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Movimento Amplia mostra como gerar mobilização por uma universidade mais inclusiva

Por Luana Reis Pinto Matsumoto* e Luísa Guimarães Tarzia* – 30/10/2023

Costas de uma pessoa de cabelos encaracolados que veste uma camiseta amarela com o texto "Movimento Amplia". Ela está de frente pra uma sala de aula

O Movimento Amplia recebe doações durante todo o ano e já apoiou mais de 4 mil estudantes | Foto: Nego Junior

No mês de junho de 2020, em meio à pandemia de Covid-19 e as manifestações contra a violência racial no Brasil e no mundo, foi veiculada uma triste notícia para a educação: mais de 300 mil estudantes não tinham pago sua inscrição do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio.

O Enem é hoje a principal porta de entrada para as universidades públicas, federais e estaduais em todo o país. Além disso, a nota da prova também pode ser usada para bolsas de estudo parciais e integrais em universidades particulares. Embora algumas universidades ainda adotem exames próprios, como a USP com o vestibular da FUVEST, também adotam o Enem de forma paralela.

Naquele momento, muitas famílias haviam perdido entes queridos, emprego e renda, somando a pandemia à crise econômica que se agravava. Estudantes do Ensino Médio, se preparando para o vestibular ou para encerrar aquele ciclo, foram especialmente prejudicados(as) no ensino remoto. Muitos(as) jovens não tinham condições de acompanhar as aulas, sem computador ou acesso à internet, além da falta de políticas coordenadas para a docência, também sem ou com poucas condições de ministrar aulas remotas. Muitas pessoas perderam conteúdo essencial para a preparação para o vestibular e Enem, bem como o vínculo escolar, aumentando a evasão em uma etapa da formação que já tem altos índices de abandono: jovens de 15 a 17 anos fora da escola, sem ter concluído a Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio), são cerca de 680 mil, ou seja, 7,1% desta faixa etária, de acordo com a Pnad Contínua 2019.

Nesse contexto, realizar a prova do Enem havia se tornado uma realidade distante, quando não impossível, para muitas pessoas. Somado ao cenário de desesperança geral e falta de perspectivas quanto ao futuro, a taxa de 85 reais da inscrição era impeditiva para muitas pessoas. 

Um grupo que se conheceu na Universidade de São Paulo (USP), participando de um coletivo de extensão universitária de Direitos Humanos e Educação Popular, decidiu se mobilizar para apoiar jovens com a inscrição do Enem em 2020. Assim, arrecadaram doações para pagar as inscrições  para as juventudes pretas, pardas e indígenas de baixa renda. O recorte racial, desde o início, foi um mote essencial para o grupo, mobilizado também pelos protestos antirracistas ocorrendo no Brasil e no mundo. Muitos(as) estudantes relataram situações precárias, em que tinham que escolher entre pagar o gás ou fazer o Enem ou que já tinham desistido de fazer a prova pela perda de conteúdos e falta de aulas durante a pandemia. 

Desistir de uma prova anual significa para muitos não fazer mais o vestibular, encerrando o ciclo educacional de jovens de baixa renda no Ensino Médio. Além disso, diminui a probabilidade de ascensão social, pois a chance de uma(a) filho(a) de famílias pretas e pardas de baixa escolaridade também ter pouco estudo é de 64%, dado que aumenta se considerarmos o recorte de classe: mais de 80% entre famílias pobres. Esses percentuais são mais que o dobro dos EUA (29,2%) e dos países da OCDE (33,4%), que engloba países chamados desenvolvidos.

A partir da primeira campanha, chamada AMPLIA Enem 2020, nos organizamos para realizar mais ações incidindo em vestibulares regionais, como da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), o vestibular indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e da Universidade de São Paulo (USP), uma das taxas de inscrição mais caras do país: 191 reais.

Dificuldades dos estudantes

Nesse processo, pesquisamos sobre as políticas de isenção das taxas de inscrição disponibilizadas pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pelo Enem, e da FUVEST (Fundação para o Vestibular), responsável pela prova da USP.

O processo é burocrático e o prazo de solicitação é muito anterior ao período de inscrições: para prestar a USP, por exemplo, em 2023 o pedido deve ser feito entre 1º de junho e 15 de julho, enquanto as inscrições para a prova são abertas em 15 de agosto, 1 mês depois do encerramento dos pedidos. Em escolas onde jovens não recebem informações sobre o vestibular ou recebem poucos estímulos para seguir estudando e prosseguir para o Ensino Superior, muitos(as) estudantes descobrem o direito à isenção da taxa próximo à data da inscrição da prova, efetivamente sendo excluídos(as) do processo. 

