Escola de Ativismo

Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Configurações de privacidade no Whatsapp

Configurações de privacidade no Whatsapp

O Whatsapp é um dos aplicativos de mensagens mais utilizados no mundo. Familiares, amigues, contatos de trabalho, restaurantes, marcas, ta todo mundo lá. As recentes atualizações na política de privacidade do aplicativo fez com que muitas pessoas ficassem desconfiadas e procurassem alternativas, o que fez disparar o número de downloads do Signal e do Telegram. Mas parar de usar o Whatsapp não é tão fácil assim.Além de ser o aplicativo mais utilizado, ou seja, onde você encontra grande parte dos serviços e das pessoas com as quais deseja conversar, muitas operadoras possuem planos em que o uso do Whatsapp é ilimitado, gerando uma concorrência desleal com outros aplicativos de mensagens.

Sendo assim, já que muitas pessoas não querem ou não conseguem deixar de usar o Whatsapp, é importante, ao menos, explorar as configurações de privacidade e segurança disponibilizadas no aplicativo para manter as conversas e aconta segura.

Configurações de privacidade e segurança no Whatsapp(em um celular com Android):

Na tela inicial do seu Whatsapp, toque nos três pontos do Menu, e em seguida, toque em <Configurações>. Na tela de configurações, toque em <Conta>.

Privacidade

Na tela de <Conta>, toque em <Privacidade>.
As configurações abaixo evitam que pessoas que você não conhece tenham acesso a sua foto de perfil, Recado e Status do Whatsapp. Isso pode impedir que haters ou golpistas tenham acesso a dados e informações que podem ser usados conta você.

Privacidade > Foto de perfil
Escolher “Ninguém” ou “Meus contatos”.

Privacidade > Recado
Escolher “Ninguém” ou “Meus contatos”.

Privacidade > Status
Escolher “Ninguém” ou “Meus contatos”.

A configuração abaixo pode impedir que você seja colocade em grupos aleatórios ou indesejados.

Privacidade > Grupos
Escolha entre as opções “Todos”, “Meus contatos” e “Meus contatos, exceto…”.

Segurança

De acordo com o Whatsapp, os conteúdos das conversas feitas no aplicativo são protegidos com criptografia ponta-a-ponta, garantindo que as conversas fiquem somente entre você e a pessoa com quem você está conversando. Ninguém mais pode ler ou ouvir suas conversas, nem mesmo o Whatsapp. Cada uma de suas conversas tem um código de segurança único que pode ser usado para confirmar que as chamadas e as mensagens que você envia na conversa são protegidas com a criptografia de ponta-a-ponta. Cada código gerado é único para cada conversa e pode ser compartilhado entre os participantes para confirmar que as mensagens enviadas são criptografadas de ponta-a-ponta. De vez em quando, o código de segurança poderá mudar. Isso pode acontecer se você ou seu contato reinstalarem o WhatsApp ou trocarem de aparelho. Receber notificações quando o código de segurança muda é importante pois essa mudança pode indicar que sua conversa está sendo interceptada ou que alguém pode está tentando se passar pelo seu interlocutor. Caso você receba uma notificação, vale a pena confirmar com a pessoa interlocutora se ela trocou de aparelho celular ou se algo aconteceu.

Para ativar a configuração e receber uma mensagem sempre que um código de segurança for alterado, volte para atela de <Conta>, toque em <Segurança>, e em seguida em <Mostrar notificações de segurança>.

Confirmação em duas etapas ou dois fatores de autenticação

A Confirmação em duas etapas ou autenticação de dois fatores (2FA) é um processo de segurança em que usuáries devem fornecer dois fatores de autenticação diferentes para verificar sua identidade e acessar sua conta. Configurar a confirmação em duas etapas aumenta a proteção da sua conta e pode impedir que ela seja roubada por golpistas ou acessada por pessoas não autorizadas.

Ao criar uma conta no Whatsapp você precisa informar um número de telefone celular que esteja em sua posse. Ou seja, sua conta do Whatsapp é vinculada ao seu número de telefone. Sem um número, você não consegue usar o Whatsapp. Sempre que você precisar fazer login na sua conta (caso troque de celular, por exemplo), você deve informar seu número de telefone. O Whatsapp então enviará um SMS com um código para o número de telefone informado. Você deve então inserir o código enviado na tela do Whatsapp para ter acesso a sua conta. Esse processo garante o primeiro fator de autenticação, ou seja, dessa maneira o Whatsapp consegue confirmar que você é de fato a pessoa dona da conta. Ao inserir o código recebido por SMS você confirma ao Whatsapp que o número é seu, que você está de posse dele, e que, portanto, a conta que você está tentando acessar é sua.

Nos últimos anos, no entanto, esse primeiro fator de autenticação não tem sido o bastante para proteger as contas de usuáries de Whatsapp. Isso porque golpistas criaram maneiras de enganar as pessoas e ter acesso ao código enviado por SMS, mesmo não estando de posse do número de telefone vinculado à conta. Sendo assim, o Whatsapp disponibilizou uma configuração adicional de segurança, possibilitando que usuáries criem um PIN (uma senha)como um segundo fator de autenticação.

Após configurar o segundo fator de autenticação (ou a “confirmação em duas etapas”, como o Whatsapp chama), ao fazer login na sua conta do Whatsapp, além de informar o código recebido por SMS, você deve também informar a sua senha/PIN. Desse modo, sua conta fica mais protegida, já que mesmo que golpistas descubram o código enviado por SMS, precisariam também descobrir a sua senha para ter acesso à conta.

Para configurar a confirmação em duas etapas, toque em:

– Configurações > Conta > Confirmação em duas etapas

Ative a confirmação, crie um PIN, e anote para não esquecer. Existe uma opção de adicionar um endereço de email para recuperação do PIN, caso você esqueça. Para trazer ainda mais segurança para a sua conta, vale a pena não configurar um e-mail de recuperação, mas isso significa que você NÃO PODE ESQUECER O PIN, caso contrário não conseguirá mais usara conta do Whatsapp registrada no seu número de telefone.

Backup

Como dito acima, as conversas realizadas através do Whatsapp são criptografadas ponta-a-ponta, de forma que nem o Whatsapp tem acesso a elas. No entanto, a maneira como o Whatsapp permite o backup das conversas, faz com que a criptografia vá por água a baixo. O Backup é feito no momento em que as mensagens estão “abertas”, ou seja, descriptografadas. Além disso, ele é armazenado não pelo Whatsapp, mas nos servidores do Google, se for um celular com Android, ou nos servidores da Apple, se for um celular com iOS. Ou seja, essas empresas, e mesmo terceiros, como por exemplo, agentes da lei, podem ter acesso ao conteúdo das suas mensagens.

Pode não ser uma escolha fácil. Se você não habilitar o backup, pode perder o acesso ao seu histórico de conversas caso seu celular seja roubado, por exemplo. No entanto, habilitar o backup nos servidores do Google ou Apple, invalida a criptografia ponta-a-ponta.

A decisão é sua, mas a recomendação aqui é desabilitar o backup. Para tanto, siga os passos abaixo:

– Configurações > Conversas > Backup de conversas > Fazer backup no Google Drive
 Escolher “nunca”

Mensagens temporárias

Outra configuração importante de se fazer no Whatsapp é habilitaras mensagens temporárias. Com essa configuração, todas as mensagens trocadas em uma conversa ou em um grupo se auto-destruirão em todos os dispositivos envolvidos na conversa após um período de tempo. No Whatsapp, esse período de tempo é de 7 dias. Isso quer dizer que, após enviar uma mensagem, ela irá se apagar do seu celular e do celular de seus interlocutores após 7 dias. Ou seja, o máximo de histórico que será armazenado nesses dispositivos serão as mensagens trocadas nos últimos 7 dias. Se seu celular for roubado, por exemplo, a pessoa que roubou só terá acesso a um número reduzido de mensagens.

Mas para que isso aconteça, a configuração precisa ser feita em cada conversa e em cada grupo que você participa. Também é importante que você acorde com a pessoa ou grupo com o qual está conversando para habilitar a configuração, já que ela vai impactar todas as pessoas da conversa, não só você.

Para configurar a opção de <Mensagens temporárias> em suas conversas privadas, siga os passos abaixo:

Na tela <Conversas> do Whatsapp, toque na conversa em que você deseja habilitar a opção de mensagens temporárias. Em seguida, toque nos três pontinhos do menu, e em <Ver contato>. Toque na opção <Mensagens temporárias>, e em seguida em <Ativadas>.

Para configurar a opção de <Mensagens temporárias> em seus grupos, siga os passos abaixo:

Na tela <Conversas> do Whatsapp, toque no grupo em que você deseja habilitar a opção de mensagens temporárias. Em seguida, toque nos três pontinhos do menu, e em <Dados do grupo>. Toque na opção <Mensagens temporárias>, e em seguida em <Ativadas>.

Quais dados seu celular e a rede móvel coletam?

Quais dados seu celular e a rede móvel coletam?

A ativista socioambiental Milena Cayres reflete sobre os sentidos que envolvem a palavra “ativismo” e chama para uma conversa a partir de sua condição de mulher militante sobre as contradições e desafios da luta social

Originalmente publicado no Boletim Antivigilância n.15

Introdução

Ao pensarmos sobre vigilância em celulares é comum imaginarmos uma pessoa, grampeando nossas linhas e ouvindo nossas conversas, transcrevendo ou tomando notas do conteúdo, seguindo nossos passos — talvez um agente da inteligência de um governo ou um criminoso trabalhando de uma fábrica abandonada.

Essa prática tradicional da vigilância “direcionada”, que remete à Stasi da Alemanha Oriental e ao modus operandi das várias ditaduras que passaram pelo território latinoamericano na segunda metade do século passado certamente ainda está presente nos dias de hoje. Mas ela por vezes eclipsa, principalmente para o público geral, a quantidade de dados sensíveis que já são criados, registrados, transmitidos e processados por todo o caminho desde o celular, passando pelas antenas e fios, até os servidores de email e mensagens instantâneas e a famigerada “nuvem” (que, no fim das contas, é “apenas o computador de outra pessoa”).

Da mesma maneira, ao tentarmos nos livrar dessa vigilância e proteger nossas comunicações, procuramos soluções mágicas como a capa de invisibilidade do Harry Potter, que nos tornarão completamente indetectáveis com o apertar de dois ou três botões ou o instalar de um programa. Como vemos neste e em outros artigos do Boletim 15, as proteções que temos à nossa disposição costumam agir sobre somente uma parte desses dados, seja pelo escopo em que ela pode atuar seja pelo fato de que determinadas trocas e armazenamentos de dados são necessárias para o próprio sistema funcionar.

Neste artigo, mapeamos os dados que estão armazenados ou são coletados pela infraestrutura de comunicação e pelos componentes do seu celular em seu funcionamento normal.

Por dentro do telefone

Nossos smartphones parecem ser um sistema único, mas por baixo do panos há várias CPUs, memórias e discos agindo em conjunto para que eles funcionem. A maneira como os smartphones são construídos, com os sistemas “System on Chip” que já trazem quase todos os componentes condensados em um único chip, torna difícil identificar elementos fisicamente, mas pode-se identificar três computadores principais – cada um com seu próprio sistema operacional em software ou firmware – mais os componentes de rede, todos armazenando informações de identificação importantes:

SIM card:
Embora sua principal função seja armazenar o IMSI (International Mobile Subscriber Identity) e uma chave privada usada para proteger a comunicação com a rede celular, cada chip presente em celulares GSM é um computador autônomo.

Assim como cartões de banco e outros smartcards, eles podem armazenar múltiplos programas escritos na linguagem Java Card, que podem ser instalados utilizando equipamentos especiais ou pela própria operadora de telefonia através de mensagens SMS de configuração over-the-air (OTA).

O IMSI é um código de identificação vinculado à pessoa proprietária da linha, e permite à operadora saber que quem está falando de um determinado aparelho celular é o(a) cliente X, e então por exemplo descontar créditos ou aumentar o valor da conta desta pessoa.

Baseband modem:
Este computador, que é muito semelhante e mantém grande compatibilidade com os modems presentes nos primeiros aparelhos celulares, executa um sistema operacional proprietário (de código fechado, mantido sob propriedade intelectual de empresas da indústria de telecomunicações) e mantido em firmware (não pode ser facilmente substituído).

Na prática, isso significa que ele é uma completa caixa preta. Em sua memória fica registrado o IMEI (International Mobile Equipment Identity), um código que, de maneira análoga ao IMSI, identifica o aparelho celular para a operadora de telefonia. O principal uso do IMEI pelas operadoras é para impedir celulares roubados de serem usados, através de listas desses identificadores mantidas em colaboração com os(as) próprios(as) clientes e/ou com departamentos de polícia.

Sistema principal:
Esse é o computador com maior poder de processamento e armazenamento, que armazena e executa o sistema operacional principal (Android, iOS etc) e todos os aplicativos que você tem instalados, atuando como ponte entre eles e os outros componentes como o baseband modem, as interfaces de rede abaixo, a tela, a câmera, o microfone etc.

Como os aplicativos executados nesses apicativos podem coletar toda sorte de informações (e, como sabemos, por vezes coletam muito mais do que necessário para seu funcionamento), a quantidade de identificadores que podem estar aqui é grande demais para caber neste artigo. O Código de Publicidade (Android) e o Identificador de Publicidade (iOS) se destacam por serem acessíveis a todos os aplicativos, feitos especificamente para permitir a identificação inequívoca do celular por anunciantes. Ambos podem ter seu uso desativado nas configurações do celular.

Wi-fi e Bluetooth:
Cada um desses componentes tem um “endereço físico” específico (o endereço MAC, de “Media Access Control”) definido no momento de sua fabricação. Se o aparelho está com wi-fi e/ou bluetooth habilitados, ele divulga esses identificadores de tempos em tempos, para quem quiser ouvir, em busca de redes ou dispositivos conhecidos.

Isso é o que permite que shoppings consigam seguir pessoas para extrair padrões de comportamento e conseguir identificar clientes específicos. Tanto no Android quanto no iOS há maneiras de mudar o endereço MAC apresentado pela interface wi-fi; iOS especificamente passou a usar endereços descartáveis gerados aleatoriamente para parte do tráfego desde a versão 8.

Telefonia ou Internet?

