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É possível pensar em uma transição energética popular? Uma experiência brasileira diz que sim

A usina fotovoltáica Veredas Sol e Lares, proposta por movimentos sociais e realizada por comunidades, mostra um caminho popular para a transição energética

Por Bárbara Poerner – 29/05/2024

 

 

Conheça o Veredas Sol e Lares, uma usina fotovoltaica localizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, proposta pelo Movimento Atingidos por Barragens e parceiros, e desenvolvida com protagonismo das comunidades em todas as etapas

Metodologia participativa baseou o processo de construção e implementação da usina l Foto: MAB/Divulgação

No dia oito de março de 2018, Aline Ruas marchou ao lado de mais de 300 mulheres no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, reivindicando que “mulheres, água e energia não são mercadoria”. Naquele dia, uma conquista foi alcançada: o Governo do estado mineiro assinou um termo de cooperação técnica para a execução do Projeto Veredas Sol e Lares.

O Veredas Sol e Lares é uma usina solar fotovoltaica (USFV), construída sobre o lago da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Marta, que estava operando com baixíssima capacidade. Localizada no Vale do Jequitinhonha, semiárido de Minas Gerais, a região concentra intenso conflito fundiário relacionado à exploração de eucalipto e lítio.

Aline, uma das coordenadoras do Movimento Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais, conta que o movimento “elaborou um projeto que propusesse ao Estado brasileiro uma metodologia popular e participativa, na qual a energia possa realmente ser pensada através do povo, com o povo e para atender às demandas do povo”.

Atingida pela barragem do Calhauzinho, no município de Açude, ela explica que a geração da energia da usina, que começou a operar oficialmente no final de 2023, será destinada a 1.250 famílias atingidas, de 21 municípios do Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo. Serão aproximadamente quatro mil pessoas diretamente beneficiadas. 

Hoje, a Usina integra o Plano de Recuperação e Desenvolvimento de áreas e territórios atingidos por barragens no Vale do Jequitinhonha. Além do MAB, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS) foi uma das proponentes; Efficientia S.A. e CEMIG (companhia de energia elétrica de Minas Gerais) estão como financiadoras; e PUC Minas e Axxiom Tecnologia e Inovação como parceiras executoras.

Como continuidade da agenda, foi criada, em 2022, a Associação dos Consumidores de Geração Distribuída de Minas Gerais – Veredas Sol e Lares, focada na gestão popular e social da Usina. É um modelo participativo que visa garantir o caráter do projeto e garante o título de “maior associação da América Latina de geração de energia distribuída”, afirma Aline.

A usina em ação l Foto: Arquivo/Reprodução

Energia popular = participação popular

Um dos ineditismos do Veredas Sol e Lares é centralizar o povo no processo. Mais do que um projeto energético, a iniciativa é uma experiência de desenvolvimento comunitário, no qual foram envolvidas aproximadamente seis mil pessoas, em mais de 400 atividades de campo, nos 21 municípios que fazem parte da abrangência da usina. 

Tudo isso foi feito com metodologias integrativas, pois, para Aline, “não adiantava pensar em uma geração de energia solar em que o povo não fosse protagonista. Não trata-se de chegar e dar para o povo, é chegar e construir com ele”. 

Uma das estratégias foi incluir o Instituto Federal Campos Araçuaí (MG), Instituto Federal Campos Salinas (MG), algumas escolas, famílias agrícolas e jovens dessas instituições e de comunidades próximas para que eles se tornassem pesquisadores populares.

Tais pessoas eram responsáveis por ir a campo, fazer pesquisas, desenvolver a metodologia, dialogar com a população e articular com os outros pesquisadores das universidades parceiras. 

“Essa é uma ideia de participação onde o povo, que já conhece os seus problemas, também pode apontar soluções científicas, juntar, sistematizar e elaborar propostas de como é que ele quer esse desenvolvimento não para atender os interesses somente de fora”, continua Aline. 

Maria Aparecida, conhecida como Cida, foi uma das pesquisadoras populares em Virgem da Lapa (MG). Ela começou a participar do MAB em 2016, à convite de uma vizinha, e, desde então, integra o núcleo local do movimento. Durante a construção do Veredas, a militante compartilha que os pesquisadores “espalharam-se pelas comunidades, buscando aprender mais sobre os problemas, acesso e qualidade da energia”. Segundo ela, o aprendizado fortaleceu sua capacidade de interlocução com seu território.