O desmonte das universidades públicas, com cortes de financiamento e atacadas publicamente no último governo, contribuem para o tamanho das políticas de auxílio e permanência de que podem dispor, incluindo as políticas de isenção da taxa do vestibular.

Na gestão do governo Bolsonaro (2018-2021), muitos(as) estudantes que não fizeram o Enem 2020, devido à Covid-19, tiveram seu pedido de isenção da taxa de inscrição negado, devido à ausência no comparecimento da prova no ano anterior. Mesmo em circunstâncias graves e atenuantes, não foi considerado o contexto desses(as) estudantes, prejudicando jovens  de baixa renda de forma desproporcional. Sabendo que a maioria da população de baixa renda é preta, parda e indígena, agravam-se as desigualdades entre esses grupos e pessoas brancas de alta renda, contribuindo para a sub-representação nas universidades: as juventudes pretas, pardas e indígenas (PPI) são metade das juventudes brancas nas universidades.

O quadro abaixo ilustra como as juventudes PPI foram prejudicadas em relação às inscrições do Enem nesse período: o número global de inscrições sofreu queda vertiginosa de mais de 5 milhões para pouco acima de 3 milhões, aproximadamente 40%; e o número de pessoas PPI saiu de 3.530.090 em 2020 para 1.887.931 no ano seguinte, uma diminuição de 46,5%. Também se vê queda no número de isenções garantidas: de 4.794.390 para 2.013.103, cerca de 40% a menos em relação ao ano anterior.

Quadro comparativo de inscrições por raça entre 2020 e 2021

cor/raça
Ano

Número de

pessoas que conseguiram a isenção

Número de Inscrições no Enem

Não 

Declarada

Branca Preta Parda Amarela Indígena
2020 4.794.390 5.783.133 116.883 2.007.637 771.744 2.720.500 128.523 37.846
2021 2.013.103 3.389.832 71.149 1.362.256 411.302 1.457.454 68.491 19.175

Fonte: Enem Sinopses Estatísticas do Exame Nacional do Ensino Médio. Acesso em 20/04/2023

Realizando as campanhas de pagamento de inscrições, coletamos dados socioeconômicos sobre os(as) estudantes que pediram nosso apoio. Por que não conseguiram a isenção?

Primeiro, é preciso saber os critérios definidos pelo Inep para isenção da taxa do Enem:

  • Participantes que estão no último ano do ensino médio de escolas públicas;
  • Alunos que estudaram durante todo o ensino médio na rede pública ou como bolsistas integrais da rede privada, desde que tenham renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo (R$ 1.980);
  • Cidadãos em vulnerabilidade social, com inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).

Assim, estudantes de baixa renda que estão acima do valor per capita estabelecido, por vezes apenas 10 ou 20 reais acima, conforme relatos, seguem sem os meios necessários para o pagamento da taxa são algumas das pessoas excluídas dos critérios.

Com dados de 975 estudantes coletados na Campanha AMPLIA Enem 2022, vemos que a ampla maioria (59,7%) desses estudantes perdeu o prazo para o pedido. Em segundo lugar, 246 estudantes (25,2%) tiveram seu pedido de isenção negado, em especial, pelo envio incompleto da documentação. Chama atenção, ainda, que quase 10% dos estudantes respondentes não sabiam nem que existia isenção da taxa. A minoria – apenas 2,4% – não preenchia os requisitos necessários.

É importante notar o perfil desses 975 estudantes: 62,3% de mulheres cis e 32,1% de homens cis, 83% se autodeclaram como pretos(as) ou pardos(as), 40% recebiam Auxílio Brasil em 2022 e, entre aqueles que concluíram o Ensino Médio, 72,5% estudaram integralmente em Escola Pública.

Vemos que a perda do prazo de inscrição é, ainda, a maior dificuldade desses estudantes, demonstrando como o descompasso entre as datas de pedidos de isenção e datas de inscrição nas provas impactam esses jovens, especialmente dada a falta de informação em suas escolas – a falta de divulgação faz com que percam o período para solicitar a isenção. Se soma a esse quadro a questão que muitas vezes esses(as) estudantes são desestimulados(as) a fazerem o Enem e outros vestibulares, como nos relatam os jovens que atendemos.

Experiência do Movimento Amplia

Considerando que as políticas públicas desenhadas pelas universidades não alcançam o universo das juventudes de baixa renda em sua totalidade, o Movimento AMPLIA, como organização da sociedade civil, faz  campanhas de vestibular para o Enem, anualmente, e atua com  projeto AMPLIA Vestibulares para apoiar inscrições de todo o país em universidades públicas e filantrópicas.  