Além da complexidade dessa estrutura de telecomunicações e do fato de telefonia e Internet se misturarem até mesmo a nível institucional, a convergência de ambas as tecnologias num mesmo telefone celular faz com que seja difícil discernir quais aplicativos ou ações são considerados como telefonia ou como conexão à Internet, que dirá quais dados cada uma dessas interações gera.

No grafo abaixo estão os principais tipos de atividades comuns em smartphones, associados ao tipo de serviço necessário para elas e quais dados são transmitidos (alguns detalhes serão explicados mais adiante):

Caminho da Telefonia

Apesar de hoje em dia nossos smartphones serem “computadores que por acaso também fazem ligações”, o sistema de telefonia celular está intrinsecamente ligado ao funcionamento do aparelho. Seja pelo fato de que muitas pessoas se conectam à Internet por 3G/4G/LTE, seja porque cada vez mais nosso número de celular é usado como meio de identificação e autenticação (como no login através do envio de tokens), o fato de alguém raramente fazer ligações e enviar SMSs não impede a operadora de telefonia de estar monitorando sua localização 24/7.

Simplesmente por estar ligado e dentro da área de cobertura, qualquer aparelho celular está em constante comunicação com as torres de telefonia que estão em seu raio de alcance, à procura da mais próxima que seja de sua operadora e o permita se conectar para enviar e receber ligações e mensagens.

Estas torres, chamadas de Estações Rádio-Base (ERBs), são distribuídas pela operadora por toda a sua área de cobertura, cada uma em uma célula que cobre uma parte do território – daí o nome de telefonia celular. Essas estações, que além da antena têm também computador e espaço de armazenamento, são ligadas à central da operadora que é quem organiza (e cobra) as ligações, mensagens e, no caso da Internet móvel, provê a conexão à rede mundial de computadores.

Ao emitir o seu constante “alô, sou um celular, tem ERBs aí?”, o aparelho transmite tanto seu IMSI (identificador do(a) cliente) quanto seu IMEI (identificador do aparelho). Isso permite com que as operadoras (que mantém um banco de dados que associa esses números aos dados cadastrais) saibam o tempo inteiro em qual célula um(a) determinado(a) cliente está.

A localização a nível de células já é um dado bastante sensível, mas através da combinação dos dados de múltiplas torres usando técnicas como a triangulação, trilateração e multilateração, é possível mapear com bastante precisão os principais endereços e a movimentação de uma pessoa, principalmente em locais urbanos onde há uma concentração maior de antenas por km². Experimentos feitos pelo Open Data City e pelo jornal alemão Die Zeit mostram em visualizações como uma pessoa pode ter sua vida devassada apenas a partir dessas informações.

Também devido a esse comportamento dos celulares, equipamentos comumente chamados de IMSI catchers, antenas espiãs ou Stingrays possibilitam listar os identificadores de pessoas que estão em um determinado local (como foi feito em uma praça da Ucrânia durante uma manifestação).

A princípio mantidos para fins de cobrança e prevenção de fraudes, os CDRs acumulam informações preciosíssimas sobre clientes. Análises avançadas desses bancos de dados podem ser feitas para fins diversos como prever o status socioeconômico de pessoas ou quais delas podem estar perto de trocar de operadora (churn) e visualizar redes sociais formadas por ligações para investigação de crimes. Forças policiais e judiciais podem em muitas jurisdições acessar os dados tanto nas operadoras quanto nas próprias ERBs, prática conhecida como tower dump.

Infelizmente, essa constante transmissão de dados não pode ser contornada por ser parte intrínseca da telefonia celular, exceto desativando o funcionamento do SIM card nas configurações do celular ou o colocando em uma bolsa que o isole de sinais eletromagnéticos (uma “gaiola de Faraday”) – mas aí as funções de celular e Internet móvel do dispositivo também param.

Caminhos da Internet

O caminho que seus dados farão para chegar “à Internet” vai depender do seu tipo de conexão: wi-fi ou móvel / dados.

Ao acessar por wi-fi da sua casa ou de um café, você estará tipicamente se conectando a um roteador, que está ligado a um modem (ou já possui um embutido), que se comunica através de cabos ou ondas de rádio, talvez com intermediários como a central de distribuição do seu bairro, até o provedor de Internet banda larga.

Já ao acessar a Internet através do plano de dados da sua operadora, você está transmitindo dados pelo mesmo caminho que suas ligações e SMSs e que explicamos há pouco. Seus dados relativos ao uso da Internet, no entanto, ficam armazenados somente na central da operadora – a ERB usada registrará somente que você esteve por ali e que se conectou à Internet através dela (tecnicamente pode ser possível que alguém com controle da ERB a programe para registrar isso, mas isso foge do escopo do artigo e, ao que sabemos, da prática comum). Para todos os efeitos, sua operadora é seu provedor de Internet, e geralmente está sob o mesmo arcabouço legal da sua operadora no caso acima.

Em ambos os casos, todas as suas ações na Internet são sempre vinculadas ao endereço IP da sua conexão, designado pelo provedor para o seu celular, no caso da telefonia móvel, ou para o roteador no caso do wi-fi. Os provedores costumam registrar as conexões feitas (endereço IP de origem, endereço IP de destino e data/hora) por meses ou até mesmo anos.

Como muitas vezes um único endereço IP pode ser compartilhado por múltiplas máquinas, ele tecnicamente não identifica as atividades de uma pessoa específica; legalmente, porém, ele pode ser associado à/ao titular do plano de Internet. Além disso, os roteadores registram os endereços MAC que identificam o componente wi-fi do celular e, cruzando seus dados com os registros de conexão do provedor, é possível discernir quais das atividades atribuídas a um endereço IP vieram de um determinado aparelho.

Embora a Internet permita que nos conectemos diretamente às máquinas de outras pessoas, na prática a maior parte do nosso tráfego é direcionado a servidores, máquinas com grande poder de armazenamento e processamento que intermediam nossas comunicações (como as via e-mail e mensagens instantâneas) ou nos servem conteúdo e serviços online (no caso da Web). Eles também têm acesso ao seu endereço IP e podem guardar seus próprios registros, a seu critério e/ou por determinação legal dos países onde ele e e o(a) usuário(a) se encontram, e associar o IP ao seu login, seus dados cadastrais e que ações foram executadas / que páginas foram requisitadas.

Ao usar serviços de VPN ou proxy, os endereços que constarão nos registros do provedor serão todos de conexões suas ao serviço que você utilizar, enquanto o servidor que você está acessando registrará o endereço IP desse mesmo serviço de VPN / proxy. Esse serviço, no entanto, terá acesso a todo o seu fluxo de comunicação e pode, tecnicamente, registrar e inspecionar os dados da mesma forma que o seu provedor poderia numa conexão comum. É recomendado, principalmente se você não conhece e confia no serviço que está usando, garantir que o aplicativo ou site que você está acessando possua sua própria camada de criptografia (como o HTTPS no caso da web e outros tipos de criptografia de transporte e/ou ponta-a-ponta).

Ao se conectar à Web ou outros serviços utilizando o Tor, os registros conterão conexões a diversos nós de entrada da rede em países diferentes, e os endereços IP dos registros no servidor acessado serão pulverizados entre diversos nós de saída também dispersos pelo mundo. Na prática, isso confere maior anonimato (pois não há nenhuma máquina centralizando o tunelamento da conexão como no caso anterior), mas como o tráfego sairá de diversos pontos escolhidos aleatoriamente é ainda mais importante utilizar uma camada extra de criptografia para qualquer assunto sensível (como logins e trocas de dados que possam lhe identificar).

Apanhado geral

Como usar o Signal

Como usar o Signal

Passo a passo para configurar o aplicativo

O Signal é um aplicativo de mensagens instantâneas com boas opções de privacidade. Por ser um Software Livre, sua qualidade e segurança são publicamente auditáveis ou verificáveis e o desenvolvimento é acompanhado por uma comunidade de pessoas usuárias e desenvolvedoras. Ele está disponível para Android, iPhone, Mac, Windows e Linux.

Muitas pessoas apenas instalam o Signal e começam a usar, mas o que faz do aplicativo uma ótima opção de chat seguro, é, também, as configurações de segurança e privacidade que o aplicativo disponibiliza. Então, para utilizar o Signal com mais segurança, é importante configurá-lo.

Configurações em dispositivos Android (Signal versão 5.4.12)

Na tela principal clique no menu ⋮(as três bolinhas do lado direito da tela), e vá em Configurações.

[SMS e MMS]

 Na tela de configurações, certifique-se que a opção SMS e MMS esteja desligada. O Signal pode funcionar também como administrador de SMS do seu celular, protegendo suas mensagens SMS através do bloqueio do aplicativo. Como no Brasil o SMS não é uma opção popular para troca de mensagens, e gerenciá-las pelo Signal pode causar alguma confusão, desabilitar essa função pode ser o mais recomendado.

[NOTIFICAÇÕES]

 Voltando à tela de configurações, clique em Notificações.

Mensagens
 
Em Mensagens, clique em Exibir e escolha a opção Apenas nome ou Sem nome ou mensagem. Isso impede que o Signal mostre o conteúdo das mensagens nas notificações tanto na tela de menu inicial como quando celular está bloqueado.

[PRIVACIDADE]

 De volta a tela de configurações, clique em Privacidade.

Bloqueio de tela
É importante ativar a opção Bloqueio de tela. Isso significa que depois de um certo tempo aberto sem ser utilizado o aplicativo é bloqueado e só abre com senha. Assim, se alguém pegar seu celular, vai ter dificuldade para abrir o Signal e ler suas mensagens. Você pode configurar o tempo de espera para bloquear a tela. O ideal é que seja rápido. Após essas configurações, todas as vezes, ao abrir o Signal, o aplicativo vai pedir uma senha. Essa senha é a mesma que você usa para desbloquear seu celular, não é possível configurar uma senha diferente. Ele pode pedir também sua impressão digital, caso esteja cadastrada no seu celular. E fique esperte, se o seu celular não possui senha de bloqueio, é fundamental ativá-la!

PIN do Signal / Bloqueio de registro
O PIN mantém as informações armazenadas no Signal criptografadas, para que somente você possa acessá-las. Você pode utilizar o PIN também para acrescentar mais uma camada de segurança ao fazer login no Signal. Ou seja, para ativar o aplicativo em outro celular, além do código enviado por SMS, o Signal pedirá também o PIN. Isso torna mais difícil que outras pessoas tentem usar o aplicativo com o seu número de telefone em um outro dispositivo que não seja o seu, ou seja, clonar ou roubar sua conta do Signal. É importante guardar essa senha em um lugar seguro. Se por acaso você esquecer a senha e não tiver anotado, você não conseguirá fazer login em outro celular, caso mude de aparelho ou seja roubado.

Na mesma tela de configurações onde você habilita o PIN é possível ativar também a opção “Lembretes do PIN”, ao ativá-la o Signal passará a te solicitar esse PIN de tempos em tempos, te ajudando a memorizá-lo. Isso não impede nem atrapalha em nada seu acesso ao aplicativo, é apenas uma ajudinha mesmo para que você não esqueça o PIN.

[CHATS]

Voltando a tela de configurações, clique em Chats.

Backups de chat
Essa é uma configuração que muda de pessoa para pessoa. Quem acha necessário manter um backup das conversas, deve ativar a opção. Quem não acha necessário, deixa desativada. Mas quem ativar deve ter em mente que é necessário cuidar bem do Backup e da frase-chave que o Signal irá fornecer.

[DADOS E ARMAZENAMENTO]

 Voltando a tela de configurações, clique em Dados e Armazenamento.

Gerenciar armazenamento
Em gerenciar armazenamento, configure a opção Manter as mensagens. Você pode escolher quanto tempo quer que o Signal mantenha as mensagens no seu celular. Esta é uma decisão pessoal, mas quanto menos tempo você passar armazenando mensagens, menor será o seu histórico, e menor será o risco de ter suas mensagens expostas.

Configure também a opção Tamanho máximo da conversa, para manter sempre um histórico reduzido de mensagens no seu celular. Caso alguém tenha acesso indevido ao seu aparelho, não conseguirá ler todas as mensagens trocadas, apenas o número mínimo que você configurou. Repare que as duas opções são diferentes, uma diz respeito ao tempo de armazenamento das conversas, outra diz respeito ao tamanho.

É importante entender, no entanto, que essas configurações valem apenas para o seu celular, as pessoas com quem você conversa podem ainda guardar um histórico maior caso utilizem uma configuração diferente.

[MENSAGENS EFÊMERAS]

Para cada conversa e cada grupo é possível configurar Mensagens Efêmeras. Isso faz com que as mensagens se auto-destruam de todos os dispositivos envolvidos na conversa depois de um certo tempo passado da leitura da mensagem. Para configurar essa função a primeira coisa importante a saber é que não há como habilitá-la de uma só vez para todas as conversas, é preciso configurar separadamente cada um dos chats. Abra a conversa ou grupo que queira configurar , clique no menu da conversa ou grupo (as três bolinhas do lado direito da tela), e clique em Mensagens efêmeras. Escolha o tempo que deseja que as mensagens se auto-destruam. Configurar segundos ou minutos pode ser muito pouco tempo, mas pode ser bom para conversas muito sensíveis. 1 dia ou 1 semana pode funcionar como uma configuração padrão. A contagem em cada celular começa a partir do momento que a pessoa leu a mensagem em seu celular. Em grupos, ela só desaparecerá de todos os dispositivos envolvidos se todas as pessoas visualizarem a mensagem.

 

[CHAMADAS]

O Signal permite que você realize chamadas telefônicas, mais recentemente também passou a oferecer opções de chamada de vídeo, inclusive em grupos.

Na tela de configurações, escolhendo a opção Privacidade, você pode habilitar a função “Sempre reencaminhar chamadas”. Com essa função ativada, todas as suas chamadas serão encaminhadas através do servidor do Signal, evitando que seu endereço de IP seja revelado para seu contato. Essa opção cria uma camada de segurança no acesso a uma informação que pode ajudar a identificar você e sua localização, porém pode diminuir a qualidade em suas chamadas.

 

[SIGNAL DESKTOP]

Existe Signal para desktop, mas cuidado! Ele não possibilita a configuração de uma senha de proteção, e as mensagens são armazenadas no disco do seu computador, sem criptografia. Isso pode ser um problema se você não tiver senhas de acesso no computador ou um computador criptografado. Nesse caso, suas conversas ficam vulneráveis em caso de perda, apreensão ou roubo de seu computador.

