A teologia da libertação, evangélicos de esquerda e pela diversidade e feministas cristãs compõe movimentos sociais e lutam Ccontra a desigualdade

Por Marilia Parente

Mural de Mino Cerezo Barredo para simbolizar a teologia da libertação l Reprodução

Na tradição católica, a hóstia representa o corpo de Jesus Cristo vivo entre os homens. Quando lhe foi negada a comunhão com o alimento cristão, o estudante Jair Lima, à época com apenas 15 anos, viu que era hora de abandonar a pequena cidade de Bom Jardim, localizada no sertão de Pernambuco, com destino ao Recife.

  “Eu sofria muito preconceito na paróquia que frequentava, por ser gay e socialista. Achava que iria para o inferno até conhecer um grupo de franciscanos que atuava oferecendo apoio à pessoas LGBTQUIA+. Ser militante era tão importante quanto ser católico”, lembra Jair.

 Três anos depois, o caminho do acolhimento pela luta política conduziu o jovem à coordenação do grupo Diversidade Cristã do Recife,um dos muitos movimentos sociais brasileiros que levantam bandeiras progressistas no campo religioso cristão. 

“Nosso movimento surgiu em 2019, não apenas como um grupo de oração, mas de luta contra a exclusão e o preconceito dentro da Igreja. A Igreja de Jesus Cristo precisa ser a Igreja do acolhimento e do amor. Somos a ovelha colorida Dele”, brinca.

 De acordo com Jair, ainda é comum que a Igreja perca pessoas LGBTQUIA+ para a discriminação. “Não podemos mudar a Igreja de Cristo, mas as pessoas que fazem parte dela e têm um pensamento conservador. A Igreja precisa se lembrar de seus mártires, como Padre Henrique, que morreu pelas mãos da ditadura militar por defender as minorias, e os santos Sérgio e Baco, que eram namorados e foram executados por Roma porque se converteram ao cristianismo”, completa.

Pastoral da Juventude do Meio Popular no Brasil em manifestação l Foto: Reprodução

Teologias da libertação

Para o secretário nacional da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), Filipe Xavier, o grande referencial revolucionário dos movimentos progressistas identificados com o cristianismo segue sendo a teologia da libertação, isto é, uma corrente teológica que considera os ensinamentos cristãos como norteadores para a libertação de injustiças sociais, econômicas, políticas ou sociais. 

“A teologia da libertação nos leva a buscar o compromisso social, aprendemos a fazer uma relação entre fé e vida, entre evangelho e justiça social. Fé não é ir à Igreja e se fechar em uma bolha, evitando as ‘coisas do mundo’, como dizem alguns neopentecostais. O papel da gente é justamente o de se inserir no mundo, ocupando nossas profissões, partidos e sindicatos. Jesus se sacrificou para que o povo não passe fome”, afirma. 

Voltada para jovens de periferia com idades entre 16 anos e 28 anos, a pastoral é uma organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que não a impede de travar embates constantes com a Igreja Católica.

 “Somos uma organização das juventudes para as juventudes, que lida com os ônus e bônus de possuir uma ligação com a Igreja. Fazemos parte dela, mas brigamos muito com sua estrutura, porque temos a missão de atualizá-la”, comenta Filipe Xavier. 

De acordo com o secretário, a CNBB já chegou a interferir para que ações voltadas para o público LGBTQUIA+, por exemplo, não acontecessem. 

“Mesmo assim, a gente faz. Além disso, já defendemos a consagração de homens casados, em regiões em que não a população não conta com um padre. Também reconhecemos o papel das mulheres na Igreja, afinal, a maior parte das pastorais é liderada por elas. Por que não reconhecer essa participação com o sacramento?”, acrescenta o secretário. 

Apesar de provocar tensões no campo religioso, a pastoral não costuma desfrutar do reconhecimento político de outros movimentos sociais “De forma nacional, estamos dentro da Plataforma pela Reforma Política e do Grito dos Excluídos, mas cada estado possui suas particularidades e articulações. Quando a juventude se aglutina e se mobiliza, ela tem um poder transformador gigante.”, lamenta. 

