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Do regime militar à democracia das chacinas, é preciso dizer a verdade no dia da mentira

Da experiência militante do Cordão da Mentira, que há 12 anos desfila no dia do golpe militar, uma reflexão sobre a disputa histórica narrativa sobre o que foi a ditadura e o que é a democracia brasileira

Por Gustavo Assano – 01/04/2024

 

 

Da experiência militante do Cordão da Mentira, que há 12 anos desfila no dia do golpe militar, uma reflexão sobre a disputa histórica narrativa sobre o que foi a ditadura e o que é a democracia brasileira

Desfile de 2023 do Cordão da Mentira à frente do “Monumento às Bandeiras”, em São Paulo (SP), denuncia massacre colonial l Foto: Arquivo/Reprodução

É muito significativa a história do nascimento do Cordão da Mentira, bloco carnavalesco organizado por diferentes movimentos sociais e artistas engajados da cidade de São Paulo. Todo primeiro de abril, desde 2012, o Cordão percorre as ruas do centro de São Paulo e apresenta-se como um “desfilescracho” para “descomemorar” a realização do golpe empresarial-militar. O desfile não nasceu de uma provocação acadêmica ou vocação institucional. Surge de uma reflexão gerada por um conflito entre sambistas que frequentavam a roda do celebrado “Samba da Vela”. Numa noite de segunda-feira, no começo da década de 2010, uma ex-presa militante torturada, frequentadora do espaço, reconheceu entre os músicos da roda de samba um de seus torturadores, que respondia pelo apelido Pachequinho, ex-agente do DOPS e discípulo do abominável delegado Sérgio Fleury Paranhos. Em estado de choque e abalada, não pôde engolir a presença da face de seu passado traumático sorrindo, cantando e saboreando da fruição e descontração festiva e dignificante de canções populares de ampla tradição. Refiro-me à tradição da roda de samba brasileira, transmitida por gerações de ex-escravizados, imigrantes esbulhados e tantos agrupamentos que originaram a gente de mãos calejadas que forjaram a coragem da alegria mesmo selando caminhadas de vida marcadas por catástrofes sociais e individuais. A velha militante passou mal, e, ao ser socorrida, narrou os motivos de sua reação. Estava ali, na suposta era da “página virada”, dos balanços de superação da “ditabranda”, seu carrasco a celebrar a vida com as vozes e tradições herdadas dos degredados da terra.

O caso despertou a indignação de uma parte dos frequentadores da roda e um racha se formou no movimento. Para alguns dos sambistas que faziam parte da prestigiada roda, um impasse incontornável estava colocado. O que significa para um sambista que honra a história dos antepassados de seu ofício tomar como aceitável o convívio com um agente dos porões da ditadura? Houve um esforço de politização, de construir um debate real que apresentasse o que havia de escandaloso da situação apresentada. No entanto, tais esforços foram abafados. Pachequinho recebeu apoio dos principais integrantes da roda do Samba da Vela e seguiu até sua morte gozando do prestígio do movimento e com direito a homenagens póstumas. Gozou da ausência de incômodo compartilhada entre os facínoras da história sangrenta do Estado brasileiro. 

No entanto, uma parte dos sambistas da Vela romperam com o espaço, julgando ser insuportável conviver com tão ensurdecedor silêncio sobre o que se decidiu tomar como aceitável e natural: o apagamento de uma injustiça sem nome. Se o Estado, o STF e parte da classe política de esquerda tomava como aceitável a anistia, que acabou sendo apenas para militares, ali havia a chance de fazer diferente, de mostrar que no samba justiça não era um ritual vazio. Num primeiro momento se cogitou organizar um ato, mas logo surgiu a ideia da criação de um experimento artístico, inicialmente sugerido como uma peça de teatro, para então evoluir nas discussões para um híbrido entre procissão, teatro de rua e bloco carnavalesco. 

Assim surge a ideia do Cordão da Mentira: um ato político que jogaria todo o esforço organizativo não apenas no elenco de pautas urgentes declamadas em microfones de carro de som, mas principalmente na consistência do tratamento expressivo de uma obra de arte de intervenção no espaço público.

Ainda estávamos nos primórdios do processo da criação da Comissão Nacional da Verdade, ainda não havia se propagado a paranoia conservadora sobre o trabalho de apuração e reparação institucional sobre os crimes da ditadura, processo que, apesar dos seus limites e sabotagens limitadoras de seu alcance executivo, despertou a radicalização de extrema direita na politização das casernas. A rememoração dos crimes da ditadura ganhou aspectos de convenção de evento oficial para as primeiras gerações nascidas após o término da promulgação da constituição de 1988 e os consensos de pacificação neoliberal da democracia de presidencialismo de coalização. Era como se não houvesse urgência no ato rememorativo, como se não houvesse frescor nas consequências geradas, como se não fosse possível sentir o cheiro infecto dos porões de tortura em nossa era e como se os rastros de mutilações psíquica e em carne viva no processo de brutalização social herdados não compusessem os contornos da ordem democrática – o novo parâmetro de normalidade de médio termo que supostamente enterrou tão sombrio período da nossa história.

