Essas palavras auxiliam na formulação de questões e ações para o ativismo dos e nos espaços contemporâneos. O ciberespaço também é uma mercadoria infinitamente extensível, mas se a natureza antes era tangível, agora ela é cibernética – sua sociotécnica, seus meios de produção e sua relação com o espaço tangível são diferentes e carregados de características muito específicas dada a hibridação com o digital. Por isso, para diferenciar essa inflexão histórica do surgimento dessa outra natureza de espaço, dizemos que espaço não é mais apenas produzido, mas também modulado. A modulação é uma operação de controle da comunicação por meio do processamento de informações e sinais (dados) direcionados a muitos usuários – ao mesmo tempo. É como uma única música tocada em um único espaço que controla as percepções e seus processos de subjetivação, sendo que esse espaço comporta ao mesmo tempo, milhões de usuários que existem e agem em ciberomas específicos com sociabilidades específicas que também impactam nos biomas e suas sociabilidades.
Tomamos esse nome para categorizar um novo modo de determinar o espaço, mediado pelas tecnociências cibernéticas e concebido pelos novos arranjos do cibercapitalismo. Os “dados” são a nova “mercadoria”, e sua feitura é realizada pela captura da atenção, direcionada por operações de controle que processam dezenas de zettabytes de informações ao ano, modulando os interesses da atenção dos usuários por meio de uma única “música”, aquela da preferência das castas proprietárias dos datacenters, ou seja, dos “meios de produção”, bem como colocado pela teoria marxista. Os datacenters são conjuntos técnicos que fazem a mediação entre trabalho humano e a natureza e, neste processo fazem a transformação de todas as relações de relações entre vivos e não vivos no espaço, isto é, transformam a natureza em si.
Comparando, a modulação no cibercapitalismo está para a produção no capitalismo. Os “modos de produção” dos que detém os “meios de produção” que produziam economicamente a expansão capitalista pela reprodução infinita dos espaços tangíveis, agora no cibercapitalismo, modulam dados pela captura cognitiva da atenção, e realizam a expansão do capital pela modulação do espaço nas dimensões inseparáveis do:
(4) – Percebido: em que os sujeitos já tem o letramento digital para mover suas práticas cotidianas em dobra (o) tanto na realidade tangível com cibernética do espaço. Ex.: aplicativos guiam a mobilidade dos sujeitos pelas ruas do planeta que sabem interpretar os dados coletados e modulados pelos datacenters. Quem modula as sociabilidades dos motoristas pelo mundo não são mais os costumes locais, mas as análises algorítmicas dos provedores acessados pelas plataformas dos aplicativos como o israelense Waze;
(5) – Concebido: o ciberespaço é totalmente idealizado por saberes disciplinares que dominam as noções convencionadas das ciências dos dados para o desenho/desígnio do espaço em dobra (do tangível e cibernético), por exemplo: a lógica homogeneidade-fragmentação-hierarquização do planejamento moderno. A concepção continua sendo ordenada pelos interesses privados das castas dominantes, agora do cibercapitalismo, limitado apenas pelas condições cada vez mais precarizadas da reprodução biológica da força de trabalho e das relações sociais necessárias à sua manutenção. Se no capitalismo os assujeitados, trabalhadores ou ativistas, não concebiam o espaço por falta de poder, essa assujeição aumentou exponencialmente Ex: as sociabilidades em dobra dos motoristas que trabalham com entregas movidas por aplicativos e que não tem condições de negociação de trabalho com os cibercapitalistas.
(6) – Vivido: a experiência cotidiana deste espaço em dobra é constantemente atualizada pelo letramento dos códigos digitalizados e dataficados. Esta atualização permite a relação dos usuários com o concebido pelas sociotécnicas cibernéticas e interesses do cibercapitalismo (plataformização, financeirização, datatificação, digitalização, etc., são aspectos desta reconfiguração do capitalismo). Mesmo os não usuários deste novo sistema-mundo são afetados pelo sistema, seja pela interconexão das relações, seja pela transformação da natureza em si. Ex: a captura de dados na compra do remédio na farmácia por idosos que nem mesmo utilizam smartphones e que são vendidos para golpistas ou satélites controlados por garimpeiros que mapeiam as movimentações de sociedades indígenas que resistem ao desmatamento e às queimadas no norte do Brasil, que por sua vez fazem chover cinzas em São Paulo. É nesta dimensão que as forças ativistas mais perdem força de ação nesta nova configuração espacial, por falta de uma sociabilidade ativista letrada o suficiente para agir, ao mesmo tempo, nos espaços tangíveis como no ciberspaço. Lutar hoje é poder resistir às capturas da atenção para os interesses das castas proprietárias, nestas duas espacialidades ao mesmo tempo (porém ou o ativismo está nos territórios dos espaços tangíveis ou está no ciberespaço). A triplicidade percebido-concebido-vivido é a apreensão concreta, mas duplamente articulada das duas espacialidades.
