Por Vitória de Oliveira – 09/10/2023
Nas duas últimas eleições para os conselhos tutelares, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ficou em segundo plano para uma porção significativa do eleitorado e dos candidatos; a ativista Vitória de Oliveira examinou as causas e consequências dessa movimentação
Um levantamento feito pelo CMDCA de São Paulo mostrou que 53% dos conselheiros que tomaram posse em 2020 são ligados a denominações neopentecostais. | Foto: Agência Brasil
Único no mundo, inovador e pioneiro: essas são algumas palavras que nos ajudam a definir a importância dos Conselhos Tutelares no Brasil. Porém, eles também são vítimas de uma falta de regulamentação unificada entre municípios, com a precarização, além de servirem como trampolim político para a extrema-direita. Se as eleições deste ano mostram alguma coisa é que os Conselhos são um espaço de disputa. E os dados corroboram: neste ano, a eleição teve participação recorde, com aumento de 25,8% no número de votos em relação ao último pleito, em 2019.
Um panorama histórico
Mesmo que pareça evidente que cada pessoa deva ter seus direitos respeitados, as crianças e adolescentes não eram – e de uma certa forma, ainda não são – vistas como sujeitos com garantias fundamentais que devem ser asseguradas. A visão, tão essencial para essa parcela da população, só começou a mudar há menos de quarenta anos.
Sendo o instrumento de direitos humanos mais ratificado no mundo, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), realizada pelo Fundo das Nações Unidas em 1989, foi um compromisso assumido por 196 países — o único país a não assinar o documento são os Estados Unidos da América. A CDC, debatida por anos e enfim aprovada com 54 artigos, fez com que a legislação de proteção às crianças e adolescentes avançasse em todo o globo (menos nos Estados Unidos).
E não à toa, um ano depois e após a promulgação da Constituição Federal (que inclusive menciona crianças e adolescentes como sujeitos de direitos no artigo 227), o Brasil rapidamente entendeu que deveria tratar o assunto como prioridade: em julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado, no que foi uma das primeiras iniciativas de ratificação da CDC no mundo, logo após o fim da ditadura militar — um período sombrio e de negação de direitos.
O ECA, então, foi constituído num momento de reconstrução do país e de volta da participação popular na construção de políticas públicas. Substituindo o Código de Menor, o ECA nos proporciona uma mudança de paradigma significativa e garantidora de direitos.
Ainda sendo desenhado
Todo esse contexto serve para dizer que os Conselhos Tutelares, órgãos autônomos e não-jurisdicionais criados a partir do ECA, não surgem do nada. Eles foram criados para fazer com que o ECA seja seguido, protegido e efetivado em todos os municípios brasileiros.
Apesar de serem independentes, as condições de trabalho e toda a regulamentação dos Conselhos é definida pela Prefeitura. Então, apesar de não haver qualquer vínculo de subordinação, os Conselhos são dependentes do poder Executivo. Os salários variam, a formação recebida por Conselheiros não é regulamentada e até mesmo a quantidade de verba disponibilizada pelos municípios é bastante díspar.
Os requisitos do concurso público para tornar-se Conselheiro não são os mesmos em todas cidades: enquanto a cidade A pode solicitar provas sobre conhecimentos sobre o ECA, a cidade B pode simplesmente solicitar um exame psicotécnico para atestar que as candidaturas são aptas à eleição.
A data da publicação do edital que dispõe sobre a eleição para Conselheiros Tutelares também fica a critério da Prefeitura e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). A falta de um processo unificado entre as cidades brasileiras mostra que apesar de revolucionário, os Conselhos Tutelares ainda estão em construção. E isso também é motivo de disputa.
No alvo do extremismo
Apesar de todos os problemas envolvendo a precarização, todo espaço de poder é um espaço político. Construído a partir da luta de uma sociedade civil preocupada em proteger o ECA, a escolha local de conselheiros começou a ser vista como um alvo da extrema-direita e do proselitismo religioso já há algum tempo.
E o crescimento do envolvimento de igrejas na decisão de políticas públicas não deve ser visto com surpresa, muito pelo contrário: se o Conselheiro Tutelar é geralmente encarado como uma instituição das comunidades, não há exemplo maior de desenvolvimento e influência no território brasileiro do que as igrejas evangélicas.
Eleições desse ano tiveram recorde de participação popular | Foto: Agência Brasil
O livro-guia é a Bíblia
Para quem enxerga a salvaguarda ECA como a máxima da missão do órgão, é no mínimo esperado que o candidato ao Conselho tenha envolvimento com a garantia do direito de crianças e adolescentes. Mas não é o que vem acontecendo.