Assim, nos primeiros anos do Cordão, os cortejos eram pensados nos termos da tarefa de despertar as ruas de um falso senso de normalidade e superação, como se o cotidiano automatizado das ruas de São Paulo fosse em verdade um cenário de peça de teatro, uma casca de superfície desbotada que esconde uma estrutura que tem como fundamento uma máquina de moer e um sistema de iniquidades tida como face do progresso, inclusive por parte da esquerda. Era preciso dizer com todas as letras, alto e em bom som: a normalidade é uma mentira. Os números e falas eram pensados com deboche direcionado aos consensos liberais, com irreverência a uma esquerda no poder que se manteve tímida e omissa sobre os consensos coagidos da “transição para a democracia” e com forte ímpeto paródico direcionado aos resquícios da extrema-direita de outrora. Costurando uma miríade de pontos de vista que seriam divergentes em outros contextos de atuação em espaços de esquerda, todos envolvidos mergulhavam nas reuniões em debates sobre a geografia crítica da cidade, alternando homenagens em lugares em que militantes tombaram lutando por liberdade e escrachos cênicos a espaços que apoiavam ou eram centrais para fundamentar a violência institucional. Sua estética engajada inicialmente ambicionava denunciar crimes esquecidos para uma conjuntura dessensibilizada sobre este passado, tido como remoto, revelando o índice de um passado que não passa. O desafio era convencer as pessoas da atualidade deste período nefasto, a proximidade contemporânea do que a miopia despolitizante induziu a tratar como distante.

As Mães de Maio e Mães de Manguinho à frente do cortejo do Cordão da Mentira l Foto: Twitter/@RobertoSungi/Reprodução

A mentira vira “mito”

Em poucos anos, no entanto, a tomada das ruas com deboche à mentira da normalidade democrática encontrou seu limite quando a extrema-direita radicalizada tomou o poder e impôs ao país um novo patamar de autoritarismo e mentiras. De um período de apatia sobre a ditadura, vivemos agora uma disputa por hegemonia na narrativa histórica sobre o presente, em que a reconstituição mítica do golpe de 64 e a heroicização dos seus torturadores não é um caso isolado escandaloso, mas plataforma de poder com base social de massa e formulação corrente feita com paixão de militância engajada. 

Com a revelação bombástica da tentativa frustrada de instauração de uma nova ditadura militar sob o golpismo bolsonarista, esta sensação de distância fria perdeu sua razão de ser. Mesmo os mais empedernidos defensores de outrora de uma perspectiva liberal de “página virada” sobre o regime ditatorial não podem deixar de sentir no cangote os suspiros arrepiantes de um velho fantasma, recolocado em cena com nova roupagem de legitimidade social. 

No entanto, para terror dos desavisados por cegueira consentida e calafrio dos que não guardaram ilusões sobre as consequências de conciliações extorquidas, há certa dificuldade em lidar com o movimento contraditório que a nova politização conservadora coloca sobre o debate. Além do desejo por restauração de uma era de ouro defendida com mentiras, há o monopólio sobre a elocução pelo desejo por ruptura, representado pelo bolsonarismo que sobreviverá sem Bolsonaro. 

A resposta de Lula, pregando um quietismo de ocasião para reiterar a “página virada” já não responde aos anseios de períodos em que a politização de direita era de baixa voltagem, como no contexto das conciliações costuradas nos primeiros mandatos lulistas. Contra as mentiras do verde-amarelismo do novo conservadorismo radical brasileiro, a aposta deve ser a mentira de uma normalidade nunca conquistada? O combate às velhas mentiras será travado com a lapidação de novas? Não é possível acreditar que será um restauracionismo de um progressismo republicano desenvolvimentista que prega não haver vestígios da ditadura na democracia de chacinas que instaurará algum novo regime de verdade. Contra a atualização de símbolos da ditadura em comícios com dezenas de milhares de pessoas com camisas da CBF, a omissão como solução soa como um atestado de morte política.

Uma nova forma de politização também traz desafios para as formas de conceber o sentido combativo da memória do golpe de 64. O tema escolhido para o desfile do Cordão da Mentira deste ano foi “De golpe em golpe: tá lá um corpo estendido no chão”. O título articula o duplo movimento de duro trabalho de reflexão que a situação exige que atravessemos: por um lado, pensar sobre o mesmo fenômeno enquanto sucessão reiterada, repetitiva, de continuidade de uma tendência histórica que desdobra os massacres contínuos iniciados quando caravelas europeias primeiro atracaram em praias do “Novo Mundo”; por outro lado, trata-se de um evento excepcional, um marco inaugural que deve ser pensado nos termos de sua singularidade, os termos de situação nova inaugurando um novo patamar de modernização conservadora. O desafio está em entender que uma dimensão não desmente a outra.

reunião em cooperativa

Cortejos do Cordão da Mentira denunciam violência policial l Foto: Sato do Brasil/Cordão da Mentira/Divulgação