Podcast: A luta que nós deixaram, spoilers do ativismo climático jovem

De 2019 pra cá, o movimento climático ganhou novas caras, visões e estratégias. As Juventudes mais que nunca abraçaram a causa, e não é à toa! Agoras e Futuros estão em jogo por problemas sistêmicos e estruturais da sociedade como a crise climática, o racismo ambiental, o machismo e o “adultocentrismo”. Mas será que você realmente sabe como tem sido essa luta? É sobre isso que conversamos na audioreportagem A luta que nos deixaram. O episódio conta com a participação de Isvilaine Silva, Paloma Costa e Samara Assunção. Disponível no player abaixo.

Ativismo, a palavra – a origem e a disputa pelo sentido do termo

Ativismo, a palavra – a origem e a disputa pelo sentido do termo

Às vésperas do segundo turno da eleição presidencial em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro afirmava que daria “um ponto final” em todos os ativismos no país. Em maio de 2021, é a vez do delegado Oliveira, que é subsecretário operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro, chamar de “ativismo judicial” o conjunto de críticas da sociedade civil organizada em relação à desastrosa operação policial na região do Jacarezinho, que resultou em 28 mortes. São exemplos que dão a tônica de como o assunto é entendido – e reprendido – em nosso país. Evidentemente, diversos grupos e organizações (aqui e aqui, por exemplo), além de algumas vozes na imprensa (aqui e aqui) responderam à bravata. O que é seguro dizer é que a vida do ativista no Brasil, assim como em larga parte do planeta, não é fácil, tolerada ou até mesmo criminalizada.

Críticas não são exatamente novidades. Se dominação, perseguições e desigualdade cortaram a história da humanidade por milhares de anos, a luta contra elas também. Diversos exemplos de revoltas e revoluções ao longo da história representam a necessidade humana de fazer suas próprias escolhas, de se libertar da opressão em todas as formas e também de ter uma voz. É essa necessidade humana que produz @ ativista.

O ativismo encontra respaldo legal no artigo 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos, que diz que “Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui o de não ser incomodado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões, e o de difundi-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão”. Além disso, no Brasil, temos dois artigos constitucionais que amparam o ativismo:

“Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” – Artigo 5° da Constituição Federal.

“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” – Artigo 220 da Constituição Federal.

O ativismo – aqui e no mundo

Vale procurarmos as origens do ativismo no mundo para nos aproximarmos dos usos e história do termo no Brasil. Ativismo se refere à ação direta em apoio ou oposição a uma política social ou política de maneira ampla. O Online Etymology Dictionary  diz que as raízes da palavra remontam a 1915, quando “ativistas” suecos pediram o fim da neutralidade daquele país na Primeira Guerra Mundial. Há quem diga que os termos “ativismo” e “ativista” foram usados pela primeira vez pela imprensa belga, em 1916, referindo-se ao Movimento Flamingant: que lutava para que fossem reconhecidas oficialmente duas línguas oficiais no país, o neerlandês (ao norte) e o francês (ao sul) – o que aconteceu somente em 1930.

 Sufragistas marcham pelo direito ao voto na Inglaterra. 23 de outubro de 1915

No mundo anglo-saxão mesmo há divergências sobre sua origem: as feministas reivindicam as sufragettes na virada do século XX como pioneiras no uso do termo, e uma exposição no Museu da Cidade de Nova Iorque com o título “Nova Iorque ativista” busca origens na luta pela tolerância religiosa na Nova Holanda de 1650 a 1664, incluindo imagens do documento “Flushing Remonstrance”, escrito em 1657 por um grupo de colonos protestantes que se opunham à expulsão dos quacres da cidade.

Com um pouco de imaginação política, poderíamos encarar os abolicionistas ou até mesmo os quilombolas como ativistas avant la lettre no Brasil da mesma forma como no Norte global identificam Espártaco, que liderou uma rebelião de escravos durante o Império Romano como o primeiro ativista da História. Por fim, a diferença de como ativismo é encarado no mundo anglo-saxão e no Brasil é bem exemplificado no verbete “ativismo” na Wikipedia em português e no mesmo termo em sua versão em inglês: enquanto no primeiro é uma breve menção pouco embasada, no segundo é um robusto verbete recheado de hiperlinks.

A morte de Espartacus.

Foto: Gravura de Hermann Vogel

No Norte global, foi somente após o fim da década de 1960, com a erupção de novos movimentos sociais – feminismo, liberação gay, ecológico entre outros – que os ativistas realmente começaram a proliferar. Nos anos oitenta e noventa, o termo já era amplamente utilizado. Esses movimentos sociais realizaram muito em um período de tempo notavelmente curto, muitas vezes desenvolvendo e adaptando técnicas de organização mais antigas, ao mesmo tempo que inventavam procedimentos abertos, democráticos e não hierárquicos.

Os ativistas emergiram a partir do momento em que as pessoas se afastaram do que consideravam ideologias políticas antiquadas e abraçaram identidades radicais que surgiam naquele momento. No rastro dos anos 1960, as pessoas também, compreensivelmente, queriam ser menos devedoras à liderança carismática, que colocava os movimentos em risco de sabotagem quando figuras de proa eram assassinadas; Martin Luther King Jr., por exemplo.

Manifestação pela Amazônia – Lisboa

Caminhos do ativismo no Brasil

A tarefa de um ativista, em um país com pouca tradição em manter seu estado democrático de direito, nunca é simples. O depoimento da ativista ambiental Miriam Prochnow é exemplar sobre este tema:

“Eu sou ativista ambiental. Minha causa é o bem comum, é a conservação da natureza, da qual tod@s somos dependentes. Da qual depende a sobrevivência da espécie humana. Meu lema sempre foi ‘boca no trombone e mão na massa’, denunciando as agressões ao meio ambiente, mas dando exemplos de como as coisas podem ser feitas de forma sustentável e com diálogo.

Nos meus mais de 30 anos de ativismo, encontrei milhares de pessoas que também abraçaram a causa e por conta disso conseguimos inúmeros avanços que garantem qualidade de vida para tod@s e a proteção mínima da biodiversidade. Já recebi inúmeros prêmios de reconhecimento.

Mas também por conta do meu trabalho, já sofri muitas ameaças, inclusive de morte, fui perseguida e até agredida, física e moralmente, por aqueles que se acharam no direito de impedir que a guerreira verde trabalhasse pelo bem comum”.

O ativismo ambiental, não por acaso, é particularmente visado em nosso país. Bolsonaro foi enfático em 2018, quando era ainda candidato à presidência: “vamos acabar com o ativismo ambiental”. Além da perseguição pública, ações como o rompimento com os acordos do Fundo Amazônia, cujo recurso era dividido especialmente entre o Estado, com 60%, e organizações socioambientais, com 38%.

Se o trabalho dos ativistas já era importante antes, o vácuo se torna ainda maior uma vez que o ataque também ocorre sobre a institucionalidade. O corte em abril no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, quebrando inclusive promessa feita por Bolsonaro na Cúpula do Clima, inviabiliza operações de fiscalização pelo país e soa bem coerente com a afirmação de 2018. Os R$ 83 milhões destinados pelo orçamento oferecido estão abaixo dos mínimos R$ 110 milhões essenciais, garante Suely Araujo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.

Não bastasse as circunstâncias nefastas da atual presidência, vale lembrar que o Brasil é um dos campeões mundiais de assassinatos de ativistas que lidam com a questão ambiental no planeta. País é o terceiro mais letal, segundo relatório da ONG Global Witness, que contabilizou 24 mortes em 2019, quatro a mais que no ano anterior. 90% dos casos ocorreram na Amazônia, onde a destruição de terras indígenas vem se acelerando. A região amazônica inteira assistiu a 33 mortes, 90% delas no território brasileiro. Paulo Paulinho Guajajara, assassinado a tiros em novembro do ano passado no Maranhão, foi um dos casos mais lembrados na região. Ele tinha 26 anos e era uma importante liderança dos indígenas Guajajara. Ainda segundo o relatório, “as políticas agressivas do presidente [Jair] Bolsonaro para estimular a mineração em escala industrial e o agronegócio na Amazônia vêm gerando graves consequências para a população indígena, assim como para o clima global”.

Atividades caracterizadas como “ativismo” no Brasil podem ter suas raízes históricas nas lutas do movimento operário do final do século XIX, por exemplo, mas só ganharam este nome com o surgimento do próprio movimento ecológico e ambientalista, a partir das décadas de 1970 e 80. Entretanto, se o conceito de ativista abarcar figuras históricas como Espartaco, não é possível deixar de fora Zumbi dos Palmares, Cunhambebe – líder das Confederação dos Tamoios – e tantos outros que se organizaram na luta contra a opressão.

Hoje, segundo o Greenpeace, organização mundial que é uma das maiores responsáveis pela popularização do termo, o ativismo é “exercitado em rede e nas redes, ele é o meio em que pessoas praticam sua cidadania política para transformar não só o lugar onde vivem como a si próprias”. Uma boa parte do ativismo no país, por exemplo, muitas vezes recebendo pouca atenção midiática, busca “dar voz às pessoas invisíveis” e fatalmente são os que estão sujeitos a sofrerem violências múltiplas. E há quem critique o termo para além dos inimigos conservadores.

 

Crítica e autocrítica

Há quem critique o termo ativismo/ativista porque “contestar o poder não é um hobby ou uma subcultura – é um projeto coletivo que permeia todas as facetas de nossas vidas”, lidando com um aspecto individualista associado ao termo ou porque “ativistas são tipos que, por alguma peculiaridade de personalidade, gostam de longas reuniões, gritar slogans e passar uma ou duas noites na prisão” ou ainda porque “parecem saborear sua marginalização, interpretando seu pequeno número como evidência de sua especialidade”. Mesmo dentre os anarquistas, tão associados ao ativismo, há críticas contundentes, como a que diz que o ativismo “por sua composição ideológica e organizativa, e procedência de classe, tende, em determinado momento do seu desenvolvimento, a se converter num verdadeiro obstáculo à luta revolucionária e a resistência da classe trabalhadora” e que em razão de suas predileções de classe média, tende a “a formação de uma contracultura sectária fechada em si mesma, inútil para as lutas dos trabalhadores”.

Em alguns casos, o uso da palavra militante é preferível por muitos grupos – lembrando que esse próprio termo também é alvo de críticas por sua origem e correspondência com a ideia de forças armadas e guerras – que veem no ativismo um “nome importado”.

A questão, talvez, seja compreender que termos como democracia, anarquia e ativismo estão vivos e passando por constantes transformações. Lideranças indígenas como Sônia Guajajara afirmam as pessoas me perguntam como me descobri ativista. Eu não me descobri. Eu nasci. Sempre fui de luta”deixando claro que aquelas e aqueles que se identificam com a palavra não correspondem necessariamente ao corte de classe e raça que a palavra pode suscitar por seu uso amplo na Europa e nos Estados Unidos.

Um pensamento de esquerda clássico é de que a prática é o critério da verdade. Se é assim, o real sentido do que significa ser ativista não está no dicionário ou numa enciclopédia. A história é sim importante, mas é no caminhar, no fazer que o ativista e o ativismo se moldam e se declaram. Uns nascem, outros se descobrem, outros se tornam, alguns podem até renegar o termo. Seja como for, é a reflexão, a organização e a ação contra opressões e injustiças o ponto importante que une a todas e todos, independentemente de como se queira nominar.

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TEXTO

Velot Wamba e Mario Campagnani

PUBLICADO EM
08/02/2023

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Uma professora negra

Uma professora negra

Vídeo: Arte de Noemi Martinelle

você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você, morou irmão?

Cê tá dirigindo um carro

O mundo todo tá de olho em você, morou?

Sabe por quê? Pela sua origem, morou irmão?

É desse jeito que você vive, é o negro drama

Eu não li, eu não assisti

Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama

Eu sou o fruto do negro drama

Negro Drama – Racionais MCs

(…) Pra se entender, tem que se achar,

que a vida não é só isso que se vê,

é um pouco mais.

Que os olhos não conseguem perceber,

E as mãos, não ousam tocar,

E os pés, recusam pisar.

(…) Sei lá, não sei, sei lá, não sei

Só sei que toda a beleza de que lhes falo,

Sai tão somente do meu coração.

Clementina de Jesus – Sei lá, mangueira

Este texto é desfecho de elaborações realizadas durante uma fala na Semana de Educação Física da Universidade Estadual Paulista campus Rio Claro de titulo “Representatividade e Identidade da Criança Negra na Escola”

 

Ao elaborar esta fala, me foi dada a oportunidade de repensar minha trajetória na educação, minha negritude, minha atitude enquanto professora negra.

Lamento por esta fase impossível que estamos vivendo no país e no mundo. O descaso com a Educação, com a natureza, com os povos originários e tradicionais, com o que de fato é importante para a constituição de um povo. Estamos assistindo um momento sinistro onde o cerceamento, a censura e a estupidez têm ditado as regras do jogo político. Flertamos com o perigo do avanço autoritário, ditador e fascista.

Divido com vocês duas músicas que tocaram aqui durante a nossa chegada: Racionais MCs, “Negro drama” e Clementina de Jesus, “Sei lá, Mangueira”. Epígrafes que guiaram esta fala e que me acompanham há algum tempo.

Quando pensei no tema desta mesa, “representatividade e identidade da criança negra na escola”, rapidamente me veio à cabeça uma pergunta: E as professoras? Quem são? Seriam Negras?

Com isso levantei algumas possibilidades a respeito das palavras “representação” e “identidade”, e gostaria de fazer este percurso de pensamento junto com vocês, fazendo-lhes algumas perguntas, algumas suspeitas, que vão nos acompanhar durante esta fala. Vamos tentar subverter um pouco o modo tradicional de fazer Educação, como diria Paulo Freire, onde uma pessoa fala a maior parte do tempo (aquela que sabe) e as demais escutam (as que não sabem). Me alinho também a  proposta de bell hooks, autora estadunidense que convido para pensar conosco. Bell em seu livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, fala sobre a necessidade de escutar, ver e sentir a presença da criança negra na escola e, com esta presença, descobrir possibilidades pedagógicas que empurrem a nossa prática a algo desvinculado do modelo universal, hegemônico, racista, patriarcal, saturado em que habitamos.