Na era histórica do ciberespaço modulado pelo cibercapitalismo, a primeira característica, talvez a de maior impacto para os ativismos, é a dificuldade de organização social nos territórios dos espaços tangíveis, no nível da informação, pelo baixo letramento dos códigos de programação dos dados requeridos para o acesso à modulação do espaço digital. O resistir precisa ser feito tanto no território tangível como nos ciberterritórios. As sociabilidades de ribeirinhos, povos das florestas, quilombolas, periféricos, e por que também não dizer, as de urbanistas e planejadores urbanos, precisam aprender a programar o código das suas pautas – do mesmo modo que precisaram ganhar o letramento das técnicas do “direto a”, precisam agora ganhar as técnicas do programar.
Mas, os dados e o capital que os controla e que criam robôs, inteligências artificiais, terapias sistêmicas desenvolvidas pelas neurociências baseada em informação coletada pela biologia computacional, isto é, os “meios de produção” deste novo espaço, não são acessíveis aos programadores ativistas. Estes são, entre outros, os novos instrumentos de dominação e expansão do espaço e estes recursos não estão disponíveis à maioria dos corpos (individuais e coletivos) das sociabilidades urbanas ou rurais presentes nos territórios.
Apenas uma pequena minoria privilegiada domina os códigos de informação dessas modalidades do capitalismo “cibernético” – e, cabe reforçar, isso inclui grande parte do campo técnico do urbanismo e do planejamento urbano e regional, ainda formados pelos conhecimentos técnicos pré-cibernéticos. O domínio das tecnociências cibernéticas atualizam, no espaço digital, as transformações das dimensões do percebido-concebido-vivido. Os avatares, os pix, os logins dos apps são os novos corpos digitais (individuais e coletivos) hibridados com os corpos (individuais ou coletivos) no espaço tangível, e todas as dimensões do espaço são agora duplamente ligadas, o corpo tangível é digital, e vice-versa. Somos, agora, todos ciborgues (p) e estamos evoluindo como uma biomáquina (individual e coletiva).
O espaço cibernético é a nova fronteira e a modulação é o novo modo de produzir esse espaço híbrido. Não há mais como pensar o espaço digital apenas como um sistema de informação e comunicação. Socializamos este (e neste) espaço concebido, trazendo para este as dimensões do percebido e do vivido. Se Lefebvre cria o rural e urbano como dimensões da sociabilidade do campo e da cidade, podemos dizer que há uma nova sociabilidade ciborgue, dos corpos biomaquínicos, intimamente ligados aos dispositivos cibernéticos – prótese ligada aos softwares; implantes para biosegurança; libido conectado a redes sociais, etc.
A modulação dos espaços concebida com as tecnologias advindas da cibernética é a matéria-prima básica e indispensável para a expansão e a reprodução do capital nos circuitos mundiais do atual capitalismo, e este fenômeno tende a expandir para além do controle e domínio do complexo econômico-industrial-financeiro-militar-acadêmico do sistema mundo ocidental norte-americano. Outros países parecem modular seus espaços, disputando o controle e domínio ocidental e, neste sistema mundo de poder multipolar, o Brasil participa de modo muito periférico. Esta é a questão espacial no Brasil contemporâneo, seja nas cidades, nos campos ou nos biomas tradicionais e originários. Esse é o problema do ativismo e do campo técnico que pretende organizar os desígnios para o espaço. Estamos sendo novamente colonizados pela incapacidade de atuar espacialmente nas dimensões do espaço cibernético, essa nova realidade concreta, global e local.