O Conselheiro Tutelar pode ter a sua crença, partido e exercer a sua identidade como cidadão. O que não deve acontecer é o trabalho deste profissional ser guiado por outro documento que não o ECA.
Em 2020, um levantamento feito pelo CMDCA de São Paulo mostrou que 53% dos conselheiros que tomaram posse em 2020 são ligados a denominações neopentecostais. Toda essa articulação expõe o plano de expansão e influência de igrejas nas instituições que compõem o Estado democrático de direito.
No relatório, “Vamos ocupar o Conselho Tutelar: Moralismos e a desinformação nas eleições do Conselho Tutelar”, publicado pelo Observatório da Desinformação do Sleeping Giants Brasil, é possível ver as articulações digitais de bolsonaristas nessas eleições: o deputado Gustavo Gayer (PL-GO) disse em culto que era preciso votar em Conselheiros Tutelares ligados à igreja “para que quando algum militante for falar de ideologia de gênero na sala de aula, essas pessoas terão autoridade de entrar lá e falar: Aqui não!”. Já a deputada estadual Índia Armelau (PL-RJ) divulgou um contato que repassaria uma lista de candidatos (já que parlamentares não podem apoiar publicamente candidatos) e afirmou em vídeo que é preciso “zunir a esquerda do Conselho Tutelar.”
Formação política da extrema-direita
Fica muito explícito que, para os fundamentalistas, defender o Estatuto da Criança e do Adolescente, é sinônimo de propagar valores de esquerda. Essa visão é impulsionada pela desinformação e pelo projeto de expansão de influências da extrema-direita. Tanto é que os Conselhos Tutelares são vistos como um espaço de formação política da extrema-direita.
Quando as igrejas lançam seus candidatos, investem financeiramente em suas campanhas com seriedade, além de se articularem estrategicamente para ocupar as redes sociais e usarem dos cultos para realizarem propaganda eleitoral. Isto é curioso, visto que a escolha da sociedade pelos Conselheiros não é exatamente uma eleição, mas uma votação local.
Os votos, conquistados através de uma divulgação massiva baseada na desinformação e até mesmo da locação de automóveis para transportar fiéis até seus colégios eleitorais, não são importantes apenas para eleger, mas para servir como uma métrica da força que determinado grupo tem. Isso nos leva a um ponto preocupante quando olhamos para os Conselhos.
São muitos os casos de Conselheiros Tutelares eleitos que tiram vantagens do cargo que, apesar de não ter a mesma influência que uma vereança por exemplo tem, são significativas. O contato com mais comunidades se expande, e daí surge a chance de se utilizar do cargo como um trampolim político, seja como uma candidatura ou cabo eleitoral.
Pela falta de investimentos e regulamentação nos Conselhos nos municípios, depois de um tempo, os Conselheiros interessados em crescer politicamente percebem as dificuldades de realização do trabalho, além da baixa remuneração. Suplentes são chamados e percebe-se que o comprometimento com os direitos de crianças e adolescentes nunca foi prioridade.
Não bastam olhares atentos
Apesar das complexidades na vida dos Conselheiros que encaram o ECA como a máxima do trabalho, o Conselho Tutelar é um espaço que merece toda a atenção do mundo: é local de acolhimento, proteção e zelo pelos direitos humanos. Se as eleições não eram tão decisivas para o futuro de certos municípios há algum tempo, agora servem como uma corrida eleitoral antecipada.
Para que não hajam mais casos de intolerância religiosa ou influência na interrupção da realização de aborto de vítimas de violência sexual (o que é um direito), a sociedade civil não precisa apenas pautar os Conselhos Tutelares fora de ano de disputa pelo cargo de Conselheiro, mas ocupar comunidades e chegar nas pessoas, de fato.
Depois de quatro anos de uma Assistência Social liderada pela ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, indicado pelo fundamentalista religioso-cristão Jair Bolsonaro, e de um bolsonarismo entranhado nos municípios brasileiros, é preciso entender que os efeitos de suas políticas ainda ecoam e afetam o Brasil inteiro.
Há muitos espaços vazios que estão sendo tomados pela fé e pelo extremismo. Pensar em um projeto de disseminação de uma cultura democrática e cidadã não é pensar apenas em salvar os direitos de crianças e adolescentes, mas uma sociedade inteira: é preciso frear a disseminação desse vírus altamente proliferativo chamado extrema-direita.