Sendo assim vamos juntos com a primeira pergunta:

Vou utilizar a palavra professora, tudo bem? Creio que os motivos são nítidos, são óbvios…

Quem aqui teve uma professora negra na Educação Infantil? Levante a mão. Não vamos nos apegar às práticas, aos modos, à auto-identificação, ao colorismo, à pessoa negra retinta exclusivamente, pensem na imagem das suas professoras, nas características visíveis das professoras que vocês tiveram.

Quem aqui teve uma professora negra no Ensino Fundamental I e II?

Quem aqui teve uma professora negra no Ensino Médio?

E finalmente, quem aqui tem ou teve uma professora negra no Ensino Superior?

(Pouquíssimas pessoas levantaram a mão, como prevíamos. No auditório, cerca de 50 pessoas assistiam esta mesa, mas cerca de cinco levantaram a mão no total das perguntas).

Bom, hoje em dia, a gente tem o hábito de perguntar as coisas pro Google, né? Eu não gosto muito, por que o Google anda monitorando demais a gente, recomendo procurarem outro buscador, como o DuckDuckGo, que não fica te perfilando…. Mas, por aqui, vamos de Google mesmo que ele expressa o senso comum, vamos ver o que é uma professora de Ensino Fundamental para ele (aparece uma maioria de professoras brancas no telão).

Para o Google, a professora de Ensino Fundamental tem esta cara. Parece com as nossas professoras?

Bom, então eu pergunto a vocês: como pensar processos de representação da criança negra quando não encontramos professoras negras nas escolas?

Ora, antes de eu ser uma professora negra, eu fui/sou uma criança negra. E sabem quando eu encontrei uma professora negra? Nunca! Eu nunca tive aulas com uma professora negra. Para mim, era como se as questões da minha cor, do meu cabelo, da minha pele, da História, da religiosidade, da luta do meu povo… É como se nada disso existisse. Pelo contrário: eu me sentia tão pequena, tão sem referências, que dificilmente falava, perguntava, opinava durante as aulas.

Na adolescência foi a virada. Me tornei o que, em geral, chamamos de uma “aluna ruim” – “péssima”, na verdade. Eu preferia estudar sozinha. Não escutava as professoras. Ia à escola para encontrar os amigos, e só! Aprendi no antigo primeiro grau que o que queriam de mim na escola era a obediência e não o desejo de aprender. As professoras não estavam dispostas e lidar com as transformações provocadas pelo conhecimento, que à medida que passava o tempo, estavam dispostas apenas a nos aquietar e nos contentar com uma educação que aceitava a dominação.

Foi somente no Magistério, ao fazer os estágios e encontrar um monte de “Lucianas” nas escolas, que percebi como as coisas iam mal. Me incomodava demais estar na escola e ver a reprodução do mesmo modelo, este certo apaziguamento ao qual as crianças, sobretudo as crianças negras, eram submetidas. Dos tempos de estágio aos tempos em que ministrei aulas na Escola Pública de Educação Básica, sentia que as crianças negras vinham até mim e sorriam gratuitamente. Havia uma relação que não se expressava na linguagem. Existia um conjunto de gestos, com risos altos, com um tipo de afeto na confiança, algo que se estabelece com um igual, com um parente, aprendi mais recentemente sobre a “relação de parentesco”, na antropologia de Viveiros de Castro e com os povos indígenas. Crianças negras, taxadas como as piores da escola, encontravam espaço nas minhas aulas – espaço que eu fazia questão de alimentar.

Assim, ganhei a confiança das crianças na escola e a antipatia das colegas racistas, que não queriam saber de onde vinha a tal “indisciplina”, sempre com o discurso de que tal criança era assim porque tinha uma família desestruturada, ou porque era sangue ruim mesmo. “Aquele negrinho não presta, não”, “aquela negrinha do cabelo ruim”. Naquela época eu não sabia muito o que fazer. Se fosse hoje, as teria denunciado.

Eu pensava assim: essas crianças já nascem com 300 anos! Para citar Lilia Moritz Schwarcz, no livro Sobre o autoritarismo brasileiro, foram mais de 10 milhões de pessoas que saíram da África, sendo 4,8 milhões desembarcados no Brasil que, escravizados, conheceram por aqui toda a forma de violência. Impossível não pensar que essas crianças carregam um tanto deste sofrimento, dor, desprezo, medo, por anos, séculos de injustiça! Será que essas professoras não veem que este corpo, o corpo de uma criança negra não está vazio? Ela carrega uma ancestralidade, uma rebeldia, no rosto, na alma, nos olhos, a criança negra carrega uma multidão com ela!

É nesta lida com um semelhante, sobretudo neste encontro com as crianças negras na escola (Rian, Felipe, Pablo, Shine, Carina, Thiago, Rubinho, e tantas outras) que a gente dá de cara com a gente mesma, e aí vem a pergunta: e aí Luciana? Vai ser negra ou não vai? Se vai, aguentará o racismo? A injustiça? O assédio? A linha dura? As piadas? A luta diária por direitos? Se não vai, aguentará a cobrança dos seus? A herança? O não lugar? A ancestralidade gritando? O cabelo alisado? A destruição do seu corpo?

Escolhi ser negra. Decidi aguentar o racismo, a linha dura, lutar pelo direito, pelas cotas. Escolhi uma expressão negra, uma didática negra, uma vida negra.

Como não tive referências, pois não tive uma professora negra para pensar como poderia ser, pude inventar. Tentei e continuo tentando uma prática pedagógica diferente das que me foram ensinadas. Busco combater o modelo universal, racista, sexista, violento, desigual ao qual somos expostos todos os dias.

Por falar nisso vocês assistiram ao documentário Serena x Árbitro ? Serena é enclausurada numa identidade fixa: a mulher negra que grita e esperneia porque se sente injustiçada. A mulher negra que o universo branco, sexista, afirma não estar no seu lugar. Ao assistir o documentário fiquei pensando: A Serena é única. Não existe, nem vai existir outra Serena Willians. Será que é este o grande incômodo? Sua singularidade? Ao olhar o que acontece com Serena, percebemos que o mesmo se dá com outras pessoas negras, pois não é o que ela faz, mas sim o modo como as forças opressoras anulam a sua singularidade, generalizam e a aprisionam em algo fixo – mulher, negra, raivosa, desobediente, que não sabe perder – negro preguiçoso – negro suspeito – negro isso, negro aquilo: uma identidade atribuída ao povo negro pelo opressor.

A mim, o tema da opressão chegou pelo Paulo Freire. E, coincidentemente, pela bell hooks, esta autora estadunidense que trago para esta conversa. Ela conheceu Paulo Freire quando procurava um pensador, uma pedagogia que lidasse com estas questões, que lidasse com o processo opressivo e político que orienta a Educação. Ela estava procurando uma teoria crítica para ajudá-la com suas aulas na universidade. Ela, uma mulher negra, tivera na infância professoras negras e após a mudança de sua família para a cidade, percebera que as mulheres com as quais se identificava, sentia admiração e carinho, haviam desaparecido de sua nova escola.

Neste percurso de pensar modos de escapar das práticas totalizantes e alienantes, que transformam todos os alunos em um só corpo discente e anulam sua singularidade e perdem o sentido do processo de diferenciação, bell me ajudou a dar linguagem a um tipo de pedagogia radical e intuitiva, que busco criar na relação com meus alunos. Seja aqui na Universidade, seja nas escolas com as crianças, seja nas comunidades e aldeias com as quais venho atuando ao longo das pesquisas que realizo, onde a Educação Popular tem centralidade.

Um ponto que gostaria de destacar é o de transgressão.

Sabemos que a escola é um espaço onde a reprodução dos modos de controle e do exercício injusto do poder acontecem quase que de maneira ritualística. Seja nas fileiras, na dificuldade em escutar o que uma criança conta sobre sua vida ou sobre a aula, na incrível falta de alegria em algumas turmas, onde o riso é proibido. Na falta de corpo, onde a expressão, a dança, a vontade de fazer xixi lhe é negada, pois o corpo, sobretudo da criança negra, não é matriculado. É neste espaço que aprendemos o tipo de professora que não desejamos ser.

Transgredir para bell hooks significa romper com todo o tipo de dominação que existe no espaço da sala de aula. Significa, nas palavras dela, “abolir a falta de disposição de abordar um ensino a partir de um ponto de vista que inclua uma consciência de raça, de sexo e de classe social, em que a raiz deste processo está muitas vezes no medo de que a sala de aula se torne incontrolável…”, de “fazer da sala de aula um contexto democrático onde todos sintam a responsabilidade de contribuir”, que significa “transgredir as fronteiras que fecham cada aluno numa abordagem do aprendizado como rotina de linha de produção”, onde as identidades são fixas em apenas um modo de ser e habitar o mundo para dar espaço a um processo onde a aposta é de que cada pessoa possa inventar outros modos de existência, a partir de um processo educacional que com Freire se afirma libertador, onde todos tomam para si a responsabilidade do processo educacional como se fosse uma plantação em que todos temos que trabalhar juntos!

O segundo ponto que destaco é o de ensinar com a pluralidade.

No livro de bell, Ensinando a Transgredir, encontramos a palavra multiculturalidade. Segundo ela, esta ideia está presente em toda a sociedade nos dias atuais. Toda a sociedade se diz democrática e cultiva os melhores gestos e valores, sobretudo na Educação. São muitas palavras presentes nas propostas pedagógicas que expressam este propósito, como “diversidade”, “inclusão”, mas será que basta reconhecer a diversidade? Basta reconhecer a diversidade e manter cada um no seu lugar? Penso que o processo educacional e as relações necessitam de muito mais. A Educação necessita que a gente se misture e se contagie uns com os outros. A educação necessita que a gente se modifique a partir do encontro com a diferença.

Encaremos a realidade. Em todos os níveis, da Educação Infantil à universidade, temos que reconhecer que algum tipo de mudança se faz necessária. Muitos de nós aqui presentes frequentamos escolas onde o modo de ensinar refletia a noção de uma única maneira de pensamento e experiência, a qual sempre acreditamos ser a maneira correta. A maioria de nós aprendeu a ensinar reproduzindo um modelo. Como consequência, a Educação, a escola, tornou-se um espaço em que não se pode ou se deve perder o controle. Então a pluralidade, as diferenças, se consideradas, trariam muitos problemas à escola. A solução encontrada foi anular estas singularidades e focar no conteúdo das disciplinas. As professoras tornaram-se técnicas pedagógicas (e podemos dizer que as coisas estão ficando ainda mais complexas quando palavras como facilitação, gestão e empreendedorismo adentram os currículos, mas isto seria conversa para outra mesa) e sobre isto exige-se um debate profundo sobre o lugar em que o mercado-capital vem colocando a figura da professora, da Escola e da Educação. É, definitivamente, algo preocupante.

Retornando, penso que seja de extrema importância levar em consideração este receio das professoras. Já ouvi de muitas colegas que a sala de aula precisa ser um espaço seguro, local com foco no ensino e na aprendizagem, onde as crianças assistam as aulas silenciosamente e respondam somente quando são estimuladas a isso. O que deixamos de notar é que este ambiente de suposta neutralidade não é nada seguro para uma criança negra que, em sua maioria, se mantém calada prolongadamente, ou simplesmente não interage nem com a professora nem com os demais alunos.

Ouvi de professoras, colegas brancas, a dificuldade que sentem com algumas crianças negras que permanecem caladas durante muito tempo, que não se sentem confortáveis em expor suas ideias na sala de aula.

Aqui percebe-se o jogo das relações de poder centradas na linguagem: quem fala? Quem ouve? E Por que?

O cuidado para que todos na sala de aula estejam atentos ao processo de contribuir para o aprendizado não é uma abordagem comum no sistema chamado por Paulo Freire de “educação bancária”, no qual os educandos são meros depósitos, consumidores passivos de conhecimento desconectados de sua realidade e necessidade.

Uma vez que temos muitas professoras ensinando a partir deste modelo, torna-se difícil consolidar uma educação numa perspectiva comunitária ou numa perspectiva, como anunciaria Gert Biesta no livro Para além da aprendizagem, um espaço mundano, no qual se valorize a pluralidade e a diferença em que educadores preocupam-se menos com o controle e o projeto, e mais com a condição paradoxal da educação que é o seu fazer e o seu desfazer, à medida que os alunos encontram suas vozes, dentro da sala de aula.

bell hooks fala também da “necessidade de instituir espaços de formação no qual as professoras tenham a oportunidade de expressar estes temores e, ao mesmo tempo, criar estratégias de atuação em uma sala e um currículo múltiplo”. E complementa dizendo que “a escuta atenta das vozes dos alunos, fazer da sala de aula uma comunidade são desafios para ambos os lados – professoras e alunos”. Um aluno de bell disse a ela o seguinte: “nós fazemos o seu curso. Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo, a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida…”. Duro isso, não? Toda mudança, vem acompanhada de dor. Não é fácil…

Mas creio que cada dia mais se faz necessário estudar o sentido destes conceitos universais, para que todos possam compreender a proposta da singularidade, numa perspectiva cada vez mais imparcial, pois a escola pode e deve conversar sobre a opressão, sobre o rompimento de modelos racistas, mesmo na ausência de pessoas negras. Uma vez que este tipo de transformação oferece possibilidades para todas as crianças. A transformação deste tipo de sala de aula é tão importante quanto o de ensinar bem num contexto plural. Quando nós educadoras e educadores deixamos que nossa pedagogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da pluralidade do mundo, podemos oferecer aos alunos a educação que eles desejam e merecem.

Por falar na educação que as crianças desejam, me lembrei de uma situação bastante curiosa que vivenciei em uma cidade aqui do estado de São Paulo, quando atuei com formação da rede municipal com a temática dos Projetos Políticos Pedagógicos.

Nesta ocasião realizávamos escutas da comunidade escolar para a construção dos PPP’s. Num dado momento, percebemos que a Escola que os pais queriam era completamente diferente da Escola que as crianças queriam. Enquanto mães e pais queriam aulas de línguas e tecnologias, as crianças da Educação Infantil queriam apenas mais tempo no parque para brincar.

Reunidos na escola após esta constatação, perguntamos aos pais o que eles faziam naquela mesma escola quando estudaram nela.