O dever de dizer a verdade

Por um lado, há a tendência de apagamento do sentido de continuidade de campos sociais já esbulhados e oprimidos, de tal forma que a ditadura representou a agudização e radicalização de uma vocação exterminista e desagregadora do Estado brasileiro já existente muito antes do golpe de 64. Como se os vestígios de terror ideológico e centralização do poder de dominação social fosse um ponto fora da curva nas condições normais de temperatura e pressão institucionais, como se o autoritarismo não estivesse incrustado na legalidade institucional brasileira desde o berço. O que cria a miopia, que perdurou por anos, de que em 64 o regime era brando e apenas após o AI-5 teria começado a violência aterrorizante, ignorando o trucidamento da organização sindical em meio urbano ou rural, os inquéritos sobre universidades, os expurgos entre dissidências nos meios militares de baixa patente, e tomando como fatos de menor relevância a censura, a invasão de igrejas com cúrias progressistas, suspensões de habeas corpus, etc.

Por outro lado, há o equívoco de tratar a era inaugurada pelo golpe de 64 no Brasil como mais um grão de areia no grande deserto de genocídios encadeados na história da subjugação dos povos degredados em holocaustos coloniais. Sem a devido cuidado, corre-se o risco de ignorar o salto organizativo nas formas de extirpar do território nacional toda e qualquer forma de dissidência e inconformismo – este o real propósito do golpe, e não uma reação “por incômodo com a democracia” como prega certa narrativa romântica e rósea que tenta fingir ser efetiva a conquista da liberdade democrática. É tal formulação que impede de ver, por exemplo, a ampliação do sistema carcerário como uma continuidade tendencial de forma de controle de populações pobres, afinal oprimidas desde sempre, em que a política de contra-insurgência militar contra a “ameaça comunista” passa a se voltar contra o tráfico de drogas, a justificação política e jurídica para o massacre de pobres, pretos e periféricos. Também não seria tomado como tema de reflexão a modernização do mundo do crime com o entrelaçamento entre esquadrões da morte (como o capitaneado por Fleury) e inteligência militar de polícia política, passando o know-how de perícia militar para agentes que faziam bicos de segurança ilegal para a contravenção (bicho e tráfico de drogas) enquanto trabalhavam nos porões, gerando a modernização do crime, o surgimento das disputas territoriais da era das facções, e as condições de expansão do mercado ilegal de segurança ilustrado com os serviços contratados para assassinar Marielle Franco em 2018. Ou seja, ficaria sem reflexão a especificidade da aurora do poder miliciano e sua disseminação.

Não encarar a singularidade da era inaugurada é tratar com indiferença estes temas, como se fossem indistintos a tantos outros temas da pilha secular de cadáveres empilhados em nossa história. Tal postura significaria deixar sem menção um novo patamar quantitativo e qualitativo no aprofundamento do extermínio sistemático dos povos indígenas durante a tutela militar, como comprova a quase extinção do povo kinja, autodenominação dos Waimiri Atroari, nas obras da rodovia BR 174 Manaus-Boa Vista, assim como o genocídio da população negra durante a era da democracia de chacinas, deixando sem crítica a criação da Polícia Militar nos moldes hoje naturalizados. Pior, ficaria sem debate o equívoco triunfalismo de certa esquerda que comemorou uma suposta derrota das forças militares, como se fossem uma força despolitizada e coadjuvante por mero desprestígio circunstancial, certeza que permitiu que todos ficassem de queixos caídos com a ascensão de Bolsonaro. Não haveria balanços sobre o que significa a sobrevivência de serviços de inteligência e arapongagem que continuaram em funcionamento durante o período democrático, com a manutenção de órgãos como o SNI comandados por militares. Um amontoado sem fim de injustiças que permanece sem confronto.

Não apontar a face mutilada de uma sociedade colapsada e tutelada por uma polícia, um poder militar, um sistema político, um código civil e paradigmas de desenvolvimento econômico todos legados da ditadura militar e preservados nas aspirações governativas inclusive da esquerda no poder significa uma recusa a olhar-se no espelho e, ao não ter coragem de confrontar a própria face, os próprios auto-enganos e ilusões perdidas, condena-se a viver sem perceber o real tamanho das armadilhas e batalhas do tempo presente. No dia da mentira, dia dos 60 anos do triunfo da infâmia e covardia, o dever de dizer a verdade se impõe com maior força. Muito apropriado quando o imperativo de lidar com contradições e impasses se torna um dever. Na omissão, não há confronto com a verdade, e se a verdade não é encarada, a justiça é uma mentira e as páginas viradas, meras mordaças auto-impostas, novas formas de conformismo para tornar aceitável o convívio com derrotas que calam fundo. Mas tá lá mais um corpo estendido no chão, nos lembrando de que nossos mortos têm voz, e só podem falar através de nós.

Gustavo Assano é professor e coordenador do núcleo ArtEmancipa, mestre em filosofia e doutorando em teoria literária e literatura comparada e pesquisa teatro da cidade de São Paulo há 20 anos.

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