Por Núcleo de Ação e Não Violência-NANV/Escola de Ativismo,
– 14/08/2024

 

 

Compartilhamos alguns dos achados do estudo “Não violência, princípios e práticas políticas da sociedade civil brasileira”

 

Os motivos para justificar a realização de um Estudo sobre Não violência, princípios e práticas políticas da sociedade civil brasileira (clique para conferir na íntegra) – lançado em 2024 pelo Núcleo de Ação e Não-Violência da Escola de Ativismo – podem ser pelo menos três, em face do cenário de erosão da democracia, crescimento da extrema-direita, crise (esta, já antiga) da representação política e crise (esta, mais recente) do ativismo no Brasil e no mundo:

  • a não violência, apesar de ser o padrão de operação de ativistas e organizações da sociedade civil (OSCs), é pouco conhecida e sequer recebe atenção nos debates sobre conjuntura ou, quando estes acontecem, nos debates sobre métodos de ação e incidência;
  • por enquanto, não parece viável outro princípio coletivo ou “filosofia” a orientar as práticas políticas da sociedade, pelo menos dentro dos limites do que se entende hoje como regime democrático, Estado democrático de direito ou outra expressão similar;
  • a violência, como fundamento e princípio de ação – apesar do regime de guerra, barbárie e exceção sempre ensaiados, tentados ou praticados pelos representantes da extrema-direita, paramilitares, Estados beligerantes, fascistas de todos os matizes e nacionalidades – ainda não parece capaz de viger acima das leis e institucionalidades no âmbito dos Estados sob a égide das Nações Unidas, como é o caso do Brasil. Certamente haverá objeções e ressalvas a essa premissa, sendo possível postular que, ao contrário do que parece, vivemos em estado de guerra incessante e contínua neste país acostumado a empilhar corpos (negros e periféricos, em sua maioria) a cada dia, todas as semanas, meses e anos.

Especialmente para o Núcleo de Ação e Não Violência (NANV) da Escola de Ativismo, responsável pelo Estudo, há ainda como motivação o fato de a não violência ser o princípio declarado de um determinado modelo de posturas e métodos de luta que caracterizam historicamente o fenômeno do ativismo contemporâneo: os protestos, os atos simbólicos, as formas de pressão pública, as ocupações, as ações diretas. 

Acrescente-se a isso o fato de haver pouca bibliografia e ampla escassez de pesquisa e trabalhos acadêmicos sobre o tema no país. De vez em quando, um raro lançamento de filosofia política desponta no mercado editorial (ex.: “A força da não violência”, de Judith Butler, publicado em 2021) a provocar reflexão sobre a não violência, porém a falta de debates consistentes permanece.

Ao que tudo indica, o Estudo parece ser a primeira iniciativa do tipo a vir a público nos últimos anos no Brasil: uma investigação exploratória a apresentar dados qualitativos e quantitativos sobre as práticas de luta das organizações da sociedade civil e seu entendimento sobre a não violência. Como o Estudo vem demonstrar, não se trata a não violência de tema pacífico, “bem resolvido”, muito menos consolidado entre ativistas e organizações.  

“A premissa da não violência aparentava contar com uma adesão tácita, mas, nas ocasiões em que o tema era tratado diretamente, tudo o que parecia sólido se dissolvia no ar”, diz o texto.

O Estudo revela a existência de duas diferentes perspectivas de não violência defendidas por ativistas e organizações, formas distintas de enxergar o conflito, modos diferentes de pensar o assunto e críticas ferrenhas e duras ao conceito.

Ao mesmo tempo, o Estudo mostra uma assunção generalizada da não violência como qualificadora da ação política da sociedade civil. Em resumo, ativistas e organizações, em sua grande maioria, se entendem como atores não violentos, cuja ação se caracteriza pela não violência. A questão é a qual não violência se referem quando se afirmam não violentos. Aí é que reside a divisão, a tensão e a disputa.