A maioria lembrou das brincadeiras, casinha, carrinho, areia, tinta. Da alegria de estar no parque, dos amigos, das festas.

Ninguém teve aulas de línguas.

Ninguém teve aulas de computação ali.

Esta história me faz pensar muito nos modelos. Quem disse que uma escola boa precisa ter um montão de aulas? Quem disse que o modelo de hierarquia onde o adulto sabe e a criança não é o ideal? Quem disse que devemos seguir modelos?

O terceiro e último conceito que gostaria de destacar é o de uma pedagogia radical.

Para bell, o temor de perder o controle na sala de aula muitas vezes leva professores a cair num padrão convencional de ensino, em que o poder é usado destrutivamente. Esse medo de perder o controle molda e informa o processo pedagógico docente na medida em que atua como barreira ao envolvimento construtivo com as questões de classe social, de raça, gênero entre outros.

Deste modo, uma professora engajada em uma pedagogia radical reconhece a importância de confrontar construtivamente tais questões e acolhe a oportunidade de alterar suas práticas com a criação de um modo diferente de educar. Quero com isso pensar em um modo de educação que se realiza, como diria Laymert Garcia dos Santos em Amazônia Transcultural, num modo de fazer “com” os alunos e não somente “para” eles. Rompendo definitivamente com o sentido de linha de produção de aprendizagem para a construção de uma atividade educadora onde professora e estudante se formam e se deformam na medida em que o encontro acontece, menos pelo decreto ou pelo que está nas apostilas, e mais na produção do conhecimento conjunto, intensivo, plural, singular. As experimentações que realizo tem caminhado para este sentido.

Aprendi com Espinosa que é preciso construir bons encontros. Busco a cada aula, seja com crianças ou com adultos, a cada encontro na rua, nas comunidades, nas aldeias, sair diferente do que entrei, assumindo uma condição de devir.

Tento me livrar das capturas identitárias que outrora nos foram impostas pelos opressores. Identidades que nos colocam em uma só condição, em um só modo de vida. Sabemos todos que um navio negreiro era composto por uma multiplicidade infinita! Lá existiam pessoas de diversos territórios, povos, línguas, tribos, culturas, etnias da África. E qual foi a primeira violência cometida pelo empreendimento escravagista? Transformar toda essa multiplicidade, toda a potência, toda a possibilidade presente ali em uma coisa só. Apenas Negros. Negros e ponto.

Venho tentando sair desta identidade aprisionada para buscar uma Educação com Freire, que educa para a liberdade. Diria Fanon, liberdade para quem é oprimido e liberdade para quem oprime. Tento lidar com cada aluno de um jeito, observando seus gestos, sua expressão, seu modo de vida, singularizando também as  nossas relações. Algo que traga possibilidades a mim e a eles de sermos mais! De se modificar a cada aula, a cada dia.

Oxalá que mesas como esta não necessitem mais existir, que possamos nos reunir para falar de Educação, de estudos, de produção de conhecimento, onde a criança negra não seja o objeto e não necessite buscar direitos ou representação, pois isso já estará garantido. Com Paulo Freire, encerro por hora: “ser capaz de recomeçar sempre. De fazer, de reconstruir, de não se entregar, de recusar burocratizar-se mentalmente, de entender e de viver a vida como processo, como vir a ser…”

Das Missões às Caravanas – mobilização para educação de jovens e adultos

Por Luciana Ferreira e Velot Wamba

“Um processo educacional que convidava a população a definir junto com a prefeitura, os investimentos a serem realizados na cidade” assim explica Ivan Rubens Dário Jr, educador popular e geógrafo, sobre a experiência das “Caravanas do OP”. Ivan participou deste projeto que aconteceu durante o processo de construção das reuniões para o Orçamento Participativo da cidade de Suzano, região da Grande São Paulo, entre 2005 e 2008.

As Caravanas do OP tratavam a Educação de Jovens e Adultos de uma maneira ampliada. Não era apenas um processo de alfabetização convencional da leitura e da escrita, mas seguindo Paulo Freire, a aprendizagem que ela proporcionava só fazia sentido se viesse acompanhada da leitura de mundo: “a leitura de mundo precede a leitura das palavras”.

A experiência de Suzano guarda similaridades com as Missões Pedagógicas realizadas na Espanha no início do século XX assim como com as 40 horas de Alfabetização de Adultos realizada por Paulo Freire na década de 1960, em Angicos, Rio Grande do Norte, ambos momentos icônicos de como a alfabetização foi muito além de um processo de aprender a ler juntando letras.

           Caravana do Orçamento Participativo em Suzano/SP

As Missões Pedagógicas na Espanha

A Espanha viu, a partir do final do século 19, uma explosão de alternativas educacionais para jovens e adultos, sobretudo a partir da emergência do sindicalismo operário e, em seu interior, das correntes anarquistas e socialistas, com a constituição das primeiras escolas operárias, casas do povo e ateneus populares, por exemplo. Como resposta, a Igreja Católica criou academias cívicas gratuitas para trabalhadores, escolas dominicais e noturnas vinculadas aos Patronatos da Juventude Operária e aos Círculos Operários de Assistência e Educação.

Assim, a educação de adultos tornou-se um direito e ganhou progressiva institucionalidade mediante leis e decretos que instituíram escolas noturnas e dominicais gratuitas, abonaram os salários dos educadores que a elas se dedicassem e normatizaram seu ensino.

Uma inciativa importante e que marcou o período foram as Missões Pedagógicas, criadas em 1922, uma exaustiva campanha de educação popular que alcançou zonas rurais de menor desenvolvimento socioeconômico. Aos adultos, as Missões dirigiam práticas de alfabetização e difusão cultural – conferências, bibliotecas e museus itinerantes, teatro, cinema e música – inspiradas nas experiências de educação informal promovidas pelos socialistas nas Casas do Povo.

Porém, a tensão crescente na Espanha resultou na sublevação militar que conduziu à Guerra Civil (1936-39), durante a qual as regiões controladas pelos republicanos foram alvo de ações educativas dirigidas aos jovens e adultos com forte conteúdo antifascista, seja no front de batalha, seja na retaguarda e nas zonas rurais. Com a vitória das forças da reação lideradas por Francisco Franco, as experiências inovadoras em educação encontraram um fim abrupto, que deu lugar a um ensino marcadamente confessional atrelado aos valores da Igreja Católica, o que representou um retrocesso atroz.

Método Paulo Freire em Angicos

Quase 30 anos depois, no Brasil, tivemos uma experiência revolucionária de alfabetização de 300 adultos no interior do Rio Grande do Norte, na cidade de Angicos, em 1963, que ensinou também direitos trabalhistas. “Depois do trabalho a gente seguia para a aula com o caderninho debaixo do braço. Aquilo mudou a minha vida, porque quando a gente não sabe ler a gente não participa de nada, a gente não é ninguém”, relembra Paulo Alves de Souza, um dos alfabetizados pelo programa em matéria que trata do legado deste projeto. “A grande originalidade foi o respeito ao analfabeto, o respeito à cultura e linguagem do analfabeto. Na época predominavam as cartilhas com a linguagem do alfabetizador, do MEC. Paulo Freire ridiculariza a cartilha do MEC. Alfabetização se faz na discussão de temas políticos”, relembra Marcos Guerra, um dos coordenadores da experiência em Angicos (veja o vídeo abaixo).

Em apenas 40 horas, um grupo de professores liderados pelo educador Paulo Freire, ensinou 300 adultos a ler e a escrever, gerando novas possibilidades de emprego, e dando aos trabalhadores o tão sonhado poder do voto. Paralelamente, ensinou os trabalhadores sobre seus direitos – especialmente os trabalhistas – o que, coincidentemente, culminou em uma greve de trabalhadores da construção civil na cidade. Ironicamente, o projeto em Angicos foi financiado pela Aliança para o Progresso, do governo dos Estados Unidos, que era um braço educacional na luta contra o avanço do comunismo na América Latina.

Vale lembrar que na década de 1960, 40% dos brasileiros eram analfabetos e só um terço das crianças frequentavam a escola. Com a ascensão da Ditadura Militar em 1964, o método Paulo Freire virou uma bandeira a ser combatida, Paulo Freire e outros responsáveis pela missão em Angicos foram perseguidos e exilados, e a experiência só voltou a ser referência e a servir de inspiração para projetos similares massivos a partir da redemocratização em 1985.

E o que temos hoje? 13 milhões de jovens e adultos com mais de 15 anos ainda não sabem ler nem escrever, dado que coloca o Brasil entre os dez países com mais analfabetos no mundo, segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Treinamento de professores que atuaram em Angicos, nas 40 horas de alfabetização

Alfabetização em sentido ampliado em Suzano

As Caravanas do OP foram realizadas pelos conselheiros e conselheiras do Orçamento Participativo e aconteceram em 12 regiões da cidade, para conhecer as 36 prioridades eleitas nas plenárias regionais deliberativas. “Um processo educacional que convidava a população a definir junto com a prefeitura, os investimentos a serem realizados na cidade”, assim explica Ivan Rubens Dário Jr., geógrafo com estudos na área da educação, nosso entrevistado. “Na prática, era decidir se faria creche, unidade de saúde, asfalto, enfim, serviços e obras públicas nos bairros da cidade”. Na chegada às regiões, a condução da Caravana era assumida pelos conselheiros e conselheiras, que apresentavam as características locais para os demais, discutindo três prioridades eleitas, que saíram do papel e ganharam vida no encontro com a população participante.

O processo envolvia ainda algumas assembleias nos bairros, que ofereciam diversas atividades: formação, arte, cultura pra crianças, pros adultos… Era uma partilha sobre a cidade! Uma interação com a cidade e com as pessoas que nela viviam. No caso das Caravanas do OP, o processo de Alfabetização ganhava contornos de educação, pois inspirados em educadores como Paulo Freire, o trabalho buscava alfabetizar na temática do orçamento público, lidando com números, planilhas, dados, mil palavras novas para a população, mas, principalmente, em criar um sentido político para esta atividade. Discutir sobre os rumos da cidade era decidir também sobre a vida em comunidade. Um modo de vida bom para todes.

Ivan, afinal: o que eram as caravanas do Orçamento Participativo? O que acontecia?

Ivan Rubens Dário Jr – Bem, realizadas todas as Plenárias Regionais, o conselho do OP iniciava o seu trabalho. O primeiro passo era conhecer a si mesmo: Suzano é uma cidade de muitos contrastes regionais. Demos o nome de CORPO para o Conselho do Orçamento Participativo. Devagar as pessoas dos diferentes pontos da cidade iam se conhecendo. Conheciam também os conselheiros e as conselheiras indicad@s pelo prefeito para representar as diferentes secretarias municipais. O CORPO tinha maioria popular. Neste processo percebemos que as pessoas conheciam da cidade aqueles lugares, aqueles pontos, aqueles trajetos mais usuais. Ou seja, de casa para a escola, de casa para o trabalho, um pouco do bairro, o centro da cidade, os trajetos mais utilizados e tal. Então, como decidir as prioridades para um ponto da cidade que eu mal conheço?

As caravanas eram o momento dedicado a esse tipo de conhecimento empírico da cidade. Era um dia dedicado a andar pela cidade, pelos bairros, pelas ruas, conhecer equipamentos públicos, praças, ruas e avenidas, falar com as pessoas, trocar ideia, bater papo.

Era um dia inteiro dedicado a isso. Saíamos do centro da cidade em um ônibus da prefeitura e passávamos o dia investigando, descobrindo, conhecendo um pouco mais da cidade de Suzano. O desafio era passar por todas as 12 regiões e olhar, parar, cheirar, sentir os lugares. Nesse esforço, pensar um pouco a respeito da vida e da realidade local, das necessidades locais e, desta maneira, qualificar as decisões a serem tomadas nas reuniões do CORPO. Preparávamos material de apoio com mapas da cidade, com o trajeto do ônibus, com os tempos e as paradas previstas, enfim, com a organização do dia que era definida nas reuniões anteriores à Caravana.

E tem um detalhe interessante: Suzano é conhecida como a cidade das flores. Então, quando o ônibus entrava na região Hortênsia, por exemplo, a dupla de conselheiros/as da Hortênsia apresentava a região dizendo o que sabiam a respeito dela. As características, os equipamentos públicos, os aspectos mais gerais, um pouco da história de formação daquele conjunto de bairros e loteamentos. Veja que as pessoas precisavam se preparar, estudavam bastante. Eu percebia que, ao assumirem tal responsabilidade, passavam a olhar seu bairro com mais atenção, percebiam detalhes, falavam coisas interessantíssimas e, neste processo, descobriam seu próprio bairro – menos naquilo que falta e mais naquilo que tem. Conselheiros e conselheiras faziam uma espécie de mergulho em sua região e, durante a Caravana, conheciam também as outras 11 flores (ops), regiões. Veja que todo o CORPO ia devagarinho ampliando seu olhar para a cidade: uma cidade é maior que os pontos e trechos. Uma cidade é um organismo vivo, é dinâmica, está permanentemente em processo de construção, uma cidade é também seus fluxos. Quero dizer que, ao apresentarem seu bairro, ao conhecerem um pouco mais a sua cidade, conheciam a si mesmos também. Com o tempo, me dei conta que uma espécie de “cidade subjetiva” ia se produzindo, ou seja, ao produzir uma cidade, produz-se também uma cidadania, ou melhor, um jeito de pensar a cidade, um outro olhar para a cidade e, sobretudo, de lutar por ela.

Veja que as pessoas precisavam se preparar, estudavam bastante. Eu percebia que, ao assumirem tal responsabilidade, passavam a olhar seu bairro com mais atenção, percebiam detalhes, falavam coisas interessantíssimas e, neste processo, descobriam seu próprio bairro – menos naquilo que falta e mais naquilo que tem. (…) Com o tempo, me dei conta que uma espécie de “cidade subjetiva” ia se produzindo, ou seja, ao produzir uma cidade, produz-se também uma cidadania, ou melhor, um jeito de pensar a cidade, um outro olhar para a cidade e, sobretudo, de lutar por ela.