PJMP realiza apresentação teatral l Foto: Reprodução

Evangélicos antirracistas

Em seu mestrado em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), o cientista social Vítor Queiroz de Medeiros se dedicou a estudar o ativismo negro evangélico no Brasil contemporâneo. Para o pesquisador, esses grupos são duplamente minoritários.

 “São minoritários como evangélicos no meio dos progressistas e minoritários como progressistas entre os evangélicos, o que os coloca em um limbo de legitimidade. Uma das coisas que condiciona esses ativismos evangélicos progressistas é que eles precisam se orientar tanto pela aquisição de status como movimento quanto de evangélicos legítimos”, pontua. 

De acordo com o pesquisador, esses grupos se pautam por um repertório de ações que inclui a realização de ações ditas de acolhimento, a tentativa de intervenção em canais alternativos de imprensa, a participação nas redes sociais e em atos organizados pela esquerda, além da produção bibliográfica literária de teologias progressistas. 

“Eles reproduzem em grande medida boa parte das mesmas ações de movimentos sociais mais tradicionais, mas, às vezes, fazem coisas a partir da linguagem religiosa. Uma característica importante desses ativismos é uma ativação flexível dos marcadores religiosos, ou seja, fazer coisas mais para o grupo do que para fora, uma espécie de ‘ativismo para si’ diz o sociólogo.”

Segundo ele, são cultos, seminários, encontros de acolhimento, discipulados de estudos bíblicos e ações em geral “que tem como função principal a socialização deles”,Medeiros, trata-se também de um campo político de ativismo de baixa institucionalidade.” 

Em geral, os movimentos cristãos progressistas não dispõem de recursos e estrutura sólida. Através de um agenciamento de recursos relativamente precário, tais grupos costumam realizar seus encontros em espaços de igrejas progressistas, locais cedidos por movimentos de esquerda ou em praça pública. Todo esse esforço se dá em em função de um anseio de influenciar, através de uma disputa de valores, outros evangélicos a se aproximarem do campo da esquerda. 

“Eles conseguem? Pouco, porque têm dificuldade de acessar diretamente as igrejas. O acesso a elas é controlado pelos pastores e tem uma coisa da conjuntura atual que é de uma polarização política ideológica muito forte, que contribui para interditar o acesso deles às igrejas. Um momento de polarização política ideológica é um momento que oferece muito mais um monólogo do que um diálogo”, pontua. 

O esforço político de setores progressistas evangélicos, contudo, não é novo. “O que nós estamos vendo agora no caso dos ativismos evangélicos progressistas é o que coloco como uma reemergência pública. Não é que isso está surgindo agora, há momentos de irrupção de visibilidade e retração. No fim do século XIX, protestantes foram favoráveis à abolição da escravidão, à laicidade do estado e a ideias republicanas”, comenta Vítor.

 Entre os anos 1950 e 1960, sob influência da teologia da libertação, o teólogo Richard Shull articulou a Conferência do Nordeste. “Ela reuniu intelectuais, teólogos e pastores para discutir como os evangélicos deveriam se portar para contribuir com a revolução brasileira. Alguns desses setores apoiaram as reformas de base de Jango [Goulart]”, completa.

Pastor Henrique Vieira prega o amor com respeito à diversidade. l Foto: Reprodução

“Ação política amorosa”

Pastor da Igreja Batista do Caminho, ator, poeta, professor, ex-vereador e militante de direitos humanos, Henrique Vieira tornou-se nacionalmente conhecido em razão de discursos contundentes em palanques políticos de esquerda, bem como da divulgação de seu trabalho religioso nas redes sociais e plataformas digitais. 

 Embora reconheça a existência de uma base evangélica que dá sustentação a uma política reacionária, o pastor frisa que a maior parte dos praticantes da religião no Brasil é composta por trabalhadores e trabalhadoras, pessoas pobres, periféricas e negras. 

