Por Maria Paula Monteiro* – 08/03/2024
Em artigo, Maria Paula Monteiro diz que o ambiente favorável para discussão do aborto tem que ser criado. “Organize-se! A vida das mulheres não pode mais esperar”, diz.
Protesto em 2023 em São Paulo l Foto: Gabriela Moncau via Brasil de Fato/CC
Quero contar a história de Aline. Mulher negra que, aos 36 anos, se viu grávida de seu terceiro filho, depois de ter tentado se reaproximar do ex-companheiro que a violentava. Criar e cuidar de duas crianças sozinha era difícil. Faltava dinheiro para as contas básicas no fim do mês, mesmo Aline se desdobrando como doméstica durante o dia e feirante aos finais de semana. Aline se mudou do interior para a capital para viver com o companheiro e não tinha mais contato com a família. Foi espancada durante a segunda gestação e o ex-companheiro era a única pessoa que conhecia na cidade. Precisava de ajuda, mas só teve a ele para recorrer. Grávida, não tinha condições e nem queria ter mais um filho desse homem violento. Ele disse o endereço de uma senhora que fazia abortos porque também não queria outro filho.
Os atendimentos só eram feitos de madrugada para não levantar suspeitas. Aline foi até lá sozinha. E aguardou, sozinha, em um quarto escuro, porque essa mulher tinha um filho em alcoolismo que ficava agressivo quando bebia. Sozinha, Aline deitou em uma cama de lençol sujo e aguardou que aquela senhora, utilizando uma agulha de costura, finalizasse o procedimento. Sozinha, Aline voltou para casa, sentindo dores e sangrando, para começar um outro dia de trabalho e cuidado com os filhos.
O movimento feminista é repleto de histórias como a de Aline. Algumas sobrevivem para contar os relatos, outras não tem o mesmo fim. Qual a responsabilidade do Estado nisso tudo?
Quando centenas de mulheres se reuniram na esplanada dos ministérios, em Brasília, em agosto de 2018, a pauta do aborto parecia mais viva do que nunca. Tenho cenas gravadas na memória que nunca vou esquecer do Festival pela Vida das Mulheres: mães amamentando suas crianças enquanto participavam de rodas de conversa, batalhas de rap, trocas de saberes com parteiras, balões verdes e roxos subindo no céu durante a passeata. Foram muitas palestras, personalidades relevantes da política do país presentes, vigília e manifestação na porta do Supremo Tribunal Federal (STF), audiência pública e participações riquíssimas.
O Festival foi organizado em virtude da audiência pública convocada entre 3 e 6 de agosto de 2018 para debater a ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, protocolada por Anis Instituto de Bioética e pelo PSOL em 2017. Dois meses depois, Jair Bolsonaro era eleito presidente do Brasil e a possibilidade de descriminalização do aborto, que parecia tão eminente à época, começou a ser abafada e atacada dia após dia.
Foram quatro anos muito difíceis para o movimento feminista, mas encontramos nesse terreno árduo muita força e solidariedade para seguir em luta. Foi também nesse período que aconteceu o crescimento da campanha “Nem Presa Nem Morta”, que luta pela descriminalização do aborto no país, e que as organizações do selo “Futuro do Cuidado”, envolvidas na pauta, também se fortaleceram.
Durante esse tempo, vivemos o esforço de fazer valer o direito ao aborto a meninas de 10 e 11 anos que foram estupradas, nos vimos diante da necessidade de organizar logísticas de resistência em hospitais para tentar contornar a perseguição fundamentalista aos profissionais de saúde e às vítimas de violência. Digo no plural porque foi um verdadeiro esforço de ativismo, comunicação e estratégias de mobilização que envolveu diversos movimentos, de abrangências nacionais e estaduais. Sem contar as portarias e cartilhas absurdas do Ministério da Saúde, que tentaram dificultar mais o acesso ao aborto legal. Isso tudo em meio à pandemia do coronavírus.
Também nesse período vimos nossas “hermanas” conquistarem o direito ao aborto legal após anos de muita luta nas ruas. A aprovação da legalização do aborto na Argentina, no final de 2020, foi extremamente importante para potencializar as mobilizações em todos os outros países da América Latina, especialmente no Brasil, que é vizinho próximo. Em seguida, veio a descriminalização na Colômbia (2022) e no México, em 2023.
Chegamos em 2023 no Brasil, sob um governo democrático, mas ainda com um Congresso de maioria anti-direitos. Se por um lado, em nível judicial, tivemos o voto favorável da ex-ministra Rosa Weber na ADPF 442 em setembro de 2023, as tentativas de barrar o tema entre os parlamentares não são poucas – muito menos desprezíveis.
O PL do Estatuto do Nascituro, por exemplo, voltou para a pauta da Câmara dos Deputados no final de 2022 e conseguiu ter a votação barrada por articulação das parlamentares feministas com obstrução e pedido de vistas. Agora, pode voltar a tramitar a qualquer momento: uma deputada do Rio de Janeiro, Chris Tonietto (PL), conseguiu 305 assinaturas (59% da Câmara), para que o PL siga em regime de urgência.
O projeto pretende tornar o aborto em crime hediondo, inclusive nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e de fetos anencéfalos, além de garantir personalidade jurídica para o feto. Com isso, até mesmo processos de fertilização in vitro seriam prejudicados, já que equipara em direitos os embriões às pessoas nascidas vivas.
Digo isso tudo porque, enquanto ativistas de direitos humanos e pela democracia, temos a missão de nos alinharmos às mulheres feministas que estão pautando a luta urgente por aborto legal. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, mais de 5 milhões de mulheres de até 40 anos já abortaram no país. Um número muito alto se pensarmos que anualmente são feitos 1.800 abortos pelo SUS, em média, segundo a plataforma AbortoNoBrasil.info, de Instituto AzMina.
São milhões de abortos feitos de forma insegura, que têm condições mais insalubres e perigosas a depender das condições financeiras, sociais, da região em que a pessoa se encontra. Aborto é um procedimento de baixa complexidade quando feito com medicamentos seguros e recomendados pela Organização Mundial de Saúde. É inaceitável que aborto seja uma das principais causas de morte materna no país. São mortes evitáveis.
É a vida das meninas, mulheres e demais pessoas que gestam que está em risco, diariamente. Ser militante feminista e ouvir cotidianamente relatos de violência e negligência do Estado é angustiante. Ouvi recentemente de uma feminista que admiro muito, a coordenadora da Casa Tina Martins, em Belo Horizonte, que todos os dias ela acorda com ódio. E que é esse ódio que a mobiliza para lutar todos os dias.
A criminalização do aborto hoje condena mulheres brasileiras à morte, a sequelas graves de saúde, a violências e traumas irrecuperáveis. Nossas vidas precisam indignar todo o corpo de ativistas do país, mas não só indigná-los: é preciso mobilizá-los. Temos a chance única de pressionar o STF para pautar novamente o julgamento da ADPF 442, e isso só será feito quando toda a sociedade estiver debatendo sobre aborto.
É preciso trazer o assunto e defendê-lo em todos os espaços. No grupo de amigos, nas redes sociais, na mesa do bar. É preciso, também, fortalecer as mobilizações em torno do aborto legal. A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto tem 16 Frentes Estaduais que se organizam no país, com formas de contato para poder dialogar e fortalecer.
O ambiente favorável para a discussão sobre a legalização do aborto será criado por nós. Organize-se! A vida das mulheres não pode mais esperar.
*Maria Paula Monteiro é jornalista, ativista e uma das fundadoras do Coletivo Feminista Várias Marias, em Sete Lagoas, Minas Gerais.