Ivan Rubens Dário Jr

Geógrafo e educador popular

Evidentemente que o Pensamento de Paulo Freire está muito presente em todo esse movimento, influencia isso tudo. Em Suzano particularmente, entre 2005 e 2008, nossa equipe lia o Paulo Freire. (…) Mas nossa aposta sempre foi no encontro. Porque se o ambiente é bom, se as pessoas se encontram despidas de verdades absolutas, os conhecimentos e os saberes vão nascendo. (…) Tinha gente organizando as discussões, deixando fluir as conversas, trazendo informações e elementos para o debate. Mas o que rolava mesmo era debate, conversa. Quem disse que um técnico da prefeitura sabe mais que um morador ou uma moradora do bairro?

Ivan Rubens Dário Jr

Esta matéria fala sobre as Missões Pedagógicas na Espanha do início do século XX e sobre a alfabetização de adultos de Paulo Freire em 1963, você vê semelhanças nessas experiências com a caravana do OP?

O Orçamento Participativo tem origens no processo de redemocratização do Brasil. Ele surge de uma maneira bem experimental em pequenos municípios num esforço de democratizar a as decisões e, ao mesmo tempo, mostrar a realidade e o funcionamento da máquina pública. Suas origens estão nos governos locais e nas lutas populares. Quero dizer que os governos populares iam aprendendo a ‘pilotar’ a máquina e esse aprendizado era coletivo. Com o crescimento do Partido dos Trabalhadores e outros partidos também, com o crescimento eleitoral de lideranças políticas populares, o Orçamento Participativo foi ganhando corpo, novas experiências foram acontecendo e se espraiando pelo país. A experiência de Porto Alegre, por exemplo, deu grande visibilidade ao OP, nacional e internacionalmente. Evidentemente que o Pensamento de Paulo Freire está muito presente em todo esse movimento, influencia isso tudo. Em Suzano particularmente, entre 2005 e 2008, nossa equipe lia o Paulo Freire. Me lembro de um grande amigo, o professor Juarez Braga, um sujeito maravilhoso que representava a Secretaria de Educação no CORPO, chegando nas reuniões com livros nas mãos. Lemos juntos, dentre outras coisas, “Educação como prática da liberdade”. Depois lemos juntos “Pedagogia do Oprimido”, e o Juarez, já velhinho e franzino, falando com alegria dos livros em análises interessantíssimas que nos empolgavam muito.

Então eu acho que sim, tudo isso está relacionado e se relacionando até hoje. As experiências populares vão se fazendo e se refazendo. Em Suzano nós não seguimos protocolos. Claro que uma grande plenária popular exige uma organização. Claro que um conselho popular composto por pessoas eleitas livremente precisa de uma organização inclusive em respeito ao tempo que as pessoas estão deixando suas casas para, juntas, construírem uma grande casa chamada cidade. Mas nossa aposta sempre foi no encontro. Porque se o ambiente é bom, se as pessoas se encontram despidas de verdades absolutas, os conhecimentos e os saberes vão nascendo…

Veja, estamos falando de Educação de Jovens e Adultos. As Plenárias Populares aconteciam sempre em escolas e, apesar disso, não havia uma institucionalização. Quero dizer que não havia uma pessoa dizendo o que se deveria fazer, o que se deveria aprender, tampouco como fazer. Tinha gente organizando as discussões, deixando fluir as conversas, trazendo informações e elementos para o debate. Mas o que rolava mesmo era debate, conversa. Quem disse que um técnico da prefeitura sabe mais que um morador ou uma moradora do bairro? Claro que o técnico da prefeitura ou a secretária de Saúde, a secretária de Educação e o secretário de Obras sabem coisas fundamentais para a discussão. Mas quem sabe do bairro, da rua, é quem vive ali. Quem sabe da vida na região Hortênsia é a dona Neide que mora no Jardim Nova América, que conversa com as vizinhas, que frequenta a Unidade Básica de Saúde e participa do Conselho Gestor da Unidade, que participa da comunidade da Igreja, que organiza a barraca do pastel nos dias de festa, que visita as crianças devido ao seu trabalho na pastoral da família. Estou dando um exemplo aqui… Então esses saberes todos iam se encontrando, se enredando e, neste enlace o que saia ao final era um tecido. Fizemos inclusive uma bandeira cujos retalhos simbolizavam cada região da cidade num grande mapa de Suzano tecido pelas muitas mãos do CORPO.

Vou dizer mais umas poucas palavras para finalizar. Nosso OP em Suzano era todo pontuado por cultura. As plenárias começavam com um teatro inspirado no pensamento do Augusto Boal. Nosso material sempre trazia uma música popular, às vezes uma imagem, uma arte plástica. Apostávamos na arte também como abertura de perspectivas, abertura de pensamentos, abertura de possibilidades e horizontes. Trago este elemento para dialogar com as Missões Pedagógicas na Espanha. De alguma maneira e na medida do possível, nós realizamos uma espécie de alfabetização em Orçamento Público. Dentre as decisões do CORPO, a primeira obra inaugurada foi um Centro Cultural, o orçamento destinado à Secretaria de Cultura atingiu números incríveis e nós realizamos festivais de teatro, de cinema, de música, cursos gratuitos de violão etc… Não estou exagerando em dizer que Suzano respirava cultura e democracia.

Passados todos esses anos desta inciativa e, diante da situação da perda de direitos, do desmonte de políticas públicas que vem ocorrendo no Brasil, você vê espaço pra Caravana acontecer novamente? Qual seria o formato, a abordagem?

(risos) Vamos pensar um pouco nesta palavra, na origem (etimologia) da palavra Caravana. Pense comigo num grupo de pessoas nômades andando no deserto com seus camelos. Num deserto não tem avenidas, esquinas, sinais de trânsito, nada disso. Num deserto tem areia, vento e sol. E este grupo faz o seu percurso nômade. O que vemos hoje é um território político cada vez mais demarcado, cujos movimentos são meio que pré-definidos e controlados. Vigiados. Estamos diante de um governo genocida. O Presidente da República não gosta de gente, não gosta da vida. Ele é um cara de mal com a vida. Ele deu inúmeras declarações que nos levam a conclusão que ele prefere a morte, e ele atua para o desmonte das políticas públicas e direitos sociais que garantam, na medida do possível, vida para as pessoas. O Jair se associa a esses grupos que gostam mais de dinheiro que de gente, gostam mais de armas, têm um prazer sádico em matar, em derrubar florestas, em poluir rios, em devastar os sonhos. Eles gostam mesmo é de monocultura.

E também tem este contexto de pandemia que nos coloca em isolamento. Há alternativas? Claro que sim. Sempre há. E quando não há alternativas, isso não nos paralisa porque há também um caminho aberto para inventar, para construir alternativas. Neste sentido, há Caravanas de todo tipo a serem inventadas. Dentro da caravana tem “van”, isso mesmo, van que leva um grupo de pessoas para algum lugar na cidade, para uma viagem, para a praia. Tem as vans do SAMU, do bombeiro, do transporte público complementar. Tem aquelas vans adaptadas que viram escritório, tem as que viram casa até. Ao criar as Caravanas, vamos criando novos modos de viver na cidade, vamos criando novos encontros, novos modos de vida… Vamos criando a nós mesmos. O Paulo Freire transformou esperança em verbo: esperançar. Esperançamos caravanear por aí em nossos ativismos.

 

 

E também tem este contexto de pandemia que nos coloca em isolamento. Há alternativas? Claro que sim. Sempre há. E quando não há alternativas, isso não nos paralisa porque há também um caminho aberto para inventar, para construir alternativas. Neste sentido, há Caravanas de todo tipo a serem inventadas.

Ivan Rubens Dário Jr.

Geógrafo e educador popular

Ivan, você lançou um livro, em co-autoria com Romualdo Dias, “Pedagogias da Cidade: corpos e movimento”. É um relato sobre a sua experiência com Suzano e a política do Orçamento Participativo, certo? O livro tem muita música, muita poesia, muita cultura popular. Conta um pouco pra gente sobre essa escolha em conectar arte, orçamento e educação?

Então, é uma aposta na arte. Tem um cara de bigode grande que nos convida a “fazer da vida uma obra de arte”. Então eu me deixei levar por isso. Deixei minha escrita fluir… Uma ideia trazia uma letra de música ou uma melodia, então eu não brigava, não. Eu aceitava essa deriva e ia tentar entender porque a canção apareceu. O que ela estaria me dizendo? De onde veio a canção? Eu aceitava esses devaneios e me deixava levar. Como se ventos soprando me desviassem um pouco e, nesses percursos outras novas paisagens fossem se revelando. Deixei meu pensamento vagar como os nômades no deserto em caravanas.

Talvez eu sempre tenha me deixado derivar pela arte, sobretudo pelas canções. Escuto muita música desde muito menino. As canções foram, e ainda são, minha escola (no sentido forte da palavra), minha EJA. Assim conheci Clementina de Jesus, Ivone Lara, Cartola, Gilberto Gil, Noel Rosa, Aldir Blanc, Paulo Cesar Pinheiro… Gente mais nova como Chico Cesar, Paulinho Moska, Zélia Duncan, Adriana Calcanhoto. É tanta gente linda fazendo música. Aliás, o que seria da vida, o que seria de nós sem a música? Quero nem pensar… A arte nos atravessa… A arte produz aberturas, a arte alarga as fronteiras do possível.

Minha formação inicial é em Geografia, daí a paixão pelas cidades. Sou um andarilho, adoro vagar, andar sem destino, me perder e me encontrar como canta a Clementina de Jesus na canção “Será Mangueira”, adoro caravanear pelas cidades. Faço isso sempre que posso. Paralelo a isso, tem uma paixão pela Educação: nasci em uma família de professores e professoras. Então, à medida que fui me alfabetizando na gestão da cidade de Suzano e no orçamento público, veio o desejo de convidar mais gente para se alfabetizar também. Mais do que isso, produzir sentidos para a cidade com todo tipo de gente que mora na cidade.

Por fim, acredito na potência política da arte no sentido de abrir perspectivas para a produção de uma singularidade, nem melhor e nem pior – não se trata disso, mas singular, algum tipo de criação, de experiência estética a fim de tornar a vida um pouco melhor e mais bela.

Força Tururu: o midiativismo que mudou a cara de uma comunidade pernambucana

Organização fundada em 2008 por jovens do Tururu, localizado em Paulista, na Região Metropolitana do Recife, usa a comunicação como ferramenta para afastar os rótulos negativos sobre seu território.

Por Marília Parente

Para os integrantes do Coletivo Força Tururu (CFT), uma boa imagem é só questão de foco, ângulo e fotometria. Cansado do estigma de violência que marca os discursos produzidos pela imprensa tradicional sobre a comunidade do Tururu, localizada na cidade de Paulista, na Região Metropolitana do Recife, o grupo de jovens decidiu lançar mão dos próprios celulares, câmeras e microfones para desenvolver reportagens, filmes e videoclipes originais que ressaltam não apenas os problemas, mas a cultura e a autoestima dos moradores. Fundado em 2008, o coletivo constitui uma valiosa experiência de midiativismo de favela, que transformou a comunidade ao propor, em primeira pessoa, um espaço de negociação no qual os moradores do Tururu podem exercitar sua cidadania.

Integrante do CFT desde 2016, o historiador e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB) Elvis Pinheiro realizou seu projeto de dissertação, intitulado “Construção dos Direitos Humanos: Coletivo Força Tururu, em Paulista-PE”, a respeito da atuação do grupo pernambucano. A pesquisa, que se deu por observação participante, é produto de um acompanhamento interno das dinâmicas que estruturam a organização do grupo. “Ele é um exemplo de midiativismo de favela. Essa ideia foi desenvolvida pelo professor de Comunicação Leonardo Custódio, da Universidade de Tampere, na Finlândia. Ela se refere ao uso feito por moradores de comunidades das tecnologias da informação – como câmeras, celulares e internet – para mobilizar seu território”, explica Elvis.

De acordo com o pesquisador, o midiativismo de favela surgiu na cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de denunciar a violência das operações policiais. “A polícia chega dando tiro ou alterando a cena dos crimes, mas os moradores filmam e compartilham essas ações. Alguns dos exemplos de grupos que desenvolveram essa prática são o Coletivo Papo Reto e o Voz das Comunidades”, acrescenta Elvis.

O pesquisador também chama atenção para o engajamento cultural proposto por esses grupos. “Há uma valorização da cultura dessas comunidades e iniciativas como promoção de shows e atividades culturais. O Coletivo Tururu realiza clipes com os artistas de lá, além de exaltar seus moradores, desenvolvendo sua autoestima”, continua.

Elvis pontua ainda que os coletivos midiativistas acabam esbarrando nas dificuldades para estabelecer um trabalho de promoção efetiva, já que este tipo de ação não se dá de forma capitalizada, a exemplo do que ocorre com grandes organizações, que mantêm ações regulares e efetivas graças ao apoio financeiro externo. “Seus integrantes dividem o tempo com algum emprego. Outros problemas são a falta de infraestrutura, desde a ausência de uma boa internet até dificuldades com a manutenção dos equipamentos, e as fragilidades territoriais e de raça. É possível ainda que esses grupos entrem em atrito com os interesses das lideranças políticas e religiosas de seus territórios, pois adotam posturas mais libertárias, que levam as pessoas a repensar suas posições”, acrescenta.

Apesar dos obstáculos enfrentados, coletivos como o Força Tururu possuem enorme capacidade de promover um espaço em que os indivíduos convivam com uma cultura de direitos. “Toda a cidadania básica que é negada ao morador de periferia passa a ser estimulada, a partir de uma participação horizontal. O morador se vê nas imagens produzidas, ganha vez e voz em um trabalho que pode ter grande repercussão”, conclui Elvis.

“Vez e voz”

 

Um dos fundadores do CFT, o educador social Cidicleiton Luiz da Silva conta que o coletivo tem suas raízes nas reuniões promovidas da Pastoral de Juventude do Meio Popular, uma articulação de orientação católica, com atuação nacional. “A gente viu a necessidade de se fortalecer coletivamente. A ideia de fundar o coletivo veio desses programas policialescos, que sempre dão um estereótipo muito negativo ao Tururu. Na época, nos deparamos com a morte de um jovem que conhecíamos, morador de uma comunidade vizinha, o Loteamento Gilberto Freyre. Apesar de o caso não ter ocorrido aqui, a imprensa citou nossa comunidade, parece que para ganhar audiência em cima da desgraça dos outros e a matéria ficar mais forte é preciso reforçar estereótipos”, conta.