 “O conservadorismo não é exclusivo do campo evangélico. É verdade que o cristianismo hegemônico foi parte central do projeto colonizador no Brasil. O cristianismo, enquanto religião hegemônica institucional, carrega fortes traços conservadores. Agora é preciso fazer duas observações: o Evangelho de Jesus não tem nada a ver com esse conservadorismo e existem ‘cristianismos’, no plural”, coloca.

É nesse sentido que o pastor organizou e mediou a Jornada da Teologia Negra entre os dias 3 e 8 de março. Dentre os convidados para os três dias de encontro, estiveram o ator Lázaro Ramos, a filósofa Katiúscia Ribeiro, bem como os pastores Ronilso Pacheco e Ras André Guimarães

 “A teologia negra dentro do cristianismo é um esforço teórico, mas sobretudo prático de resgatar a dimensão popular libertadora da bíblia. Existe um cristianismo eurocêntrico colonizador que tira da bíblia seu potencial popular, que dela se apropria para manter estruturas de opressão e violência, dentre elas, a branquitude”, explica. Na interpretação do pastor, a bíblia apresenta um Deus comprometido com os oprimidos e que os convoca à organização e à liberdade. 

 “No Brasil marcado pela escravidão e pelo racismo estrutural, se quisermos ser fiéis à bíblia precisamos entender a centralidade da experiência negra em sua interpretação e na vivência do evangelho. Historicamente, a bíblia vem sendo lida pela lente e pelos interesses da Casa Grande. O que a teologia negra faz é ler a bíblia pela lente e pela experiência do quilombo, então a teologia negra busca descolonizar a bíblia, devolvê-la ao seu chão histórico”, acrescenta.

Assim, Vieira ressalta que fé e política são indissociáveis. “O problema é quando a fé é tomada pelo fundamentalismo e fanatismo, tenta se apropriar do estado para impor ao conjunto da sociedade uma determinada visão religiosa e comportamental. Isso é violento, desrespeita a democracia, a diversidade, a pluralidade de crenças religiosas e também desrespeita a não crença religiosa. 

 “Agora, quando a fé estimula a busca pelo bem comum, busca por justiça social, defesa pela causa dos pobres e dos oprimidos, quando a fé se coloca em diálogo num espírito de pluralidade e respeito isso é positivo. Então, a fé pode estimular uma ação política amorosa, generosa, comprometida com a democracia, a justiça social e a pluralidade”, conclui.

Católicas pelo Direito de Decidir defendem a autonomia da mulher sobre o próprio corpo l Foto: Reprodução

Feminismo cristão

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Datafolha em 2020, pessoas negras e mulheres representam a maior parte dos cristãos brasileiros. Enquanto o público feminino corresponde a 58% dos frequentadores de Igrejas evangélicas e a 51% dos fiéis católicos, pretos e pardos respondem por 59% e 55%, respectivamente. As demandas específicas de ambos os recortes estão associadas às lutas históricas do cristianismo e encontram representatividade em movimentos feministas de caráter cristão. 

Fundada no dia 8 de março de 1993, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) surgiu em um contexto de ampla realização de conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) na América Latina, em que eram evidenciadas questões relativas às mulheres negras, pessoas com deficiência, crianças, idosos e pessoas LGBTQUIA+. 

“Venho de uma família totalmente católica e tive uma ligação direta com a Igreja através das pastorais de juventude e das Comunidades Eclesiais de Base. Descobri sobre as Católicas na universidade, onde pesquisava sobre mulheres no catolicismo. Me chamaram muita atenção os discursos subversivos desse grupo, que iam de encontro ao que eu questionava na Igreja, como a submissão das mulheres na instituição”, comenta Letícia Rocha, graduada e mestra em Ciências da Religião e integrante da equipe das Católicas há cerca de três anos. 