O Estudo Não violência, princípios e práticas políticas da sociedade civil brasileira foi realizado com base em entrevistas com 137 lideranças de organizações (formais ou informais, de diferentes portes e estilos de ação) atuantes em mais de duas dezenas de pautas/áreas temáticas, como: Clima e justiça socioambiental, feminismo, enfrentamento ao racismo, defesa do território, povos originários e comunidades tradicionais, direitos humanos, defesa da democracia, segurança pública, direito à terra, direitos LGBTQIAPN+, saúde, educação, cultura, juventude, direitos digitais, segurança alimentar, direitos dos animais, entre outras.

O propósito inicial foi verificar e compreender a) quais práticas conformam o fazer político das organizações da sociedade civil brasileira; b) se tais práticas caracterizam-se (ou não) por ser “não violentas”; e 3) qual a visão de ativistas e militantes da sociedade civil brasileira sobre a não violência. Com 240 páginas e dividido em sete capítulos, o Estudo aborda ainda o modo como a sociedade civil trata do fenômeno da violência: as diferentes interpretações do conceito de violência, os tipos de violência que as organizações enfrentam e combatem e as formas como reagem às violências que sofrem diretamente.

A seguir, uma síntese dos principais tópicos e achados do Estudo.

Violência, defesa e reação

A consideração da violência é elemento central para a compreensão das práticas políticas das organizações da sociedade civil (OSCs). A violência é o eixo em torno do qual as lutas se constituem; é em torno dela que as organizações se constroem e se posicionam. Todas as organizações e movimentos entrevistados, com apenas uma exceção, atuam contra a violência.

Não consta, a partir dos dados levantados pelo Estudo, que as OSCs façam uso ativo da violência para a consecução de seus objetivos (o que inclui enfrentar e combater a violência). Nem mesmo em sua própria defesa. O Estudo mostra que as OSCs não só precisam combater a violência, enfrentar a violência, como também são obrigadas a reagir e se defender da violência. Mais de 75% das pessoas entrevistadas afirmam que as organizações (ou integrantes das organizações) já sofreram algum tipo de violência em decorrência da sua atuação.

As OSCs enfrentam e combatem a violência sofrida com práticas que não são violentas. As formas mais frequentes de reação às violências sofridas são a adoção de providências de caráter legal, o recurso às instituições públicas (Ministério Público, Defensoria Pública, polícia etc), processos de comunicação e denúncia pública, articulação política e mobilização, e a utilização de mecanismos de acolhimento, apoio e proteção às vítimas. Interessante notar que, embora o Estado seja um importante agente de violência contra as OSCs, é às instituições de Estado que elas recorrem frequentemente para se defender.

A reação e defesa contra violência fez com que um número significativo de organizações (20,4%) passassem a planejar e a adotar previamente medidas de segurança e proteção. Embora haja um forte entendimento entre as organizações de que a autodefesa é legítima e necessária (prática aprovada por 86,1%), o Estudo não registrou ações especificamente classificadas como tal.

O rótulo de “organização violenta”

Ainda que não lance mão de violência stricto sensu, muitas vezes o fato de combater a violência faz com que as OSCs sejam vistas como violentas. A pecha de “agente violento” atinge cerca de 32% das organizações entrevistadas.

O que dá origem à “acusação” de violência é, por um lado, a própria natureza das pautas defendidas (antirracismo, feminismo, direitos sexuais e reprodutivos, direitos humanos, antiproibicionismo, reforma agrária, moradia etc), que muitas vezes confrontam valores do status quo e adversários politicamente ativos; por outro lado, o emprego de certas táticas de luta (basicamente protestos, ocupações e bloqueios). 

Em resumo, para serem caracterizadas como violentas é bastante que as organizações ajam politicamente em nome de suas causas e usem, para tanto, táticas até triviais de luta. Não é a prática da violência que torna as OSCs “violentas” para alguns. Pode ser até a mesmo a não violência.

As OSCs brasileiras são não violentas e praticam a não violência

A hipótese que deu origem ao Estudo parece comprovada: as organizações da sociedade civil brasileiras se entendem como não violentas. Do total de OSCs, 87,6% concordam em ser vistas como não violentas. Por sua vez, 73,7% das OSCs afirmam que suas práticas podem ser consideradas “totalmente” não violentas; outras 22,6%, que podem ser consideradas pelo menos “em parte” não violentas.