“Elucidar”, inclusive, têm sido um dos principais verbos conjugados no Veredas Sol e Lares. Foram feitos estudos das contas de energia, apresentados para os cidadãos dos municípios, além de rodadas de formações e explicações sobre a tarifa social de energia elétrica. A coordenadora explica, com isso, que “o povo entendeu o que são aqueles números, o que é imposto, o que é ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação) e o que ele realmente está pagando”.

Um percalço enfrentado, contam Aline e Cida, foi o hiato que o projeto sofreu em 2020. À época, o Governo de Minas Gerais, gerido por Romeu Zema, congelou as obras e o desenvolvimento da Usina. Depois de lutas e articulações do MAB e outras entidades envolvidas, o empreendimento voltou a construção. “É muito inovador e, ao mesmo tempo, desafiador para todos os envolvidos. A CEMIG teve que buscar soluções também. A proposta que tínhamos era algo que não existia e não existe ainda”, continua Aline.

reunião em cooperativa

O Veredas Sol e Lares dá pistas de como conduzir uma agenda de enfrentamento à crise climática que contemple os direitos territoriais l Foto: Veredas Sol e Lares/Reprodução/Via Flickr

Pílula de mudança

A geração de energia fotovoltaica no Brasil está crescendo, O modelo centralizado, que é composto de grandes parques solares, já tem 18 mil usinas solares instaladas nacionalmente, capazes de produzir uma potência de 10,3 GW. Entre janeiro e setembro de 2023, houve o maior incremento da capacidade de geração solar centralizada da história no país, e ainda são previstos investimentos históricos no recurso.

Contudo, investir e construir mais parques solares não significa, necessariamente, uma transição energética. Tampouco implica justiça climática. Segundo Aline, é necessário perguntar, “para além da tecnologia, quem essa tecnologia vai atender?”.

A realidade dos dados, depoimentos e vivência de comunidades revelam que os empreendimentos energéticos de matriz renovável (hidrelétricas, eólicas ou fotovoltaicos) configuram violações territoriais e ambientais e agravam ainda mais a desigualdade social sob a escusa do desenvolvimento. Só em 2022, a Caatinga teve 4 mil hectares destruídos para a produção de energia gerada pelo sol e vento. O bioma, um dos mais eficientes em capturar carbono, sofre cada vez mais com processos de desertificação.

Embora o Brasil seja signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que afirma que os povos tradicionais devem ser consultados previamente sobre esse tipo de projeto, que tem impacto direto em seus territórios, isso não é experienciado na maioria dos grandes projetos energéticos.

Por essa razão o impacto do Veredas Sol e Lares pode ser medido em números, mas também em práxis: os GW gerados que diminuem o valor das contas de luz dos moradores soma-se à experiência de lançar ao mundo uma pílula da transição energética justa e popular, dando pistas de como conduzir uma agenda de enfrentamento à crise climática que contemple os direitos territoriais, às demandas do povo e sua escuta ativa.

Um exemplo, citado por Aline, é a comunidade de Beril. A partir do Veredas, o território conseguiu ter acesso à energia elétrica no final de 2023. “Trata-se do acesso à energia solar, ao direito de se ter energia, e energia com preço justo”, defende a coordenadora do MAB MG. 

Ainda, há poucas semanas, Cida recebeu uma ligação de uma colega falando que, finalmente, iria conseguir adquirir um ventilador. “Em janeiro, [essa atingida] pagou R$ 300 de conta de luz. Esse mês, ela já teve o desconto [devido a USFV]. Ela falou para mim que, por isso, vai conseguir comprar um ventilador”, relembra a militante, ao destacar como o Veredas Sol e Lares também reduz a pobreza energética.

“Faz-se necessário pensar em uma proposta de desenvolvimento que não retire mais terras do povo. O Veredas é um pedacinho de um exemplo de uma proposta do projeto energético popular para o Brasil. Uma experiência, que se ampliada, com o povo e o meio ambiente no centro do debate, vamos estabelecer outra lógica de energia”, finaliza Aline.

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