Voltada para a luta antirracista com uma abordagem interseccional, a CDD é reconhecida por instigar o debate da justiça reprodutiva dentro da Igreja. Dentre as principais bandeiras encampadas pelo movimento social estão tanto a luta pelo direito à maternidade desejada e segura para a mulher quanto pela possibilidade de escolha da não-maternidade.

 De acordo com Rocha, certos fundamentos da tradição católica cedem espaço para uma reflexão aberta sobre o direito ao aborto. “Não houve um único pensamento sobre o aborto na história dessa Igreja milenar, que nunca teve clareza em confirmar essa questão do aborto como algo inadmissível e pecaminoso. É importante dizer que o aborto não é uma questão de dogma, mas uma matéria disciplinar que a Igreja assume como discussão”, prossegue. 

Ela lembra que o aborto só passa a ser deliberadamente repudiado pela Igreja no século XIX, durante o papado de Pio IX. “Isso é relativamente novo e coincidentemente acontece em um período em que a igreja clama o dogma da Imaculada Conceição e no qual ocorre a revolução industrial. Nele, as mulheres começam, em certa medida, a sair de casa e trabalhar. Então, esse dogma vem para dizer qual é o lugar da mulher, que a maternidade, a procriação, estar em casa e cuidar dos filhos é importante”, explica.

Em 2012, a CNBB chegou a publicar uma nota desaprovando as posturas adotadas pela CDD. No posicionamento, a organização diz que “o grupo tem defendido publicamente o aborto e distorcido o ensinamento católico sobre o respeito e a proteção devidos à vida do nascituro indefeso; é contrário a muitos ensinamentos do Magistério da Igreja; não é uma organização católica e não fala pela Igreja Católica”. 

A cientista da religião frisa que a Igreja sempre teve uma tendência de rechaçar o feminismo. “A gente recebe esse tipo de coisa, estamos cientes da nossa luta, do nosso papel na sociedade e nós seguimos. Esse tipo de repúdio já aconteceu e pode acontecer, no entanto, estamos firmes naquilo que acreditamos e do que podemos fazer na sociedade. Nota de repúdio não muda nossa luta”, acrescenta. 

A Rede de Mulheres Negras Evangélicas é outro movimento social que incorpora a agenda feminista em seu cotidiano. O movimento surgiu em 2018, durante o Primeiro Encontro de Negras Cristãs, realizado pelo Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, no Recife, em torno do tema “Resistência, Espiritualidade e Incidência Pública”. 

“Hoje a organização tem repercussão nacional, com representação nas cinco regiões do Brasil e mais de 110 mulheres inscritas. Temos esse propósito de ser um espaço da sociedade civil, em defesa dos direitos humanos e das mulheres, com esse olhar especial para as mulheres negras”, contextualiza Vanessa Barboza, coordenadora executiva da Rede e integrante do Movimento Negro Evangélico.

Vanessa considera que a atuação política da Rede é um desafio narrativo e historicamente posto, que encontra resistência mesmo quando tenta penetrar espaços políticos ditos progressistas. “As pautas racial, das mulheres e da diversidade acabam encontrando um lugar de ‘desprioridade’ de urgência de suas respostas a demandas, que são históricas. São reflexos das relações sociais de maneira geral, que acabam se refletindo no meio evangélico mais fundamentalista, com um discurso de ódio mais marcado, e também entre nossos ditos pares, no sentido de existir uma indiferença ou não reconhecimento da prioridade do que está sendo colocado”, crítica. 

A coordenadora da Rede lembra que o racismo e o machismo são estruturais na sociedade brasileira e, portanto, presentes em todos os espaços políticos que nela estão inseridos. “A gente pode pensar que em alguns espaços temos rigidez e refreamento dessas estruturas mais ou menos possíveis para cada grupo. A mudança social é possível porque os seres humanos são capazes de mudar e acho que é nessa esperança de mudança e igualdade que a Rede de Mulheres Negras e o Movimento Negro Evangélico caminham. São movimentos progressistas que têm esse intuito de dizer o que parece óbvio: todas as pessoas merecem viver plenamente sua dignidade humana”, conclui.

 

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