O questionamento sobre o que seria “parcialmente não violento” nas ações das OSCs ainda resta por esclarecer, especialmente no que se refere ao que seria, por hipótese, “parcialmente violento” – uma pista é a consideração pelas organizações de que 1) suas ações não sejam suficientemente não violentas ou 2) porque em alguns contextos o uso da violência possa ser legitimado. De todo modo, o Estudo registra que somente 6,6% das OSCs efetivamente rejeitam a não violência.

A opção pela ação não violenta é uma constatação forte do Estudo. As OSCs brasileiras praticam a não violência e preferem optar por métodos de ação explicitamente não violentos em detrimento daqueles que possam parecer violentos em alguma medida. As OSCs compartilham um mesmo “pacote básico” de ações, que é notadamente composto por práticas que se pode chamar de não violentas.

A tendência das OSCs é também de recusar as ações que podem ser lidas e enquadradas como violentas e, ainda, preferir aquelas que ostentem menos atributos de agressividade. O nível de aprovação (e adoção) de ações ou táticas de ação vai diminuindo à medida que percepção de violência associada a elas vai aumentando: quanto menos “violentas”, mais aprovação e aceitação; quanto mais “violentas”, menos aprovação e menos aceitação.

As duas perspectivas de não violência

Com as devidas ressalvas teóricas e metodológicas, o Estudo mostra que há pelo menos duas perspectivas diferentes, bem delineadas, da noção e da prática da não violência entre as organizações da sociedade civil brasileira. Essas duas perspectivas concernem à visão que as organizações têm da ideia de não violência e, não necessariamente, da prática efetiva (não violenta ou não) que essas organizações exercem na realidade concreta.

São elas:

1) uma perspectiva empática/conciliatória – que se baseia na escuta, no diálogo e na resolução de conflitos pela via da produção de acordos;

2) uma perspectiva pragmática/antagonista – que se orienta pela consecução dos objetivos políticos e enfrentamento dos conflitos, ainda que na impossibilidade do acordo ou na condição crítica do impasse.

A perspectiva empática/conciliatória é constituída de três ideias-força, amplamente mencionadas nas entrevistas: a) a escuta empática; b) o diálogo e c) a resolução do conflito pelo acordo. As três ideias-força da perspectiva pragmática/antagonista, por sua vez, são: a) a condição tático-estratégica; b) o confronto como premissa da “luta” e c) a finalidade política.

O elemento que distingue, circunscreve e separa as perspectivas empática/conciliatória e pragmática/antagonista da não violência parece ser a natureza da abordagem do conflito, mais especialmente, os limites dessa abordagem e os modos de encarar o transbordamento do conflito.

O ponto de chegada da perspectiva empática/conciliatória seria o acordo, mediante a resolução do conflito por meio do diálogo. O conflito, portanto, precisa ser resolvido, superado. A conciliação é essencial para o entendimento; o entendimento sendo o que suplanta e encerra o conflito. Nessa perspectiva, a produção do acordo seria o limite da não violência.

A visão pragmática/antagonista parece, ao contrário, partir deste ponto onde pára a visão empática/conciliatória; considera a não-existência do acordo – isto é, o impasse – como ponto de partida da ação não violenta. Nessa perspectiva, o impasse não seria a barreira limitadora da não violência, mas justamente onde ela começa, de fato, a dar contornos mais nítidos à luta política.

Se, de um lado, temos a colaboração como preceito basilar da não violência empática, de outro temos o confronto (ou a escalada do tensionamento) como constitutivo da não violência antagonista — numa outra linha, poderíamos dizer que, enquanto uma se baseia na cooperação, a outra se fundamenta na não-cooperação.