O trabalho teve início com a produção do agora tradicional fanzine “Articula Tu Tururu”, que à época ainda se chamava “Nós na Fita”, de tiragem semestral e distribuição feita em escolas e instituições do Tururu. “Esse material já trouxe várias temáticas, da atuação da polícia no município à falta de água na comunidade e de medicação nos postos de saúde. Éramos jovens e queríamos vivenciar a comunidade, fazer algo por ela”, frisa Cidicleiton.

O ativista coloca, aliás, que as denúncias veiculadas pelo fanzine trouxeram algumas dificuldades para o coletivo. “Quando denunciamos a falta de materiais no posto de saúde, a enfermeira-chefe dessa unidade de saúde chegou a dizer que ia processar a gente. Isso só não aconteceu porque ela percebeu que a comunidade ficou do nosso lado nessa situação”, relata Cidicleiton. Nem sempre, contudo, o reconhecimento dos moradores foi imediato. “Algumas pessoas acham que queremos alienar através da comunicação, ou fazer um trabalho político-partidário, porque para elas não pode existir alguém fazendo algo de graça pelo bem coletivo. O Força Tururu nunca foi nosso emprego ou fonte de renda”, ressalta.

Além das fanzines, o coletivo veiculou desde o início, em seu canal do Youtube, materiais em vídeo, idealizados e executados por seus próprios integrantes. Dentre as produções, destacam-se os documentários “Tururu: Justiça, Paz e Vida” (2009), que conta a história da comunidade a partir das narrativas compartilhadas pelos moradores, e “Ele era Meu Filho” (2017), que aborda a violência policial contra a juventude periférica. “Em 2009, a gente participou de um curso da Cáritas Alemã, realizado aqui no Recife. Foram três participantes, contando comigo. Aí no final do curso as câmeras que a gente usou foram doadas para os coletivos e ONG’s que estavam participando”, conta o educador social Carmerindo de Lira Neto, que também participou da fundação do CFT.

Os conhecimentos e equipamentos obtidos alavancaram de vez as produções do grupo. “Quando fomos fazer o primeiro documentário a gente nem sabia filmar, ainda precisamos da ajuda do coletivo Gambiarra. Aí depois dessa formação, a gente começou a pegar mais em vídeo, assim como se especializar em edição. O meu processo nessa história é filmar, mas já fui até repórter em alguns vídeos, assim como fiquei responsável pela elaboração dos roteiros”, completa Neto.

Política do cotidiano

 

A trabalhadora informal Ana Alice Cabral de Almeida, de 22 anos, passou a integrar o Coletivo Tururu depois de participar de uma oficina promovida pelo grupo, tendo a violência das comunidades periféricas como tema. “Foi uma formação muito dinâmica, os assuntos abordados de uma maneira bem interessante, nunca tinha visto nada assim na comunidade. Eu nunca tinha me interessado por política, mas gostei tanto que acabei entrando para o coletivo”, relata. A ativista se orgulha de ter participado de diversas ações educativas no Tururu. “A primeira foi uma campanha de violência contra a mulher. Fizemos cartazes, posters, camisas e vídeos educativos para a comunidade. Mesmo sendo um trabalho voluntário, a gratidão e o retorno das pessoas faz tudo valer a pena. Aprendi a ajudar as pessoas sem querer nada em troca”, compartilha Ana Alice.

A violência contra a mulher, aliás, foi um dos objetos da pesquisa “Impactos da Violência na Vida das Pessoas”, realizada pelo CFT junto aos moradores da comunidade, no ano de 2019. Segundo o levantamento, quase metade (46,5%) do total de 71 entrevistados já presenciou algum tipo de violência doméstica durante a infância. Destes, a porcentagem de 60,6% relatou ter convivido com casos de “agressão contra a mulher”. Os resultados também apontam que 91,5% dos moradores entrevistados já presenciou algum tipo de violência na comunidade, tendo sido a maioria deles testemunha de tiroteios (81,5%), brigas (72,3%) e homicídios (64,6%).

De acordo com André Fidelis, pedagogo e integrante do CFT, o estudo foi realizado com o intuito de embasar o planejamento das atividades do grupo. “Essa pesquisa fez parte da campanha “Uma só Vida”, que teve o objetivo de debater nossa vida na comunidade, marcada por diversos traumas. Dentro da campanha, esses dados nos ajudaram a desenvolver três conjuntos de atividades: um ciclo de debates sobre segurança pública com jovens da comunidade, um processo formativo com esse público, além da organização de um núcleo de comunicação em uma escola pública”, comenta.

Fidelis chama atenção para o fato de que a Força Nacional chegou a atuar no Paulista, entre 2019 e 2021, por decisão do governo federal. Em 2018, o município havia registrado 127 Crimes Violentos Letais Intencionais, segundo levantamento da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS-PE). “Fizemos um debate junto à comunidade, sobre o porquê de a Força Nacional vir para nossa cidade e o que ela verdadeiramente traz, tendo em vista que essa ação foi pouco debatida com a população. A gente enxergou que, por muitas vezes, a Força Nacional se torna uma polícia igual à que temos aqui”, lembra.

Na ocasião, o coletivo promoveu um exercício de reflexão a respeito dos abusos policiais cometidos no Tururu. “Discutimos a necessidade de vôos rasantes de helicóptero da Polícia Militar na comunidade, abordagens que no entendimento da gente eram desnecessárias, assim como acompanhamos casos de violência policial dentro do Tururu. Quando nossos próprios dados nos mostram que a violência policial é muito presente na comunidade, é porque devemos pautar um debate ainda maior”, completa Fidelis.

Justiça, paz e vida

 

A violência policial, contudo, nem sempre foi um traço do Tururu. Moradora da comunidade há 21 anos, a aposentada Gênova Maria Silva, de 63 anos, descreve os pacatos primeiros anos do então Loteamento Jardim Justiça, Paz e Vida, conforme eram chamados os 23 hectares de terra cedidos pela Mitra Arquidiocesana de Olinda e Recife a 81 famílias carentes. A doação foi oficializada em setembro de 1982, pelo então arcebispo Dom Hélder Câmara. “Eu trabalhava na Igreja das Fronteiras, nas obras de Frei Francisco, uma instituição ligada a Dom Hélder. Cheguei para contribuir com a organização da comunidade, porque eles doaram o terreno, mas não tinha nada. Lutamos para conseguir água, energia elétrica, posto de saúde e transporte, pois essa região ainda era muito afastada de tudo”, lembra.

Os esforços pela transformação da área em comunidade foram concentrados pela Arquidiocese na Operação Esperança, a cujo relatório sobre o processo de urbanização da área, produzido em 1996, a reportagem teve acesso.

O documento descreve uma área de 223.100 metros quadrados, de topografia plana com duas depressões chamadas lagoa e canal, constantemente alagados. “Uma média de 400 famílias já habitam o loteamento, porém é enorme o seu estado de pobreza, uma vez que: 60% (aproximadamente) das habitações são cobertas de palha com chão batido […]. não existe rede de abastecimento de água, o que justifica o fato das famílias utilizarem precárias cacimbas, pagar bomba (pouquíssimos), não possui rede geral de esgoto e a drenagem das águas fluviais e do consumo doméstico é feita no leito das ruas, os sanitários são improvisados e na falta deste o próprio quintal serve de depósito de dejetos”, descreve o relatório.

Dona Gênova ainda se recorda das plantações de coqueiros que caracterizavam o território, bem como do esforço para erguer as primeiras casas de alvenaria. “Foi um projeto com a Cohab. Na época, ganhei um lote e resolvi vir morar aqui, construir minha casa. Foi a organização da comunidade que tornou nossas conquistas possíveis”, comenta.

Pelos serviços prestados ao Tururu, Gênova foi uma de suas três moradoras de longa data que receberam homenagem do CFT. Agora, os frutos de sua luta se materializam em um Ipê roxo, típico da região, plantado diante do prédio do Instituto Educacional e Social de Artes e Ofícios Dom Hélder Câmara, localizado na Rua Nossa Senhora do Carmo, no Tururu. “É uma emoção grande ser reconhecida por uma juventude tão atuante como uma pessoa que contribuiu com a comunidade. Tentaram construir essa imagem negativa da gente, mas hoje tem uma reação. O Coletivo Tururu mostra a comunidade combativa que somos”, conclui.

Organizações de mulheres lutam contra risco de controle reprodutivo pelo Estado

Sem diálogo amplo com a sociedade, medida do Ministério da Saúde oferta implante de anticoncepcional apenas para mulheres consideradas socialmente vulneráveis

Por Petra Fantini

O Sistema Único de Saúde (SUS) ofertará implante subdérmico entre seus métodos contraceptivos de longa duração (LARCs). Mas, para quem? Publicada em 19 de abril, a Portaria SCTIE/MS Nº 13 condiciona a incorporação do anticoncepcional de uso contínuo à criação de um programa voltado às mulheres consideradas socialmente vulneráveis. Sem delinear como o medicamento será ofertado para essa população, o texto abre brecha para interpretações eugenistas e aplicação do tratamento sem consentimento.


O público-alvo inclui mulheres em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e
em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos. Além de não considerar indivíduos transgêneros, o texto da Portaria não explica como o programa seria estruturado e não informa se o implante será exclusivamente disponibilizado para essas mulheres.

“A Portaria veio com um alvo”

Essa é a conclusão de Santuzza Alves de Souza, trabalhadora sexual coordenadora do Coletivo Rebu, que questiona a falta de diálogo do Ministério da Saúde com os grupos abarcados pela decisão. “A Portaria 13 veio de supetão, pegou a gente de surpresa. Os movimentos de mulheres em situação de rua, privadas de liberdade, trabalhadoras sexuais, entre outras, não puderam opinar”, denuncia.

O pulo do gato está no que não é dito: Santuzza pontua que o texto não diz que é um método compulsório, mas também não diz que não é. “A decisão deixa um espaço aberto para esse governo, que a gente sabe que tem todo um trabalho fascista, agir de forma higienista. Nossa preocupação é: e quem não quiser usar esse método? Será que essas mulheres em situação de rua vão poder dizer não? Será que as mulheres em privação de liberdade, que vivem sob um sistema carcerário violentíssimo, vão poder dizer não?”, questiona.

Os movimentos sociais, segundo a trabalhadora sexual, entendem que essa é uma medida racista, preconceituosa, “para que a gente não ponha filho no mundo mais”. “Entendemos que eles [o governo federal] querem nos castrar. Já vem o preconceito, o estigma, as violências, tudo. Imagina, se eu quero colocar o implante, eu tenho que ir no posto de saúde e me identificar como prostituta, que tem HIV, que é moradora de rua. Isso é muito invasivo, nos constrange”, concorda a também trabalhadora sexual Fátima Muniz, a Jade, coordenadora do coletivo Clã das Lobas.

Organizações se manifestam

Representantes das mulheres em situação de rua, com HIV/Aids, privadas de liberdade, trabalhadoras do sexo e em tratamento de tuberculose se organizam para tenta combater a medida. Os coletivos Rebu e Clã das Lobas estão entre os que assinaram a nota conjunta da campanha #EugeniaNão #AcessoUniversalSim, que lembra que “a seleção de determinados grupos para experimentos reprodutivos ou estratégias de controle natalista é uma marca indelével da história do Brasil e da saúde reprodutiva mais amplamente”.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) também se manifestou em texto pela integridade, autonomia e autodeterminação reprodutiva das mulheres. O Movimento Nacional das Cidadãs Positivas (MNCP) afirma que a decisão possui tom discriminatório. Manifestação da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras pontua, por exemplo, que “não há um motivo para limitar a terapia antirretroviral a ser utilizada para o fornecimento do implante para mulheres que vivem com HIV, uma vez que já se descartou que o dolutegravir (remédio usado no tratamento) cause malformação fetal”.

Futuro

Ofício conjunto dos Núcleos de Defesa da Mulher (Nudems) nº 03/2021 – assinado pelas coordenadoras dos Núcleos Especializados de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres das Defensorias de 13 estados –, enviado para o Ministério da Saúde em 2 de maio, questiona a fundamentação legal e técnica para essa escolha do grupo de mulheres. As defensorias ainda não obtiveram retorno sobre a demanda.

Deputadas federais de partidos de esquerda apresentaram em Plenária, em 26 de abril, um projeto de decreto legislativo para sustar a Portaria nº 13, tendo como um dos argumentos que o Relatório de Recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) concentrou sua análise em questões orçamentárias, “longe de avaliar as implicações de uma política que beira o controle de natalidade e afronta a lei que trata do planejamento familiar”. O texto ainda não foi votado.

Coletivos e organizações da campanha #EugeniaNão #AcessoUniversalSim, entraram com pedidos de Acesso à Informação para o Ministério da Saúde sobre os seguintes pontos:

  1. Qual o rito para elaboração da Portaria (passou pela área técnica, pelo conselho etc)?;
  2. Demonstrativos de cálculo que embasaram a decisão de limitar a oferta a grupos específicos;
  3. Estudos que levaram à edição da portaria e à escolha dos grupos definidos como vulneráveis;
  4. Pareceres técnicos que embasaram a edição da portaria; e
  5. Consultas a atores e instituições da sociedade civil que tenham acontecido, especialmente aquelas mencionadas no parecer da Conitec sobre o assunto.

 Em resposta, o Ministério afirma que “os benefícios dessa tecnologia [implante subdérmico de etonogestrel] e a evidência de eficácia e segurança são reconhecidos, no entanto, o alto impacto orçamentário impossibilitou a recomendação favorável à incorporação para toda a população feminina”. O texto não apresenta os estudos solicitados no item (iii), se limitando a dizer que o segmento populacional foi “delineado pelas Secretarias de Vigilância em Saúde (SVS) e de Atenção Primária à Saúde (SAPS) do Ministério da Saúde e apresentado na 93ª Reunião da Conitec”. Leia a nota na íntegra. Não há novas ações jurídicos previstas pelo movimento por agora.

Histórico

O implante subdérmico de etonogestrel é aplicado sob a pele do braço e libera progesterona continuamente no organismo por três anos, sendo um dos métodos mais eficazes de contracepção, superior a 99%, equivalente ao da ligadura de trompas.

Segundo nota da Abrasco, em 2015 a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) já havia solicitado a incorporação do implante subdérmico com etonorgestrel, porém voltado a adolescentes entre 15 a 19 anos, tendo sido ressaltado também naquela ocasião um público preferencial designado como “populações especiais” ou “grupos vulneráveis” como beneficiários do método. A Febrasgo, inclusive, se declarou favorável à Portaria SCTIE N° 13/2021, contanto que “respeitados os critérios de elegibilidade e da autonomia da mulher”.

