de Vereadores, no Congresso e no Senado, também nas ruas, no fortalecimento, no apoio às manifestações, como as próprias greves. Nós denunciamos fraudes trabalhistas e todas as questão relacionadas à precarização. Toda essa questão de enganação. Toda essa parte voltada para a questão do dumping social das empresas. E aí onde está a nossa atuação. No enfrentamento”,  explicou Gil. 

Existe um processo claro precarização no trabalho de entregadores, como os que atuam em plataformas como Uber, iFood, Rappi e motoboys independentes.A precarização do trabalho nesses setores pode ser entendida de diversas formas, evidenciando a ausência de direitos, a instabilidade e as condições desfavoráveis que os trabalhadores enfrentam no dia a dia.

Ricardo Antunes explica que parte importante da classe trabalhadora brasileira atua em plataformas com o objetivo de ter maiores salários. Mas para isso, acabam trabalhando até 14 horas (ou mais) por dia. “A pessoa destrói o seu corpo produtivo. Morre mais de um motoqueiro entregando produtos em São Paulo por dia. Adoecem trabalhadores e trabalhadoras que trabalham em motos, em bicicletas, intensamente perdendo partes do seu corpo, quebrando partes do seu corpo, afetando a sua cabeça. Há um conjunto imenso de trabalhadores jovens que começam a trabalhar nas plataformas e acabam ficando longos períodos sem nenhum direito. A greve dos trabalhadores de aplicativos mostrou que é inaceitável o nível indigno de remuneração que eles recebem e os níveis precários que pautam as suas condições de trabalho”, disse. 

Durante todo o ano é fundamental pautar os direitos dos trabalhadores e discutir o direito ao  descanso – que deveria ser um direito inegociável, mas virou um privilégio acessível a poucos. 

“É preciso resgatar um trabalho dotado de algum sentido e isso é que as lutas sociais fazem”, finaliza Ricardo Antunes. 

 

TEXTO

Letícia Queiroz

jornalista quilombola, repórter da Escola de Ativismo

publicado em

Temas

Newsletter

Mais recentes

plugins premium WordPress

Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

Assine Nossa Newsletter

Material de aprendizagem, reflexões, iniciativas, resistências. Um conteúdo exclusivo e analítico sobre o cenário, os desafios e as ferramentas para seguir na luta.

E mais: Vem de Zap! Recebe em primeira mão ferramentas, editais, notícias e materiais ativistas! 

assine nossa NEWSLETTER

Material de aprendizagem, reflexões, iniciativas, resistências. Um conteúdo exclusivo e analítico sobre o cenário, os desafios e as ferramentas para seguir na luta.

Ir para o conteúdo