O Estudo mostra como a perspectiva empática baseada no diálogo e na superação do conflito aparece com mais destaque. A perspectiva antagonista ainda é pouco conhecida. Isso fica evidente nas respostas sobre os principais métodos da não violência, na caracterização das práticas não-violentas e suas vantagens, e nos conteúdos abordados nos debates internos das organizações. A pergunta que surge ao perceber que a não violência conciliatória aparece como sendo majoritária é se essa manifestação se dá por escolha política, por desconhecimento da outra perspectiva ou por outra razão. Segundo o Estudo, fica evidente que a perspectiva antagonista aparece de maneira mais tímida como parte do repertório de atuação das organizações.

Desinformação e silêncio sobre não violência (de viés pragmático/antagonista)

Segundo os dados levantados, 43% das organizações entrevistadas afirmam conhecer bem ou estudam/trabalham o tema da não violência e 54,6% dizem conhecer pouco ou nada sobre o assunto. A existência do primeiro conjunto de organizações com proficiência em não violência (pelo menos é o que se depreende de expressões como “conhecer bem” e “estudar/trabalhar com”) é, por si só, um achado significativo do Estudo.

O fato de a não violência ser pouco abordada nos debates públicos travados no âmbito da sociedade civil parecia sinalizar a existência de alto grau de ignorância sobre o assunto. Embora a maioria da amostra da sociedade civil não conheça bem a não violência, o nível de proficiência de 43% revela que a falta de debates públicos sobre o tema ostenta um índice desproporcional de silêncio não compatível com a existência de tantas organizações aptas a promover esse debate.

Quando se analisa o teor da discussão sobre não violência realizada internamente pelas organizações, emerge outra constatação importante: a maior parte das organizações trata dos temas “comunicação não-violenta, pacifismo ou cultura de paz”, numa proporção de mais do que o dobro das organizações que debatem não violência ativa ou táticas de ação não violenta. Ou seja, há uma forte predominância da visão empática/conciliatória na composição do debate interno. Outro percentual significativo de organizações (cerca de 30%) revela ainda que faz o debate sobre violência (ou as violências enfrentadas) – quando o que se pedia na verdade era para informar sobre a realização de debates sobre não violência. 

As OSCs parecem desconhecer a perspectiva pragmática/antagonista da não violência. Ainda que 43% das organizações afirmem ter conhecimento de causa sobre a não violência, duas a cada três não tratam a perspectiva pragmática/antagonista em particular.  Considerando apenas esses dados, o grau de desconhecimento daquilo que se denominou de visão pragmática/antagonista da não violência, que incorpora os aspectos táticos da chamada “não violência ativa” ou “resistência civil”, chega a 83% das organizações. 

Esse desconhecimento da perspectiva antagonista pode impedir que as organizações descubram ou formulem soluções de incidência e ação política capazes de superar impasses e limitações de eficiência e transformação. Eis um ponto de alerta.

Consideração da possibilidade de uso da violência

O Estudo aponta que, embora as OSCs não façam uso da violência (nem em sua própria defesa), atos ditos violentos não estão totalmente descartados. Esta “possibilidade” do uso da violência aparece de modos diferentes ao longo do conjunto de respostas e proposições. Trata-se, em geral, mesmo de uma consideração – isto é, da manifestação de abordagem ou tratamento de uma questão – e não, pelo que os dados demonstram, de uma intencionalidade de violência (muito menos de uma prática). Ainda assim, trata-se de um achado relevante: a opção pela não violência não impede as OSCs de considerarem eventualmente usar a violência.

Essa ideia se verifica, por exemplo, quando cerca de 54% das pessoas que entendem a não violência “como não ferir alguém” também aceitam usar a violência em situações de violência; ou quando 29,1% acreditam que “nunca pegar em armas” não seja uma característica da não violência. 