Atualmente, ações do tipo são realizadas comumente por mobilização interna de cursinhos pré-vestibular, para seu próprio corpo discente. Nacionalmente, desconhecemos outras organizações que apoiam jovens de qualquer estado do país com a inscrição do vestibular, em especial com recorte racial claro como o estabelecido pelo AMPLIA. Dessa forma, conseguimos apoiar jovens que estão fora dos critérios de isenção mas que ainda não têm condições de pagar taxas que podem variar entre 85 e 192 reais.

A organização recebe doações que custeiam o pagamento dessas inscrições, avaliadas caso a caso antes de serem pagas pelo AMPLIA. Cada estudante precisa comprovar renda, enviar documentação e indicar o vestibular e curso pretendido, além de informar a razão de não ter conseguido a isenção da taxa. Essa pergunta, além de orientar o trabalho do Movimento AMPLIA, abre as portas para que estudantes saibam que o benefício da isenção existe e pode ser acessado por jovens de todo o país.

O trabalho é realizado de forma online com o apoio de pessoas voluntárias para a verificação das inscrições e documentação, além da equipe da organização. Cada estudante recebe a confirmação do processo em todas as etapas e, por fim, o comprovante do pagamento da taxa. 

O AMPLIA acompanha durante o próximo ciclo as aprovações em cada vestibular apoiado, por meio de pesquisa nos sites das instituições e comunicação direta com os(as) estudantes atendidos(as), considerando que o Sisu (Sistema de seleção unificado) não divulga lista única das aprovações e que a nota do Enem é utilizada para conceder bolsas de estudo em universidades filantrópicas e privadas. 

Resultados

O Movimento AMPLIA já apoiou mais de 4 mil estudantes com o pagamento de suas inscrições de vestibular, com a contribuição de pessoas apoiadoras do Brasil e do exterior que doam para a organização: é com a força dessa rede, que acredita na equidade racial e social e no poder transformador da educação, que nossa atuação é possível. 

Das mais de 3400 inscrições, temos mais de 80 aprovações confirmadas em universidades públicas e em universidades privadas (com bolsa integral) desde 2020.

Muitos(as) estudantes disseram que esse apoio foi fundamental e que, sem ele, não teriam feito nenhum vestibular. “Eu sou uma das 24 [estudantes aprovadas], e sem algum apoiador não estaria aqui hoje, obrigada!”, disse a estudante de Enfermagem, Jhenyfer, umas das 24 aprovadas na USP em 2023, que recebeu apoio do AMPLIA para pagar a taxa de inscrição.

Mesmo que não tenham sido aprovados, o pagamento da inscrição possibilitou que muitos(as) estudantes fizessem a prova e acreditassem que poderiam seguir tentando, efetivamente contribuindo com sua experiência e autoestima.

A atuação da sociedade civil, por meio de organizações sociais que propõem projetos de apoio a pessoas em situação de vulnerabilidade só é possível pela articulação de diversos atores nesse processo. A escuta de nossos estudantes é prioritária e essencial para uma atuação assertiva e pertinente a essas juventudes, pretas, pardas e indígenas que sonham em estudar na universidade e construir um futuro profissional, investir em crescimento pessoal,  além de alcançar a mobilidade social. A parceria com organizações de atuação local em diferentes estados, com destaque para o trabalho fenomenal realizado por cursinhos populares de todo o país, é um pilar de nosso trabalho. Por fim, sem pessoas voluntárias e apoiadoras que veem o valor das juventudes para a construção do futuro, atuando no presente, o trabalho do Movimento AMPLIA não seria possível.

Para participar

O Movimento Amplia recebe doações durante todo o ano e já apoiou mais de 4 mil estudantes.

É possível participar da campanha de financialmento com valores mensais por meio do Apoia-se.

Para doações pontuais, a chave PIX é: contato@movimentoamplia.org.br

Se você é um estudante que precisa de apoio ou se quer saber mais sobre o coletivo, acesse movimentoamplia.org.br/

REFERÊNCIAS 

AÇÃO AFIRMATIVA E POPULAÇÃO NEGRA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: ACESSO E PERFIL DISCENTE. Tatiana Dias Silva. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Rio de Janeiro, junho de 2020.

Panorama das Classes ABCDE

Relação entre a educação de pais e filhos: Mobilidade intergeracional de educação no Brasil e no mundo. Sinopse de Indicadores Nº 02, dezembro de 2021. Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS)

*Luana Reis Pinto Matsumoto é bacharela em Turismo pela Universidade de São Paulo e pós graduanda em Gestão de Projetos pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” Esalq/USP. Co-fundadora do Movimento AMPLIA.

 **Luísa Guimarães Tarzia é bacharela em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e Atriz pelo Teatro Escola Macunaíma. Co-fundadora do Movimento AMPLIA.

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