Na época o pleito não obteve êxito, diferente do que ocorre em 2021. O proponente desta segunda tentativa, o laboratório farmacêutico Schering-Plough, sugeriu que o método fosse disponibilizado a mulheres entre 18 e 49 anos. O Relatório de Recomendação da Conitec, no entanto, diz que “as evidências são favoráveis ao implante de etonogestrel, mas que a ampla população proposta pelo demandante [mulheres entre 18 e 49 anos] juntamente com o impacto orçamentário estimado, dificultaria a incorporação desta tecnologia no SUS”. Mantendo sua avaliação econômica, a Conitec defende que a medida vai gerar uma economia aos cofres públicos que totaliza R$ 1,2 bilhão, ao final de cinco anos.

Contatado diversas vezes, o Ministério da Saúde não respondeu os questionamentos da reportagem: o contraceptivo será de acesso universal aos usuários do SUS? Como será o funcionamento do programa? Como foram definidos os grupos de mulheres contempladas? A colocação do implante será obrigatória para esse público-alvo? Entidades representativas dessas mulheres foram consultadas para a elaboração da Portaria? Como o Ministério da Saúde responde às críticas de que a Portaria estaria tolhendo o direito reprodutivo das mulheres incluídas no programa?

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Por Penhas e Izadoras: trabalhadoras sexuais criam rede de apoio na pandemia

Coletivos de Belo Horizonte unem forças para contornar falta de trabalho e de apoio do Estado

Por Petra Fantini

Fotos de Cadu Passos

“Nós estamos fazendo o trabalho que era para ser feito pelo poder público”. A declaração de Fátima Muniz, a Jade, coordenadora do coletivo Clã das Lobas, ilustra bem como as organizações de mulheres trabalhadoras sexuais estão lidando com a pandemia de Covid-19. As crises sanitária e econômica do período, que se retroalimentam, espantaram quase todos os clientes do circuito de hotéis do centro expandido de Belo Horizonte, conhecido como hipercentro – a estimativa conta que o movimento esteja até 80% menor –, fazendo com que as trabalhadoras precisem contar com sua rede de apoio para subsistência.

Jade explica: “A maior parte dos clientes são o quê? Trabalhadores. A pessoa que tem alguma coisa pra fazer no centro, aproveita e passa nos hotéis. Mas todo mundo tá desempregado, quem tem dinheiro? Os R$ 30 reais que paga em um programa vão fazer falta na casa dele”.

“Não é só alimentação. Você tem aluguel, luz, água. Se sua criança fica doente, é um remédio que você tem que pagar. E, sem renda, você fica sem condições de fazer isso tudo”, alerta Santuzza Alves de Souza, coordenadora do Coletivo Rebu. No início da pandemia, o coletivo fez um folder orientando as trabalhadoras sobre o uso de máscara, como se comportar com o cliente e a importância de trocar de roupa ao chegar em casa, para não contaminar o lar. O kit, que continua a ser distribuído, é composto também por duas máscaras, preservativo, álcool em gel e gel lubrificante.

Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras

A pandemia de coronavírus foi o pontapé inicial de um projeto que servirá de amparo às trabalhadoras sexuais a longo prazo, se o piloto for bem-sucedido. A Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras, em funcionamento há três meses, foi pensada prevendo o fechamento dos hotéis do hipercentro onde as trabalhadoras sexuais atuam. Os estabelecimentos acabaram não fechando, mas a moradia segue acolhendo aquelas impactadas tanto pela falta de trabalho causada pela crise sanitária quanto por quaisquer outros problemas que afetem sua saúde física e mental.

O nome homenageia duas trabalhadoras sexuais. “Penha foi assassinada do meu lado, a duas portas de distância, lá no hotel. E Izadora foi uma mulher trans que foi assassinada também. São duas mulheres que morreram com violência, então queríamos homenagear uma mulher cis e uma mulher trans no nome da Casa”, conta Jade, uma das idealizadoras do projeto.

Santuzza Alves de Souza, do Coletivo Rebu

O apartamento, localizado no bairro Jardim São José, pode abrigar um número não exato de mulheres, quantas forem necessárias no momento. No início, as regras eram mais rígidas: não era permitido sair durante o período de hospedagem, para proteger as demais moradoras do risco de transmissão de Covid-19. O modelo, no entanto, não atendia à realidade das trabalhadoras. Para não as afastar, Jade decidiu ser mais maleável. Hoje, qualquer trabalhadora sexual que precise ficar por alguns dias, ou que precise morar por tempo indeterminado, é bem-vinda. A única condição é não ter filhos, pois a moradia não está preparada para receber crianças.

“Tinham muitas mulheres com a saúde mental precária. Lá elas podem ficar dois, três dias, dormir, descansar, se alimentar melhor. Ao trabalhar em hotel, você acorda pensando na diária. Eu falo isso porque eu trabalho dentro de hotel faz 20 anos. Você já acorda com uma dívida de R$ 120, R$ 170. E não tem movimento, os clientes sumiram. E os donos dos hotéis não amenizaram, não baixaram o valor diária, não”, relata a coordenadora do Clã das Lobas. Também há 20 anos atuando como trabalhadora sexual, Claudineia Mota Vieira é uma dessas mulheres que passam algumas temporadas no local, em busca de descanso e de cuidar da saúde. “A dificuldade lá fora tá muita, pra poder ficar nos hotéis paga muito caro, e não tava dando mesmo”, conta.

Além de um local para dormir e se alimentar, a Casa também oferece cursos de artesanato, aromatizantes, massagem tântrica, serviços de beleza (design de sobrancelhas e alongamento de cílios e unhas), entre outros. O objetivo é, além de entretê-las e trabalhar sua saúde mental, capacitá-las e possibilitar uma fonte de renda extra. Jade é enfática ao garantir que não quer tirar ninguém do trabalho sexual, mas que a pandemia as ensinou sobre suas próprias vulnerabilidades. “Nós temos que ter outro modo de ganhar dinheiro. Nós percebemos que estamos envelhecendo, que nós somos vulneráveis, que ninguém nos ajuda. Somos nós por nós mesmas”, diz.

As professoras das aulas são outras mulheres cis e trans trabalhadoras sexuais. Depois de capacitadas, as ex-alunas, trabalhadoras que estejam hospedadas lá ou não, podem passar o conhecimento adiante para as colegas. Os cursos e demais despesas da Casa, atualmente, são financiados pelo Fundo Elas, investimento social voltado exclusivamente para a promoção do protagonismo das mulheres, e pela Escola de Ativismo.

Dona do bar vizinho ao prédio onde fica a moradia, Maria de Fátima Santos vive uma relação de troca com as acolhidas. “Até eu de vez em quando participo dos cursos. Vou lá bater papo e acabo fazendo junto com elas, faço almoço, ajudo com alguma coisa. É bom porque eu sou sozinha, né, então é uma terapia. Vou ajudar e acabo sendo ajudada”, conta, entre risos. O movimento do seu bar, segundo Fátima, “caiu 99%” durante a pandemia. “Pra mim tá sendo ótimo. Me distrai, não fico pensando só em dívida. Me tranquiliza um pouco”, afirma.

A ilustradora Izadora Flor entrou no início do projeto. “Como todo mundo sabe, na realidade das mulheres trans a prostituição é algo que é imposto. Eu não necessariamente exerço a profissão. É bom deixar isso bem claro, assim, eu não estou com vontade. Eu trabalho com ilustração no Instagram, mais vinculado à saúde mental e sexual de mulheres trans, e tenho outros projetos pessoais voltados para a arte mesmo”, conta Iza, como é conhecida. Hoje, ela já voltou para a casa de sua família. Através do curso de massagem tântrica oferecido pelo projeto, ela ganhou uma bolsa no Kaya Terapias para seguir seus estudos.

Em julho, a participação do Fundo Elas se encerra e entra o Fundo Positivo, Fundo de Sustentabilidade às Organizações que trabalham no campo do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Mobilizado pela Aprosmig, o Fundo Positivo ficará responsável apenas pelo aluguel da Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras, portanto tanto a Associação quanto o Clã da Lobas estão em busca de parcerias e de doações para manter o pleno funcionamento do local. A longo prazo, o objetivo é mudar para um local maior, com mais estrutura, e regulamentar a Casa de Acolhimento.

Jade, trabalhadora sexual, coordenadora do Coletivo Clã das Lobas

Duas mulheres

Penha estava trabalhando em um hotel da rua Guaicurus – rua do baixo Centro de Belo Horizonte conhecida por reunir diversos hotéis onde trabalhadoras sexuais atuam – no dia em que foi assassinada no quarto, por um cliente. Ela tinha mais de 60 anos. “Foi uma dor, uma coisa assim, surreal. Foi o segundo assassinato que eu presenciei, a gente sente um pouco na alma. Pode ser uma de nós. Ela passou pela gente, riu, nos cumprimentou, entrou no quarto e meia hora depois foi morta”, conta Jade. O suspeito, que hoje responde à acusação em liberdade e ainda frequenta os hotéis da região, culpa a vítima, alegando que foi impedido de sair do quarto.

Já Izadora viu o fim de sua vida em um ponto de ônibus perto de casa, a caminho do trabalho. Segundo Jade, não se sabe se o crime foi motivado por transfobia. “Ela fazia parte do Projeto Mina, da Escola de Ativismo” conta. Desde março de 2020 o Projeto Mina realizou uma inciativa que apoia ações coletivas para a promoção da dignidade e visibilidade das reivindicações das trabalhadoras do sexo cisgêneras, transexuais e travestis de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Com a morte da participante decidiram homenageá-la e o processo passou a se chamar Jornada Izadora.

Amiga e colega de trabalho dessas mulheres, hoje homenageadas na Casa, Jade questiona a violência a que são submetidas: “‘Ah a Penha foi assassinada porque estava na zona, não estava em casa, não estava cuidando dos netos’. E a Izadora que estava em casa? Estava indo trabalhar e foi assassinada no ponto de ônibus? É como se nossa vida não nos pertencesse, qualquer pessoa acha que tem o direito de nos tirar a vida”.

 

Guerra psicológica

Izadora Flor, ilustradora, acolhida pela Casa

Na medida do possível, as notícias sobre as mulheres da Guaicurus são “boas”: Jade não sabe de nenhum caso de morte por Covid-19. O assunto da infecção por coronavírus é muito delicado nos hotéis. Afinal, os estabelecimentos estão em constante risco de serem fechados por medidas de segurança sanitária. “Nós tivemos que ter jogo de cintura para não criar inimizade, não fechar as portas e a gente conseguir atender e acolher as trabalhadoras. Foi uma guerra psicológica com dono de hotel”, relata a coordenadora do coletivo Clã das Lobas.

A desconfiança dos proprietários do hipercentro também se estendeu à abertura da própria Casa de Acolhimento para Penhas e Izadoras, inicialmente visto como um local de concorrência na prostituição. “Durante meu trabalho na Guaicurus já fiquei doente e já vi mulheres ficarem doentes dentro dos quartos, porque não tinham para onde ir. A grande maioria delas são de outros estados, elas vão pra onde? Trabalham doente, o dono não quer saber, quer a diária dele. A gente não tinha esse suporte, mas agora, com a Casa, vai ter”, comemora.

O apoio do Estado é mínimo

Por parte do governo federal, as trabalhadoras sexuais e demais trabalhadores brasileiros prejudicados pela pandemia contam apenas com o auxílio emergencial que, se já não era ideal no valor de R$ 600, se tornou praticamente irrisório no valor de R$ 150. Voltado às famílias consideradas em situação de extrema pobreza, está para ser sancionado pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema, o Força Família. O auxílio emergencial pagará uma parcela única de R$ 600 para chefes de família registrados no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CADúnico).

Ajude a casa para Penhas e Izadoras

As doações e ofertas de parceria para a Casa de Acolhimento Provisório podem ser feitas para Jade ou Taís, também membra do Clã das Lobas. Entre em contato através dos telefones abaixo:

Jade: (31) 99549-5368

Taís Leão: (31) 97542-5392

Já a prefeitura de Belo Horizonte distribui, mensalmente, cestas básicas e kits de higiene para diversos grupos sociais enquanto durar a situação de Emergência em Saúde Pública por causa da pandemia. A Secretaria Municipal de Saúde mantém o Programa BH de Mãos Dadas Contra a AIDS com ações voltadas às profissionais do sexo. Desde março de 2020, o programa faz ações diárias de conscientização sobre as medidas de prevenção como uso de máscaras, distanciamento social e higienização constante das mãos, com abordagens nos hotéis, casas e pontos de prostituição em vias públicas. Foram distribuídas 16.691 máscaras até 21 de maio, quando a Secretaria foi contatada pela reportagem.

O Programa realizou ainda 228 testes em trabalhadores sexuais interessados, apenas no período de 17 a 31 de agosto de 2020. Atualmente, o BH de Mãos Dadas também busca por sintomáticos respiratórios em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de encaminhá-los para avaliação clínica nas unidades de saúde e posteriormente para o Serviço de Acolhimento Emergencial para isolamento social. O serviço é focado em infectados que não conseguem fazer o distanciamento social nos hotéis ou nas suas residências.

Assim, a Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), comandada por Cida Vieira; o Clã das Lobas, representada por Jade e o Coletivo Rebu, através da figura de Santuzza, são as principais organizações de trabalhadoras sexuais responsáveis pela assistência dessas mulheres e arrecadação de doações, que incluem fraldas e itens de higiene para as que são mães. Elas contam ainda com uma rede de apoio mais ampla de movimentos sociais, como o Projeto Compaixão, comandado por Delma Soares de Souza; o Projeto Mina, da Escola de Ativismo; e o Diálogos pela Liberdade, da Pastoral da Mulher.

Quando o baque da pandemia veio, Jade já estava preparada. Ainda em março de 2020, ela conduziu uma série de reuniões com a Pastoral e Secretarias Municipais, como de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, tentando cobrir todas as frentes de assistência a mulheres, pessoas LGBT e imigrantes. “Todas as frentes foram cobertas, porque nós nos dividimos. Nós nos fortalecemos, isso foi bom pro movimento”, garante Jade.

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