A possibilidade de uso da violência surge de maneira explícita na avaliação da ideia de autodefesa. Definida pelo Estudo como “ação de uso de força ou violência com a finalidade de se proteger, escapar ou colocar fim à violência sofrida”, a autodefesa recebeu o segundo maior índice de aprovação entre 16 práticas avaliadas: 73% das pessoas entrevistadas consideraram-na aceitável para se proteger da violência (ou 86,1%, se acrescentados os 13,1% de pessoas que deram a ela sua “aprovação condicionada”). A justificativa é fundamentada no direito à vida e na manutenção da integridade das pessoas e/ou grupos. “Não queremos ser a pessoa da violência direta, mas se tiver que se defender, a gente se defende”, diz uma das lideranças entrevistadas pelo Estudo.

Em outros casos, porém, a ressalva que abre espaço para o uso ainda que excepcional da violência é a justificativa política e o objetivo final da luta. Trata-se de argumento de natureza muito distinta da noção de autodefesa, uma vez que eventual “defesa” contra algum tipo de violência não necessariamente está subentendida. Ao contrário, o motivo está à frente: os fins. Esse argumento foi verificado na definição do posicionamento das organizações diante dos métodos de ação mais “agressivos” analisados. Em geral, a avaliação nesses casos indicava uma discordância (ou desaprovação) preferencial, mas a posição de aprovação podia ser alterada se algumas condições fossem satisfeitas. No caso das opções eventualmente caracterizadas por algum traço de “agressividade” – exemplos: pressão/coação, sabotagem, dano ao patrimônio privado etc – a condição para sua aceitação respaldava-se em geral em sua (possível) natureza politicamente “justa”. Embora esta seja uma posição minoritária entre as organizações ouvidas pelo estudo, a justificação finalística de alguma violência foi identificada pelo Estudo. 

Rejeição da não violência

É minoritária, mas é identificável também a posição de rejeição à ideia de não violência. A começar da própria autoimagem das organizações: um pequeno grupo de organizações (6,6% da Amostra) discorda taxativamente de serem vistas como não violentas — Ainda que venham a discordar, enfaticamente, de que sejam organizações “violentas”. “A violência é uma forma de reinventar a sociedade ou mudar a realidade”, diz uma liderança. 

Para justificar sua oposição à não violência, algumas pessoas desse grupo declararam que a não violência desconsidera a luta de classes e a legitimidade da violência dos trabalhadores contra a burguesia; contribui com “a lógica de manutenção do sistema, que é opressora”; e se trata de “um conceito burguês, racista e classista”. Consideram ainda que o debate sobre não violência é “paralisador” para a militância. Para outras, “a não violência é uma estratégia do opressor” e “não passa de um fetiche”. Há casos, ainda que não representem necessariamente uma “rejeição” à não violência, que a responsabilizam por produzir alienação e despolitização, naturalização da violência e apagamento do conflito.

Em síntese, para uma parcela (pequena) a não violência parece situar-se no campo adversário, isto é, tornando-se, ao que tudo indica, também o que se deve combater.

O debate sobre a eficácia, a força (ou a fraqueza) da não violência

Uma dos pontos mais interessantes debatidos pelo Estudo é a análise dos motivos pelos quais a não violência recebe tratamento, no mínimo, ambíguo ou reticente pelas organizações. Embora a maioria das organizações acredite que a não violência seja eficaz, existem questionamentos, dúvidas e hesitações. A chave está na fundamentação da noção de eficácia.

A ideia de que a não violência traz avanços para a luta social é a predominante no âmbito do Estudo. Termos como resistência, luta, engajamento aparecem no topo dos atributos que caracterizam a não violência. Entre os pontos positivos da não violência, é significativa a proporção de menções a “engajamento”, “aumento do poder institucional, efetividade e impacto”. Não à toa, questões explícitas relacionadas à eficácia da não violência foram analisadas pelas organizações e as respostas dadas não deixam dúvidas sobre qual a posição quanto ao problema. A questão da eficácia/ineficácia da não violência foi colocada sob exame várias vezes durante as entrevistas e em todas elas prevaleceu a posição que afirma a eficácia da não violência.

Porém, quando se observa o quadro de pontos negativos ou desvantagens atribuídos à não violência pelas organizações, cerca de 30% referem a uma incapacidade de causar impacto (isso sem falar da morosidade e da ineficiência da ação não violenta). Em síntese, segundo essa visão, a não violência não funcionaria – especialmente se o que se pretende é uma transformação política mais profunda. 

Quando se examina o conjunto das desvantagens atribuídas à não violência, verifica-se que, junto com ineficácia ou ineficiência, a quase totalidade delas têm a ver com a inação ou a falta de capacidade de lutar. Um quarto de todas as organizações (segundo lugar no ranking dos pontos negativos) identifica o não agir – o contrário da luta – como a grande desvantagem da não violência. Em outro momento, também verificou-se que “Evitar o confronto” caracterizaria a não violência (um total de 47,4% das organizações). Em síntese, considerando outras críticas e ressalvas apresentadas, a não violência não conseguiria “produzir fissuras significativas” nem “mudar a correlação de forças”, não seria capaz de desenvolver uma “negatividade disruptiva”, impediria reações mais fortes e, ainda, inibiria “ações que poderiam ter resultados significativos”.

O comentário de liderança de uma organização revela que o questionamento da eficácia não se refere a apenas “um tipo” de perspectiva de não violência (aquela que busca a conciliação e o acordo). Diz a liderança quando se refere a uma desvantagem da não violência: “Não poder agir à altura esmaga o emocional das pessoas que são violentadas, alonga o processo de reação, prolonga o processo de juntar forças, o tempo de luta aumenta”. Aqui os elementos da ineficiência da não violência são arrolados de forma didática – tudo sendo consequência de uma ação que, por algum motivo, não é capaz de fazer frente, como deveria, ao tamanho ou proporção do desafio (não está “à altura” dele). O que mais chama atenção aqui é a existência de um impedimento: “não poder agir” é o problema, do qual o resto decorre. Se se pudesse fazer diferente, as consequências seriam outras – e a ineficiência declarada talvez não existisse.

Embora este seja apenas um comentário entre tantos registrados pelo Estudo, outros dados vêm corroborar o que ele expressa de forma contundente: a maior parte das desvantagens atribuídas à não violência concernem a uma falta de capacidade – ou a uma falta de força; numa expressão, à sua suposta fraqueza. Tal referência à fraqueza não surge à toa. “Produção (ou impressão) de fragilidade, fraqueza, isolamento político” aparece na lista dos aspectos negativos da não violência, com 7,3% das menções. 

Este é um ponto que merece atenção também porque informa da preocupação com um componente expressivo ou comunicativo da ação política (portanto, um componente tático). Do mesmo modo como o problema da não violência seria o de fazer “parecer”, “ser interpretada como”, “ser confundida com” ou “dar a ideia de” passividade, inação, conformismo ou covardia, também a não violência poderia fazer parecer que se é fraco, frágil ou “sozinho”. Demonstrar fraqueza seria já começar a luta derrotado.

Ao que tudo indica, as críticas mais contundentes à não violência parecem então ser desdobramentos da consideração deste elemento-chave: a noção de força. Se o que se quer na prática política é ação em lugar de inação, participação em vez de paralisia, atividade em vez de passividade, coragem em vez de covardia, também é desejável ter força em lugar de fraqueza. A ideia de força incorpora a ideia de capacidade – e, por extensão, a expectativa de uma dada eficácia. 

Tomada assim em seu sentido mais amplo, é em torno da força (capacidade) de produzir mudança que gira a oposição à ideia de não violência. A força, nesse sentido, estaria diretamente relacionada à eficácia. Portanto, a razão da suposta ineficácia da não violência residiria nesta falta de força. 

O Estudo relaciona então uma série de perguntas para suscitar a reflexão e o debate sobre a não violência tendo como eixo o binômio força/fraqueza:

  • Se a não violência seria ausência de força, a força estaria presente na violência?
  • Os atributos desejáveis de força e capacidade, supostamente ausentes da não violência, podem ser fornecidos à luta pela violência (ou somente pela violência)?
  • Haveria uma força não oriunda da violência? 
  • Estão presentes neste debate noções de violência que se afirmam como alternativas viáveis e legítimas de ação política?

Usando essa mesma noção de força/eficácia como premissa, o Estudo elencou outra série de perguntas, desta vez a partir da ideia de eficácia da não violência (que o Estudo revelou ser a visão predominante entre as OSCs):

 

  • Se a não violência é eficaz, haveria força na não violência?
  • Se existe força na não violência, qual seria a natureza dessa força?
  • Qual seria o limite de eficácia da força da não violência? Do mesmo modo, qual seria o limite de eficácia de uma força baseada em violência?
  • A noção de força associada à eficácia permite pensar em diferentes modulações táticas de luta política conforme seu grau de violência ou não violência?

A relevância política do debate sobre não violência

Ainda que grande parcela não conheça o assunto (e, muito menos, a perspectiva pragmática/antagonista da não violência), 49,6% das OSCs consideraram o debate sobre a não violência “muito relevante e urgente” e 35% consideraram esse debate “relevante” – num total de 84,6%.

Segundo as organizações, o combate e o enfrentamento da violência justificaria por si só o debate sobre não violência, porque faz ressaltar as várias manifestações da violência e as diferentes maneiras de enfrentá-la. Aqui não violência e combate a violência permanecem em direta associação. 

O outro motivo relevante para o debate é a ênfase no avanço e no horizonte finalístico das lutas. Mesmo organizações que vocalizam um viés crítico à não violência (com base no que entendem ser não violência) – como as que denunciam seu caráter fetichista e paralisador, por exemplo – consideram importante o debate em função da consecução da luta política. Outras organizações afirmam querer aproveitar o debate para abordar e compreender a contraviolência das classes e populações oprimidas e refletir sobre o uso da força e a efetividade e necessidade da violência em alguns momentos ou contextos. Outras ainda enfatizam a importância de se pensar, por meio da não violência, a ação política em caráter estratégico.

O debate sobre não violência tende a ganhar maior apelo em face do cenário de crescimento ou consolidação da extrema-direita, que opera, se mantém e se fortalece pela apologia do ódio e da violência. A consolidação da força da extrema-direita – verificado em todo o mundo – vem acrescentar novas exigências e desafiar as formas de ação política empregadas pela sociedade civil, especialmente devido ao modo como a violência política é franqueada e tratada como prática admissível e normalizável – embora este fenômeno não seja nem novo nem pouco frequente para um significativo conjunto de grupos e lutas nas periferias, campos e florestas do país.

A força da extrema-direita não só pode colocar em xeque as práticas não violentas de caráter empático/conciliatório, mais vocacionadas ao diálogo e ao acordo – ao eventualmente demonstrar sua recusa à negociação e ao entendimento comum, fazendo colapsar as tentativas de convergência e conciliação –, como pode também confrontar a própria natureza não violenta das práticas pragmáticas/antagonistas ao solicitar delas respostas mais duras e agressivas, dado o grau de violência com que a extrema-direita atua sobre pessoas e grupos vulneráveis, organizações e ativistas, em dinâmicas que podem escalar para atos de violência não-táticos e generalizados. Como se não bastasse, esse cenário também trouxe um desafio adicional: a apropriação, pelos grupos de extrema-direita, de métodos de ação tipicamente característicos da resistência civil e do ativismo não violento, num nível tal que, somente pelo uso das táticas (ocupações, marchas, ações simbólicas criativas etc), já pode não ser mais possível distinguir uns e outros.

Os dados e as análises apresentados no Estudo contribuem com tópicos para esse debate: a compreensão do conceito, as diferentes perspectivas de não violência, a reflexão sobre eficácia e força, os riscos da conciliação, as armadilhas da fetichização da não violência (e da violência) etc.

A maior contribuição do Estudo, no entanto, parece residir neste alerta: ativistas e organizações da sociedade civil não podem se dar ao luxo de não discutir ou desconsiderar perspectivas que oferecem resistência ativa à injustiça e à violência, com base em estratégia e táticas bem orquestradas. Não fazê-lo é parecer (ou se manter) frágil, fraco ou incapaz; é já chegar à luta derrotado.

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